ENCRUZILHADAS HISTÓRICAS
Entre os trágicos
e os ungidos
TERCEIRA PARTE
Rui Martinho Rodrigues *
A lógica binária
As novas preocupações políticas repudiam
algumas classificações binárias, sobretudo no campo das questões identitárias.
Sistemas duais restringem o campo da cognição e isso impacta nas liberdades;
são reducionistas e ignoram parte da realidade. Norberto Bobbio (1909 – 2004),
na obra Direita e esquerda, analisa as possíveis diferenças entre os
grupos que estão no título do livro. Enumera convicções democráticas, autoritárias
e totalitárias, nacionalismo e cosmopolitismo, pacifismo e belicosidade,
voluntarismo e determinismo ou conceitos assemelhados aos tópicos aqui
enumerados. Fez o exame inicialmente na perspectiva da ontologia do ser.
Concluiu que todas as tendências examinadas
eram encontradas tanto entre direitistas como entre esquerdistas. Mas no final
admitiu que a dicotomia existe quando vista da perspectiva fenomênica. Grupos
assim designados são observados empiricamente. Assim colocou os dois grupos
políticos na perspectiva fenomênica e os reconheceu. Isto é: direita e
esquerda realmente existem como realidade posta (fenômeno), quando examinados sem
que se trate da essência das coisas. Bobbio Enfatiza a existência de muitas
características comuns aos dois grupos, na perspectiva ontológica,
concernente às essências inerentes à metafísica do ser.
A problematização feita por Bobbio é
confirmada pelas diferenças internas dos dois grupos. Karl H. Marx (1818 –
1883) teria dito que a esquerda só se une na cadeia, porque o espaço é
apertado. A direita também se queixa da falta de unidade entre os seus
integrantes. Subdivisões de partidos ideológicos, causando conflitos internos,
são públicas e notórias. As supostas distinções binárias da política são
substancialmente frágeis, embora possam ser politicamente fortes. Dizer que a
direita defende a liberdade e a esquerda luta pela igualdade passa ao largo das
diferentes concepções do que sejam tais coisas. A disputa pode ser por
concepções de liberdade e igualdade, mas isso não é tudo. Dizer que é contra ou
a favor de uma delas é considerar, sem examinar, que só as concepções de um
lado estão certas.
Podemos ter liberticidas havidos como
defensores da liberdade; ou elitistas disfarçados de igualitaristas,
conforme exemplos históricos de regimes “populares” ou “democráticos” que se
transformaram em oligarquias semelhantes a monarquias absolutas e hereditárias.
Georg Orwell (1903 – 1950), na obra A revolução dos bichos, descreveu
bem o caráter liberticida e elitista que se oculta sob o manto libertário e
populista.
Atribuir aos conceitos direita e esquerda aos
lados da Assembleia revolucionária francesa, em que se posicionavam
conservadores e revolucionários, seria reconhecer monarquistas conservadores
como direita e revolucionários como esquerda. Mas a realidade não é tão
simples. Fascistas são revolucionários. Serão direita ou esquerda?
Artificialidade da dicotomia política
Os dois grupos realmente existem nos meios
políticos, como realidade posta no mundo fenomênico. A observação empírica,
todavia, não afasta algumas bases comuns aos dois grupos, nem a diversidade
interna deles. A suposta unidade dos dois polos passa ao largo das suas
contradições internas. Quem defende o uso de drogas psicoativas ou casamento
entre pessoas do mesmo sexo é esquerda? Pode ser, mas terá
consciência de que estas defesas guardam estreita relação com a ideia de
que o indivíduo pertence a ele mesmo? Tal entendimento se opõe ao
coletivismo que o submete a individualidade. Classes sociais e grupos
identitários, enfatizados pela esquerda, querem o indivíduo submetido às
coletividades, opondo-se à direita, que se opõe à tutela do Estado sobre os
cidadãos. Mas a esquerda também pode achar que o indivíduo pertence a
si mesmo, e usa isso contra o poder do Estado quando se trata de
criminalizar o aborto.
O indivíduo pertence a ele mesmo? Isso ampara
o direito à posse de um meio de defesa (arma). Ideia da direita? O mesmo
princípio é invocado pela esquerda e pela direita, em situações aparentemente
diferentes, mas a base é a mesma: a tese de que a pessoa pertence a
ela mesma. O uso dos conceitos ressignificados serve para encobrir
contradições ou falta de conhecimento dos fundamentos das tradições políticas.
Mas a dinâmica da política foi capturada pela dicotomia direita e esquerda. O
sucesso da dualidade, na prática política e até na produção intelectual, se
deve ao caráter simplista do reducionismo, que agrada porque
atende a um princípio de propaganda: não exige maiores reflexões. Basta
um “carimbo”: direita ou esquerda. Não precisa de explicar, nem perguntar o
significado de conceitos polêmicos.
O presidente da Argentina, Javier Milei,
defende menos Estado. Propõe até o fim dos bancos centrais, como seguidor que é
de Friedrich Hayek (1899 – 1992), que já se opunha ao monopólio da moeda pelo
Estado antes do advento das criptomoedas. Também defende a liberdade de
expressão. Mas a rotulagem binária o coloca como direita, o que não seria problema
se não o colocassem no mesmo grupo do fascismo, na classificação dicotômica,
grupo que defende mais Estado. Ou fascismo é esquerda?
Outra crítica pertinente diz respeito ao maniqueísmo.
Uma alta personalidade do mundo jurídico, falando em uma manifestação de um
grupo ideológico, disse “nós vamos vencer porque somos “do bem” e eles
são “do mal”. Isso é uma forma de manipulação. Não exige estudo ou
reflexão. Enseja pronunciamentos curtos que podem ser lidos, ouvidos e
compreendidos por quem não gosta de ler nem de pensar. Serve a quem quer
desqualificar o outro sem análise e sem provas.
A dicotomia do espírito da política
Thomas Sowell (1930 – vivo) faz muitas e
severas críticas ao maniqueísmo. Mas, na obra Os “ungidos”, propõe uma
dicotomia que nos coloca na encruzilhada entre os ungidos e os trágicos.
Usa, para definir os dois grupos, a presunção de superioridade moral e
intelectual dos “ungidos”, que oferecem soluções perfeitas, se julgam capazes
de conceber um paraíso terrestre, de modo semelhante a um demiurgos ou,
minimante, como alguém capaz de empreender uma reengenharia social e
antropológica.
Opostos ao ungidos temos os trágicos, que
não acreditam em solução final para os infortúnios da
existência, mas acreditam na falibilidade das soluções para os
problemas, as quais, além de imperfeitas, causam novos inconvenientes. Ao invés
de soluções acreditam em troca de problemas, buscando minorar os danos.
Evitam a ressignificação de palavras.
Por reconhecerem o próprio falibilismo
deixam aos cidadãos a livre escolha entre custo e benefício de suas
decisões. Por isso repudiam a criminalização de perigo abstrato (que só
existe se criarmos uma hipótese) como é a posse de armas; repudiam a tutela dos
cidadãos por um grupo de sábios ao modo da obra de Platão (428 a.C.– 347 a.C.) A
República. Protegem o espaço da licitude (conduta facultativa), opondo-se
ao alargamento do que é proibido e do que é obrigatório, repudiando a
publicização do Direito Civil pelas constituições dirigentes (ou
totalitárias?).