segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

CRÔNICA (IA)


BODE EXPIATÓRIO
Iolanda Campelo Andrade*


Se sofreres uma injustiça, consola-te, porquanto a verdadeira desgraça é cometê-la. (PITÁGORAS. *Samos, 571 a.C. + Metaponto – Itália- 495 a. C).  


Corria celeremente 1970. A quadra momina em Palmácia ainda não portava o nome CARNAPAL e a folia transcorria animada, não mais na Praça da Matriz, mas no Centro Comunitário Clementino Rodrigues Campelo (hoje, CRAS), quando um amigo, muito amigo, já bem muiado, se dirigiu à cantina do local para comprar uma cerveja.

Associando sua invejável inteligência (sou suspeita, mas isto é comprovado) à deturpação do líquido espirituoso em sua mente, meu amigo tirou cinco cruzeiros do bolso e rasgou a nota ao meio para pagar a ceva que, à época, custava dois e cinquenta.

Ante a negação do vendedor em não aceitar o dinheiro rasgado, seu circunstante justificou: - mas, rapaz, a metade de cinco é dois e cinquenta, não é? Então está aqui o dinheiro, estou pagando uma cerveja...

O vendedor, pacientemente, ainda quis mostrar a veracidade dos fatos, mas o rapaz, com os couros quentes - e a cabeça também - e ainda metido a arrochado quando bebia, passou a agir com certa violência, empurrando algumas garrafas vazias sobre o balcão. E deu no que deu – a (primeira) vítima foi ele próprio, que se cortou em várias partes do braço, trazendo tumulto à festa.

Quando a par do ocorrido, cheguei a tempo de o ver ensanguentado e minhas manas tentando acalmá-lo, ação da qual também participei. Minha irmã mais velha disse para eu chamar o resto dos irmãos e irmos para casa, pois, com esta ocorrência, falecia razão para ali permanecermos. Retruquei. Como deixar de curtir aquela noite de carnaval que apenas começava? Fiz ouvidos de vendedor ambulante turco e fiquei.

Esqueci-me de mencionar que tínhamos visita em casa. Era o pessoal da escola onde ensinávamos eu e Dodô (minha irmã, Auxiliadora). Esse estabelecimento fica em Fortaleza. Era minha primeira experiência como docente diplomada e vinha me saindo muito bem.

Estavam todos em Palmácia, passando o carnaval – meus diretores e as colegas professoras. Eles, também, presenciaram o ocorrido na festa e, em solidariedade às manas, resolveram igualmente sair dali.

Vejamos, então: se ainda existia alguma pessoa da casa do Seu Renato no baile, era eu. E tal pessoa nem de longe pensava em deixar a folia para ir embora (risos), pois a diversão estava a mil, todo mundo brincando em cordões, acompanhando as marchinhas carnavalescas de que tanto guardo recordação.

Ninguém ficava parado, todos pulavam e cantavam, aquecidos pelo calor dos corpos em atrito e a química dos corações pulsando, quando os olhares adolescentes se encontravam. Era a magia de um tempo ditoso, saudoso...

Encontrava-me atada a um cordão de gente pulando, quando olhei para o portão do Centro Comunitário e quedei petrificada! Lá estava o Papai com uma corda azul, de armar rede, em uma das mãos e a outra em aceno, me chamando. Recordo bem: o cabo dava diversas voltas e a cara de raiva do Velho era grande!

Num átimo, me desliguei do cordão e corri na direção do aceno. E o Chefe nada falou ... Nem precisava. Pernas, pra que as quero?! Desabei em direção de casa e o Homem em suas largas passadas a me acompanhar.

Jamais havia subido tão ligeiro o alto do tio Luís Rebouças como nessa noite! Usei todo o vigor de adolescente para chegar a casa antes do Papai. Malgrado jamais haver apanhado dele – nem de ninguém – estava temerosa. Não com medo de levar umas boas (e, aqui prá nós, merecidas) lapadas na rua e me envergonhar, pois não havia ninguém observando. O que eu queria era não dar a entender para meus diretores e colegas de escola o fato de que estava sendo enxotada de uma festa tangida por um relho ... Por isso eu corria ... O esforço, entretanto, foi em vão.

Não penei sob o ponto de vista físico, mas a dor moral me abalou deverasmente. Todos estavam na varanda de casa e ligaram o quebra-cabeça.

Para infelicidade minha, nessa história, dei uma de BODE EXPIATÓRIO.


*Iolanda Andrade é socióloga, 
docente, prosadora e poetisa, 
natural de Palmácia-CE.

Nenhum comentário:

Postar um comentário