HEGEMONIA
E ORTODOXIA
Rui Martinho Rodrigues*
O movimento político e cultural impulsionado pelo Iluminismo se aproximou do completo êxito. Secularizou a cultura. A política como engenharia social e antropológica, dirigida por sábios semelhantes aos reis filósofos de A República de Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) dominou os meios intelectuais e artísticos.
Pesquisa sociológica, histórica, a reflexão política, filosófica e até teológica, sofreram influência da ideia de uma ordem concebida por sábios, levando Raymond Aron (1905 – 1983) a cunhar a expressão “ópio dos intelectuais”, na obra assim intitulada.
Os iluministas lançaram mão do enciclopedismo
para difundir a ideia da engenharia social e antropológica. O advento dos
jornais também foi usado para este fim. O surgimento de jornais tem sido associado
a uma onda de revoluções, com destaque para a Francesa, de 1789.
A Sociedade
Fabiana, surgida na Inglaterra, na década de 1880, reuniu intelectuais e
líderes de diferentes áreas com o objetivo de promover o socialismo. O título invoca
a memória do general e ditador romano Quinto Fabio Maximo (275 a.C. – 203
a.C.), que ganhava batalhas sem travar combates decisivos, fustigando o
adversário com escaramuças, desgastando-o até obter vitória. Nem é preciso
lembrar a influência do Iluminismo.
Os fabianos não queriam cargos no governo.
Pretendiam mudar o pensamento da sociedade, algo semelhante ao que Mao Tsé Tung
(1893 – 1976) expressou ao dizer que tinha como objetivo a conquista de
corações e mentes; György Lukcás (1885 – 1971) disse, em um dos seus
pronunciamentos, ter como objetivo a conquista da cultura; Antônio S. F. Gramsci
(1891 – 1937) declarou o seu pensamento sobre a inutilidade que seria, no ocidente, tomar o palácio de
inverno (aludindo ao que foi feito na Revolução Russa), dizendo ser necessário
obter a hegemonia ideológica, na obra Os Intelectuais e a Organização da Cultura; Louis Althusser (1918 – 1990), por seu turno, na
obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos do
Estado, dedicada inteiramente ao desafio da hegemonia ideológica. Os frankfurtianos
todos dedicaram-se ao problema da indústria cultural e ao domínio da cultura.
A análise das transformações culturais e políticas
do momento deve começar pelo sentido em que usamos as palavras ideologia, hegemonia,
guerra cultural. Este último aspecto guarda relação com os conceitos de liberdade,
igualdade, bem-estar social, segurança jurídica e justiça. Um pequeno ensaio
como este só pode oferecer uma degustação do desafio de tentar compreender o
tempo presente.
Ideologia expressava um conjunto de conceitos e explicações que
orientavam escolhas políticas e sociais, pessoais ou coletivas. Adquiriu o
sentido de uma percepção ou discurso distinto do conhecimento epistemologicamente
válido, fundado na razão e nos fatos. Servir a um poder ou projeto de poder,
legitimando-o, é o seu objetivo. (Dicionário
de ciências sociais, FGV. Coordenado por Benedicto Silva). Hegemonia, para
os estoicos, era a razão que anima e governa o mundo, merecedora do poder e do
domínio sobre tudo (Dicionário de
Filosofia; Nicolas Abbagnano).
Guerra cultural sofre objeção de quem
argumenta contra a banalização da palavra guerra. Carl P. V. G. Clausewitz
(1780 – 1831), na obra Da Guerra,
definiu guerra como a continuação da política por outros meios. Aceita a
proposição do general prussiano, o corolário do seu conceito também é válido:
política é uma guerra travada por outros meios. Guerra é um conjunto de meios
para alcançar um fim contrariando a resistência de opositores.
Clausewitz
distinguia guerra real de guerra absoluta. Real é a observável na experiência
histórica. Absoluta é a pertencente ao mundo das ideias e concepções abstratas.
Guerra cultural não banalizando o conceito, cabe perfeitamente na concepção de
guerra absoluta do pensador citado. Visa impor uma mudança cultural, política e
econômica radical, valendo-se de todos os meios para submeter a resistência.
O conjunto de conceitos e explicações que
orientam escolhas políticas, posto a serviço de um poder ou projeto de poder (ideologia),
impacta em tudo, influenciando a visão de mundo. A política é impactada pela
ideologia no que concerne à liberdade, igualdade, bem-estar, justiça e
segurança jurídica. No campo político e ideológico, omissão, informação parcial,
satanização do outro, negação e adulteração de dados alternadamente com o
discurso abstrato, conceitos indeterminados e promessas sedutoras são armas
largamente usadas.
A manipulação – seja como doutrinação, como
catequese ou outra forma de proselitismo, pode ser flagrada no magistério e na
mídia quando ideias ou modelos apresentados não são submetidos ao contraditório.
A falta de objeção às visões e aos autores ministrados é imperdoável. Teoria do
valor trabalho versus teoria marginal do valor; liberdade de agir e de fazer
versus liberdade de ser; igualdade de todos em tudo (sem exemplo histórico,
abstração utópica) versus igualdade de todos em algo (perante a lei, não na
lei); igualdade de alguns em tudo (os reis filósofos de Platão) versus
igualdade de alguns em algo (menores, gestantes, idosos, aposentadoria, serviço
militar para homens).

Não fazer distinções como estas, apresentando
propostas vagas, baseadas em conceitos indeterminados é uma poderosa tática de
proselitismo. No conto Teoria do Medalhão,
de J. M. Machado de Assis (1839 – 1908), um pai ensina o filho a fazer sucesso
valendo-se, entre outras coisas, do discurso vago, que permite a qualquer um
entender como algo com que concorda.
Bem-estar é outra arma na guerra cultural. É
um conceito indeterminado. Abraham H. Maslow (1908 – 1970) definiu uma
hierarquia de necessidades que qualificou como básicas, roteiro da plena
realização. O psicólogo esqueceu a subjetividade. A hierarquização das
necessidades é apresentada por ele como um dado objetivo.
O prato de comida, o
celular da nova geração, a roupa de marca e tantas outras coisas não exercem
atração conforme uma hierarquia definida de necessidades, embora existam
tendências. A subjetividade das necessidades faz do bem-estar uma sequência
interminável de desejos. A transformação da cupidez em direito legítimo e a sua
frustração como opressão é uma poderosa arma no campo da guerra política no
campo cultural.
Criamos uma sociedade de inimputáveis, já que
a opressão entendida como aspiração não realizada por culpa de terceiros exclui
a responsabilidade individual. Quem oprime é o outro. O sucesso é
responsabilidade do Estado provedor e da sociedade. A liberdade de ser, ao
excluir o sentido do dever, introduz a instabilidade da modernidade líquida (Zygmunt
Bauman, 1925 – 2017) e com ela a incerteza e a insegurança.
A desorientação se agrava quando se pensa que “livre
pensar é só pensar” (Millôr Fernandes [Milton Viola Fernandes], 1923 – 2012). O
pensamento é uma alvenaria. Os seus tijolos são conceitos e dados cimentados
por rigorosa vigilância epistemológica. Não basta pensar sobre inflação quando
não se conhece um conjunto de saberes como a teoria quantitativa da moeda, a elasticidade-preço
etc. Não basta pensar as relações sociais sem distinguir a teoria de
estratificação social baseada na origem da renda versus teoria de
estratificação baseada na quantidade de renda (posição no mercado). Pensar
exige estudo prévio.
A hegemonia é ortodoxia. Sataniza a divergência
como ignorância ou má-fé, projetando no outro a própria condição. Os que
resistem à catequese passam à condição de insensíveis, preconceituosos ou
fascistas. A exitosa guerra cultural ocupou os sindicatos, as escolas, a mídia
e o aparato estatal. Mas nunca é tarde para defender a liberdade de agir, a
igualdade de todos em algo, a liberdade de consciência e a paz da segurança
jurídica, do governo das leis.