OS RUSSOS E A
TEORIA DE HEARTLAND
Luciara Aragão*
Em
suas origens, como quer o geógrafo e especialista em geoestratégia e
geopolítica, Sir Halford John Mackinder (1861-1947), os russos viviam
agrupados e protegidos nas florestas, e para garantir a sua própria segurança
iniciaram conquistas, desde a Alta Idade Média aos primórdios da guerra
moderna. Nas florestas, com seus inimigos emboscados nas estepes, envolveram-se
com o animismo e a religião.
A
longa e persistente presença de mongóis com suas hordas douradas na Moscóvia
medieva, e as hordas azuis nas Ásia Central, negou aos russos a experiência renascentista,
mas conferiu aos ortodoxos eslavos uma vigorosa reação, que os tornou capazes
de resistir ao jugo mongol e ao aumento do território. Noutras palavras, a
aceitação da totalidade religiosa e comunista russa remonta a esta época de desamparo
nas matas e junto às estepes, incentivando conquistas, “habituando-os a
privações e afligindo-os com um medo paranoico de invasões”. “(March. G Patrick.
Eastern Destiny: Russia e Asia and the North Pacific Praeger ed., 1996 p.18)”.
Mackinder formulou (1904), uma teoria que
apontava para o jogo político de controlar territórios aumentando o poder
econômico e o apoio militar. Chamou essa teoria de Heartland (coração da
terra). O domínio dos mares era então essencial ao domínio britânico, e por
julgar esta posição ameaçada, aprofundou-se na teoria criando uma zona,
abrangendo as áreas agrícolas russas até a Ásia Central e chegando às planícies
da Sibéria, rico território com recursos como carbono e minerais. Essa área
interligada por ferrovias seria uma chave de poder
Na
conferência de Versailles, pós Primeira Grande Guerra, a promessa era
redesenhar as fronteiras sob a égide democrática e a extinção das guerras. A
realidade geográfica poderia ceder espaço para que a Rússia ou a Alemanha
transformassem a região em base militar, levando ao domínio da África e da
Eurásia. Na prática, Europa e Rússia deveriam, pois manterem-se divididas,
reconhecendo-se que o domínio do leste da Europa leva ao domínio de Heartland,
e daí ao governo do mundo inteiro (Mackinder, Ideais Democráticos e a Realidade
– Cósimo Classics reedição de 2020). Historicamente, o primeiro grande império
da Rússia e mesmo do corpo político do leste da Europa foi o principado de Kiev
(fins do Século XIX), o que permitiu um contato regular com o Império Bizantino
ao sul, facilitando a conversão dos russos ao cristianismo ortodoxo.
Em
termos demográficos, Kiev foi um mix de eslavos orientais nativos e de vikings
escandinavos vindos pelos rios que desaguavam ao norte. Os solos pobres
impuseram a conquista de terras mais amplas para assegurar os víveres,
delineando um império que reuniu vikings e bizantinos – “a Rússia como um conceito
geográfico cultural nasceu daí” (Kaplan, A Vingança da Geografia-RJ, Elsevier,
2013).
A
invasão dos mongóis destruiu a primeira tentativa significante de expansão
imperial na Eurásia. Aos poucos, deslocou-se para o Norte, na direção de
cidades como Smolensk, Novgorod, Vladmir e Moscou, daí despontando mais forte
em fins da Idade Média. Caracterizada no período Medieval como autocrata e até
paranoica, “haja vista a pressão mongol” a proeminência de Moscou firmou-se na
sua vantajosa posição comercial na rota de embarcações entre os rios da bacia
do Médio e Alto Volga.
Para
Mackinder, a geografia é uma ponte entre as ciências naturais e as humanas, que
plasma o povo russo e estuda os efeitos do “Earth’s Geography” na política das
relações internacionais. Em “The Geographical Pivot of History”, submetida ao
Royal Geographical Society, Londres, apresenta a sua teoria, Hearthlander, a qual,
a partir da realidade geográfica, engloba o interior da Ásia e o oeste da
Europa, tornando a região um centro estratégico do mundo.
A
Primeira Grande Guerra, com a sua organização de fronteiras (que influencia a
geopolítica até hoje), pedia precauções. Para levar avante os ideais de
democracia e a extinção das guerras, recomendava o fechamento de portas,
evitando que Rússia e Alemanha dominassem o Hearthlander, criando uma base militar
gigante. Seria como fechar um mar de forças, pois quem domina o Hertlander
também dominará a “ilha do mundo”.
Com
os nazistas, o Heartland de Mackinder foi estudado pelo geógrafo Carl Haushofer,
transformando-a numa estratégia, com o principal objetivo de atingir o império
britânico. Sua teoria interessou a Ruldolf Hess, membro do partido nazista. Na
tentativa de tomada do poder (1923), Hess e Hitler foram presos e Haushofer foi
visitá-los, oferecendo aulas sobre o assunto.
O
sonho era unir a Alemanha, depois da guerra, ao Japão e à Rússia, anulando o
poder naval britânico. Ele celebrou o pacto de não agressão, firmado entre
Alemanha e Rússia, e suas ideias, extraídas de Mackinder, foram usadas também pelos
americanos. A Foreign Affair lhe consultou sobre os rumos da Segunda Grande
Guerra e ele afirmou que se a União Soviética saísse como vencedora da Alemanha
chegaria a ser a grande província terrestre do mundo. O colapso nazista não
invalidou a teoria de Mackinder e pressagiou o enfrentamento Leste-Oeste da
Guerra Fria. Com a absorção de países do leste europeu a União Soviética passou
ao domínio. Com o poder soviético em expansão, o diplomata e historiador George
Kennan sugeriu a contenção da expansão do domínio soviético, a partir do
mercado simbólico descentrado e multipolar.
Com
o falecimento de Mackinder (6 de março de 1947), Truman, falando ao Congresso,
pediu a contenção da URSS e o apoio dos países que poderiam ser incorporados na
sua expansão. Várias bases militares foram construídas em volta dos blocos
dominados, política vista como “imperialista” e reeditada em nossos dias, sob
os auspícios da União Europeia e dos Estados Unidos, com a tática de adesão ao
bloco europeu e instalação de bases em torno do território russo.
Com a desintegração do bloco soviético (1991)
a teoria de Mackinder, com Aleksandr Dugin, professor e geopolítico russo,
fundador do Partido da Eurásia, apresenta o seu país como “prisioneiro da ânsia
do poder ocidental” (Dugin, Fundamentos da Geopolítica, 1ªed. 1997, utilizado
na Academia do Estado Maior das F.A. russas), e considera a geopolítica em dois
polos distintos: o poder naval ocidental e o poder terrestre que é o da Rússia,
numa disputa pelo Heartland. Seus estudos, enquanto líder do Centro de Estudos
Conservadores na Universidade Estatal de Moscou, sugerem o incorporar das antigas
Repúblicas Soviéticas.
Com
o intuito de fortalecer a região, o presidente Putin propôs a União Econômica
da Eurásia (2011) e assinou com o Cazaquistão e a Bielorrússia (Acordo de
Astana – Capital do Cazaquistão – 2014) a União Econômica Euroasiática,
permitindo maior integração entre esses países ligados por uma união aduaneira,
desde 2010, com o propósito de fortalecer o desenvolvimento econômico de mercado
regional. A Ucrânia não desejou participar e com Poronsheco a Ucrânia negociava
a entrada na União Europeia. A pressão russa fez o presidente ucraniano Victor
Yanukovich recuar, reprimindo as manifestações pró-europeias, e não as pró-russas,
as quais foram apoiados pela Rússia, que na oportunidade anexou a Crimeia, de
grande importância estratégica. A Crimeia fora cedida à Ucrânia (1954) por Krhrushchev,
para reforçar a unidade entre ela e a Rússia e celebrar a grande e indissolúvel
amizade entre os dois povos.
Putin
concebe a dimensão europeia da geografia russa e a Ucrânia como podendo ser
parte do todo de um projeto maior, estabelecendo uma esfera de influência a ancorar
na Europa. Brezezinski, conselheiro no período Carter, considera que sem a
Ucrânia a Rússia será um império predominantemente asiático (Global Domination
or Global Leadership, 2004) e incorporando uma população de cerca de 44 milhões
voltada para a Europa.
As
consequências do domínio soviético geraram a demanda de incorporação doa países
a União Europeia, receando-se uma futura opressão russa e, por sua vez, levando
a Rússia a preocupações com a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)
e o excessivo poder ocidental. O governo russo mantém estrita vigilância nas
fronteiras e observa os desdobramentos do avanço indireto do Ocidente na
Ucrânia, bem como as evidências da instalação de atividades biológicas
suspeitas por cidadãos não ucranianos. Era previsível que o atrito acontecesse,
a qualquer momento.
Ao
longo da História, o Império Russo fragmentou-se e ruiu várias vezes, mas de
modo diverso a outros impérios com ascensão, expansão e queda definidos no
tempo e espaço, reergueu-se inúmeras vezes. Seria um erro crasso, o desprezo à
maior potência terrestre do mundo (quase 50% da circunferência da terra),
ressurgindo em nossa época e com uma intensa e longa contribuição civilizatória.