Pela
madrugada
Paulo Ximenes*
“O primeiro conto foi justamente o da
autoria de um consagrado autor que prima por um português requintado, centrado
em construções meticulosas, e, por vezes, perversas no sentido de fadar o
leitor pouco calejado ao desinteresse em decifrá-las”.
Já passava das duas, e o danado do sono não vinha. Lauro Rios acabara de
fazer uma incursão investigatória sobre os canais de televisão. No primeiro,
passava um filme policial com tiros e pancadaria a valer, sem contar a
perseguição policial motorizada, que culminou num carro enorme voando sobre uma
ponte e se espatifando sobre um barco ancorado (os americanos adoram cenas de
perseguição motorizada seguidas de explosão e destruição de carros e barcos
ancorados!).
No segundo
canal, o filme era sobre um diabo chifrudo, que, sem motivo algum, num terror
brutal, atacava uma família indefesa nos ermos de uma montanha. No terceiro, um
desenho animado bem ao estilo japonês, com uma garotinha fantasiada de robô,
bamba no karatê, salvando o mundo dos alienígenas. No quarto, um orientador
religioso engravatado prometia o céu e a terra a quem lhe pudesse dar audiência
e dízimos. No quinto, a reprise de uma partida de futebol da segunda divisão do
campeonato paulista. E no sexto, uma espécie de propaganda eleitoral gratuita,
fora de época.
─
Que lástima!
O sétimo canal foi o fim da picada. Sozinho em seu
quarto, ele expeliu uma baforada e esfregou a ponta do cigarro na aba do
cinzeiro. Ato contínuo desligou o aparelho: banira de vez a imagem daquela
loira em trajes sumários, executando a coreografia da “boquinha da garrafa”, um
sobe-e-desce em 1996.
O Dr. Rios era homem crispado por decepções
afetivas. Decidido levar a vida em solteirice, tinha lá suas restrições. Turrão
na defesa dos seus pontos de vista, beirava o limite da chatice; devia até a
alma ao mestre Valtaire, na sua
infinita complacência para com o pensamento alheio.
Um programa de televisão, ao seu enfoque, é projeto
comercial sustentado pela audiência, cabendo ao IBOPE alarmar e justificar
quaisquer meios necessários à obtenção dos resultados. E no que dava tudo isso?
Espetáculos chinfrins! É claro! A televisão, debaixo do seu nariz, provia a
globalização dos costumes, atropelava regionalismos e alimentava processos de
aculturação. Tal nivelamento apagava o sentido das coisas: o sertanejo
nordestino se atira na gíria carioca; o gaúcho-das-fronteiras dança o axé da
Bahia e o tupiniquim bom de flecha rodopia na boquinha da garrafa...
Acuado pela insônia, tentou a conexão com a
internet, o que por algum motivo não lhe foi possível (lastimava também o mau
uso dessa ferramenta que podia fazer brilhar o mundo). E na extrema falta de
alternativas partiu para o inusitado: apoderou-se de um livro. Sim, literatura
pura! Tratava-se de um exemplar de duzentas páginas que recebera de um amigo, e
que nunca tivera a curiosidade de inaugurar.
Esboçava-se ali um fiasco iminente: de um lado, uma
espetacular coletânea de contos de diversos autores consagrados, e, do outro,
um neófito na literatura, mais precisamente um diplomado em engenharia, confinado
aos números frios, à objetividade insossa dos relatórios.
Gente como ele tem olhos duros. Um romance é coisa
sem graça. Uma história inventada pela cabeça dos outros que não lhe valeria
horas e mais horas afundado numa poltrona. E também não veria brilho na poesia,
senão em breves versos decorados e recitados em voz alta, à guisa de se
agraciar algum momento ocioso num evento onde haja um mínimo de refinamento
cultural. Muito pior seria o conto de feição nitidamente pútrida: a ferida
exposta, a imundice de uma mosca emporcalhada passeando impunemente em lábios
indulgentes, o urinol cheio até a tampa onde boiam inchadas pontas de cigarros,
tão comuns no que há de melhor no gênero contista do país.
O
engenheiro poliu as lentes dos óculos, ajeitou-se no pijama e estirou as pernas
sobre o colchão da cama. O primeiro conto foi justamente o da autoria de um
consagrado autor, que prima por um português requintado, centrado em
construções meticulosas, e por vezes perversas, no sentido de fadar o leitor
pouco calejado ao desinteresse em decifrá-las. E como era de se esperar, um
longo parágrafo logo lhe exsurgiu como um tratado peçonhento. Leu tudo outra
vez, sem resultado satisfatório. Travou-se. Aquilo era uma afronta à sua
inteligência. Mudou-se para a poltrona, firmou os óculos nas orelhas e se
atracou desta vez no livro como quem pegasse uma arma e partisse para a guerra.
Vamos ver agora! Percorreu palavra por palavra, ponto por ponto, vírgula por
vírgula, atentou para as concordâncias, buscou concatenar um sentido lógico
entre as sentenças, foi atrás dos sujeitos e dos predicados, recorreu ao
Aurélio. A névoa persistia.
Tendo volvido o livro à prateleira, ponderou a
possibilidade de se dirigir ao térreo e de se juntar ao pessoal do 604 que
ficava até as altas horas das madrugadas traçando baralho. Depois viu que não;
aquilo era um antro de futilidade, e ainda por cima jogavam apostando dinheiro.
Um deles, todo o prédio sabia, vivia atolado em dívidas por conta disso. A hora
ia passando, passando, até que... Pronto! Lembrou-se de uma caixa novinha de Diazepan que dormia na segunda gaveta do
seu criado mudo.
*Paulo Ximenes
Cronista e Poeta
Titular da Cadeira de nº 12 da ACLJ
Titular da Cadeira de nº 12 da ACLJ
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