O ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO
Parte 2
Rui Martinho Rodrigues*
O Estado democrático de direito é o produto de transformações
históricas do Estado moderno, originalmente Estado liberal, depois Estado
social e por fim Estado Democrático de Direito. Garantias às liberdades negativas,
que negavam ao Estado o direito de impedir a livre circulação de pessoas, a
liberdade de expressão com responsabilidade, liberdade de opinião e de
consciência, entre outras.
Os governados emitiam comandos aos governantes com proibições,
tais como: não condene sem o devido processo legal ou não cobre impostos sem
lei anterior que o autorize. A isso Norberto Bobbio (1909 – 2004), na obra A Era dos Direitos, classificou como segunda geração de direitos (ou
dimensões do Direito), porque ao contrário da primeira geração, em que o
governante proibiam os súditos de condutas como matar, roubar, testemunhar em
falso, os cidadãos estabeleciam limites à conduta dos governantes.
A segunda geração de
direitos e a democracia
A segunda geração de
direitos estabelecia obrigações de não fazer, típicas das liberdades negativas.
Não ensejam a desculpa de não ter meios para obedecê-las ou reivindicar poderes
excepcionais para cumprir uma obrigação de não fazer. A segunda geração de
direitos é democrática quando se entenda democracia como um conjunto de
garantias destinadas a proteger os cidadãos contra o absolutismo, diversamente
do contratualismo de Thomas Hobbes (1588 – 1679), na obra Leviatã, que
legitima o autoritarismo em nome da segurança. Acrescente-se que a democracia do
Estado liberal pressupõe que os governados ditam normas para os governantes,
nos termos da segunda geração do Direito.
Contrariamente a Antropologia Filosófica que diz ser o homem o lobo
do homem, que inspirou a obra retrocitada, o Estado liberal admite que o homem
circunstancialmente pode ser o lobo do homem ou o seu anjo da guarda, segundo
se infere do pensamento de John Locke (1632 – 1704), nos Dois Tratados Sobre
o Governo Civil, que coloca o contrato social limitado pelo Direito Natural.
Não se trata de reabrir a polêmica entre juspositivistas e jusnaturalistas. O juspositivista
Norberto Bobbio reconheceu, na obra Teoria geral do Direito, que a
legitimidade jurídica não é autônoma em relação aos fundamentos políticos do
Direito.
A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen (1881 – 1973),
culmina com a norma hipotética fundamental, que pode ser entendida como
princípio segundo o qual as constituições, os precedentes judiciais ou o
costume devem ser obedecidos, o que não fica tão distante do jusnaturalismo. Kelsen,
quando assim entendido, reconhece um princípio anterior ao Direito chancelado
pelo Estado (a norma hipotética fundamental) freio ao absolutismo das
constituições, do assembleísmo, dos precedentes jurídicos e do costume.
Teríamos assim a diferença entre a vontade geral e a vontade de todos, não
explicada claramente na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778).
Parafraseando a interpretação conforme, da Nova Hermenêutica constitucional, e
recorrendo à interpretação lógica, a vontade geral pode ser entendida como a
norma hipotética fundamental. A vontade de todos pode ser o costume, as
constituições, os precedentes judiciais ou as assembleias.
O apelo às virtudes
cívicas
O Estado liberal é democrático. Governados dirigem comandos aos
governantes e estabelecem proteção contra o absolutismo. A defesa contra o
arbítrio das autoridades fora conquistada e estabelecida a democracia
representativa. Agora os governantes precisavam ser escolhidos pelo povo. Era
preciso conquistar votos. Isso exigia ir além das liberdades negativas, que
estabelecem os direitos que J. Guilherme Merquior (1941 – 1991), na obra O Argumento Liberal, nomeou como liberdade de agir e fazer. Ganhou força a
tese do Estado provedor. Aristóteles (384 – 328), na obra A Política,
descreveu os regimes políticos e o espírito de cada um deles, como as
respectivas formas decadentes. O espírito da democracia é a virtude, mas a sua
forma degenerada é a demagogia.
Virtudes foram invocadas para o aperfeiçoamento do Estado liberal.
Nicolau Maquiavel (1469 – 1527), na obra O Príncipe, disse: é mais
importante aparentar virtude do que ser virtuoso. Atender às necessidades dos
grupos vulneráveis, ou aparentar defendê-las, conquista votos, vende livros,
semeia admiradores e afaga o ego. Fazer “justiça” (?) e conquistar o poder une
o útil ao agradável. Em 1802 surgiu, na Inglaterra, a Lei de Saúde Moral dos
Aprendizes, que limitou a jornada do trabalho infantil em doze horas. Protegia
pouco, mas era um “avanço” na direção do bem comum.
O Estado social
Antônio Ferreira Paim (1927 – 2021), brasileiro formado na
Universidade Estatal de Moscou, disse, em seus escritos, que após o fim do voto
censitário, que estabelecia critérios econômicos para a conquista da capacidade
eleitoral ativa, os aspirantes aos cargos eletivos progressivamente se
converteram ao distributivismo fiscal. É sedutora a ideia de distribuir a
riqueza dos outros. Não seria preciso a intervenção do Estado para um cidadão
virtuoso distribuir a sua própria riqueza. A ideia era a proteção dos grupos
vulneráveis. Quem pode ser contra? O Estado liberal, disseram, estava esgotado.
A ideia do Estado social cresceu como Estado do bem-estar Estado provedor. Era
preciso superar o abstencionismo estatal, o individualismo e deslocar a
prioridade para o campo dos direitos sociais, tudo isso é relatado por Elías
Diaz, na obra Estado de Direito e Sociedade Democrática: o que é Estado de
Direito.
A dialética, nomeado por Lucio Colletti (1924 – 2001) como senhora
de costumes cognoscitivos fáceis, permitiu que o Materialismo histórico
invocasse valores morais da sociedade burguesa e do cristianismo, como solidariedade,
para propor orientação política, desprezando o materialismo de Friedrich Nietzsche
(1844 – 1900), que peço permissão para qualificar como ontológico. Agrada aos
egos defender o altruísmo cobrando generosidade dos outros, exibir
solidariedade terceirizando o ônus para o Leviatã, que não produz nem tem riqueza
e terá de tirá-la de quem tem renda maior do que o arauto do distributivismo. O
cristianismo foi invocado, não para dizer ao rico: doe ao pobre, como seria
próprio dos cristãos, mas para dizer ao pobre que tome do rico, seja pela
expropriação revolucionária ou sob o eufemismo do distributivismo fiscal, como
dizia Roberto de Oliveira Campos (1917 – 2001).
Ganhou força a ideia de alargar a competência jurídica e política
do Estado (social). A legitimidade do Leviatã, diversamente da ideia
hobbesiana, não era apenas promover a segurança e a paz, mas a provisão das
necessidades e a justiça social. A polissemia destes vocábulos não constrange
os teóricos do Estado social. A obrigação de fazer requer meios materiais e
poder jurídico-político. Só é possível promover a reengenharia social, atender
às necessidades e fazer justiça com poderes extraordinários.
A individualidade foi confundida com individualismo. Era preciso
mitigar a vagueza do termo “necessidade”. Então surgiu a Teoria das Necessidades Humanas Básicas, de Abraham H. Maslow (1908 – 1970). O autor achou
a legitimação do argumento das necessidades e adjetivou-as com humanas e como
básicas. Deixou de lado as subjetividades e as aspirações individuais. Fixou-se
na objetividade imposta por uma suposta condição humana, adotou uma lista
fechada das necessidades e estabeleceu uma hierarquia entre elas.
Os que recusam a ideia da existência de uma natureza humana e
enveredam pelo reducionismo historicista ou culturalista, aderiram com
sofreguidão ao objetivismo universalista de Maslow, que reforçava a ideia de
reengenharia social dos herdeiros dos reis filósofos de Platão (428/427 –
348/347 a.C.), na obra A República, ou pretensos demiurgos que pretendem
nos conduzir à terra prometida e nela criar um novo homem.
As necessidades não são tão objetivas. As aspirações humanas não
cabem numa lista fechada e hierarquizada, salvo se a liberdade de agir e fazer
for abandonada e a individualidade demonizada como individualismo. Então as
liberdades negativas deixam de existir e a democracia será o absolutismo dos
“esclarecidos”. Nem a reserva do possível constrange os demiurgos. Eles não
falam em produtividade. Basta defender o bem. Ou aparentar virtude?
Isso tudo ainda seria pouco. O Estado social seria entendido como
expressão dos direitos sociais clássicos, dirigido aos necessitados segundo a
lista posteriormente feita por Maslow. Era preciso fazer mais: defender
direitos universais, sem distinção de pobres ou ricos. “Minorias”,
ressignificadas para incluir grandes grupos, deveriam ser protegidas pelo
Leviatã revisto e ampliado. Era preciso defender a dignidade da pessoa humana,
embora este fosse um conceito caracterizado por uma grande polissemia. Conceitos
obscuros, indeterminados ou vagos são os preferidos pelos que buscam agradar a
todos para angariar votos, vender livros ou ser admirados, porque o povo não
percebe que os significados obscuros destroem a segurança jurídica.
J. M. Machado de Assis (1839 – 1908), no conto Teoria do Medalhão, narra a orientação que um pai dá a um filho, para que faça uma
carreira exitosa, recomendando que use conceitos abertos ao gosto dos ouvintes
e fale apenas genericamente. Ganha força a ideia do Estado Democrático de Direito, que até entre os intelectuais poucos sabem o que não é a democracia
das liberdades negativas nem o Direito do jusnaturalismo nem do juspositivismo.
Talvez muitos dos constituintes de 1988 não soubessem o que era isso, quando
definiram o Estado brasileiro como pertencente a esta categoria. Mas isso
merece outra reflexão.