ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO E PROGRESSO
Rui Martinho Rodrigues*
As transformações do Estado
A adjetivação do Estado como democrático, classificado logo após
como “de direito” não e apenas um pleonasmo destinado a enfatizar a natureza
democrática da organização jurídico-política referida. Pretende fazer a
distinção entre o Estado liberal, que é um Estado de direito entendido como
guardião das liberdades negativas, que são aquelas de agir e fazer; a defesa
dos direitos potestativos, que não admitem contestação, mas são de mera liberdade
negativa, sem o sentido de patrocínio, sem título de crédito contra terceiros.
O Estado Democrático de Direito (EDD) se coloca como “etapa evolutiva do
Estado”, não apenas “mais avançada” do que o Estado absolutista e o Estado
liberal. Até o Estado social seria menos avançado do que o EDD. Tem, portanto,
o pressuposto de que a história social e política é evolutiva, entendendo-se
como tal uma marcha triunfal na forma de uma sucessão de aperfeiçoamentos.
A superioridade do Estado liberal em face Estado absolutista
concebido por Thomas Hobbes (1588 – 1679) não é objeto de discussão, podendo
ser afastada, a exemplo da conduta adotada nos processos judiciais, denominada
saneamento do processo, quando são retiradas de pauta os pontos não litigiosos.
Registre-se apenas que o Leviatã hobbesiano se legitimava por oferecer
segurança em face das desordens, descritas como tendentes à guerra de todos
contra todos. O Estado liberal ofereceu mais do que proteção contra desordens
ou algo mais grave, como a alegada guerra de todos contra todos aludida por
Hobbes. Ofereceu liberdade concebida como aptidão para exercer escolhas no
campo do agir e fazer, conforme José Guilherme Merquior (1941 – 1991), na obra O
argumento liberal.
O Estado social ofereceu bem-estar na forma de proteção aos grupos
vulneráveis, propondo ainda a superação das desigualdades, sendo ultrapassado
pelo EDD que pretende oferecer proteção a todos, não apenas aos vulneráveis,
resguardando não apenas as necessidades objetivamente descritas como básicas e
hierarquizadas por Abraham H. Maslow (1908 – 1970). A superação do Estado
social pelo EDD é apresentada por Carlos Simões, na obra Teoria &
crítica dos direitos sociais.
Definido o que sejam necessidades humanas, segundo um padrão
hierárquico não concebido pelos cidadãos, mas por “quem detém o conhecimento”,
ganha “legitimidade” o poder exercido por uma elite política, intelectual e,
por que não dizer, virtuosa, temos de volta o projeto dos reis filósofos de
Platão (428 a.C.– 348 a.C.), da obra A república, considerada o Magnum
opus do autor citado, embora ele tenha escrito uma retratação na obra As
leis. Os intelectuais são deslumbrados com A República, afinal, nela
eles são “mais iguais”, como diria George Orwell (1903 – 1950), na obra A
revolução dos bichos.
O que seria a evolução histórica?
A dinâmica da História, na Antiguidade clássica, era um eterno
retorno. Em Eclesiastes 1: 9 lemos: “O que foi é o que há de ser; o que
se fez, isso se tornará a fazer; de modo que nada há novo debaixo do sol”. O
eterno retorno estava também no pensamento dos gregos, conforme G. Reali e D.
Antiseri, na obra História da Filosofia. Outra visão da dinâmica dos
fatos históricos entende que o processo civilizatório é uma marcha triunfal na
forma de sucessivos aperfeiçoamentos, como dito.
Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra História e memória,
distingue as transformações ocorridas em diferentes âmbitos. Assim, o campo da
técnica avança rapidamente de aperfeiçoamento em aperfeiçoamento. A ciência
também progride, mas em ritmo mais lento. Karl R. Popper (1902 – 1994), na obra
Textos escolhidos, corrobora com Le Goff ao dizer que a ciência cresce
corrigindo erros, logo, cresce no sentido de aperfeiçoamento. Le Goff adverte
que as instituições, poderíamos destacar aquelas de natureza
jurídico-políticas, não avançam sempre na direção do aperfeiçoamento, mas
descrevendo uma curva cheia de altos e baixos. Não há uma tendência evolutiva
no conjunto das transformações históricas.
As instituições passam por transformações valoradas ou não como
aperfeiçoamentos, dependendo das concepções adotadas. A dinâmica dos
acontecimentos pode ser vista como determinada pela organização das forças
produtivas, nos termos do “modo de produção” e as transformações seria obtidas
pelo conflito. O reducionismo da História ao conflito é mais estreito quando
descrito como luta entre as classes sociais. O materialismo histórico, assim
compreendido, é uma das vertentes da percepção da marcha dos acontecimentos
históricos como evolução com o significado de aperfeiçoamento. A concepção
evolutiva da história ganhou força quando o mundo contemplou a grande evolução
da ciência, da técnica e das organizações político-jurídicas.
Outra visão da História ressalta o fato de que os aperfeiçoamentos
da organização social, política e econômica, bem como os grandiosos avanços da
ciência e da técnica só poderão ser considerados progresso da História, no
sentido de aperfeiçoamento, se servirem para nos tornar (i) mais aptos a
superar os nossos conflitos íntimos. Mas estamos menos ansiosos, menos
insatisfeitos com o que somos ou fomos? Dependemos menos da ajuda de
profissionais? Dependemos menos do escapismo que nos leva às drogas psicoativas
lícitas ou ilícitas? O suicídio declina? A resposta negativa se é apropriada
para cada uma destas perguntas. O “progresso” deve (ii) nos capacitar a
conviver melhor com o outro. Convivemos melhor com os nossos familiares,
vizinhos, colegas de trabalho, professores, alunos, patrões, empregados e
demais comunicantes do que no passado? A criminalidade tende a cair
continuamente ao longo da história? A paz é a tendência histórica contínua? Não
é a resposta a todas estas indagações. (iii) Precisaríamos, ainda, para
sermos aperfeiçoados, conviver melhor com a natureza. Não parece que isso
esteja acontecendo. Então progresso, considerado genericamente, ou tomado como
tendência histórica contínua nas relações sociais é falácia. Progressismo é
ilusão.
Fica a promessa de trazer mais algum complemento.