quarta-feira, 31 de julho de 2024

CRÔNICA - O Livro Não Morreu... (CRA)

O Livro não morreu...
Carlos Rubens Alencar* 


O verão toma conta do hemisfério norte e, dias atrás, enquanto caminhava pelo Central Park, em Nova York, testemunhava a festa da estação. 

A presença de maravilhosos músicos de rua me lembrou o episódio do violinista Joshua Bell tocando no metrô de Washigton D.C., onde foi simplesmente ignorado, por estar disfarçado de “músico de rua”, ainda que manejasse um Stradivarius de 3 milhões de dólares.

Então, de repente, eu vi John Coltrane. Ele estava lá, e “blue train” ecoou naquele ambiente de paz.  

Monumento a Alice no País das Maravilhas, zoológico, romaria rumo ao mosaico “Strawberry Fields”, lado oeste do parque e na direção do edifício Dakota, onde morou e foi assassinado na calçada John Lennon. 

Lembrando o Beatle, me recordei de passeios pelo Hyde Park, em Londres, e, também pelo Jardim Botânico, Rio de Janeiro, onde encontrei, nos idos de 1986, o educador Lauro de Oliveira Lima. Tivemos oportunidade de conversar longamente sobre a capacidade de aceitar quem não é igual ao que você acha certo ser. 

Cheguei a pensar: Será que um parque ecológico de aproximadamente 30 ha poderia salvar a região central de Fortaleza? Certamente que nos dias atuais o nosso centro parece condenado à degradação e depreciação contínua. 

É tempo de pensar. Os avanços em Tecnologia da Informação, Internet das coisas e a Inteligência Artificial viraram o mundo em 20 anos de cabeça para baixo. Minha geração está perplexa, sobre o que fazer, quando e como fazer. 

A chamada geração Z assume o protagonismo, na esteira da modernidade líquida e da pós-verdade, as quais compõem um “arranjo” que coloca em xeque, ao mesmo tempo em que acena para a importância dos livros como elemento de resistência, levando-nos para um novo universo de reflexão, que certamente não será influenciado por nós, velhos “baby boomers”. 

A resultante da nossa geração é uma sociedade extremamente injusta, onde a remuneração do capital supera o crescimento da produção e da renda, gerando distorções que acentuam as desigualdades. Essas, por sua vez, destroem os princípios que fundamentam as democracias e a natureza humana.  

Acredito que é na dívida pública que se localiza o grande pacto político e social a ser construído no País. Fora disso, continuaremos a ter a sociedade que temos hoje, cuja resultante mais visível é o aumento da violência, expressão cristalina do fracasso humano. 

Na Internet, onde todos somos um produto, as nossas “verdades ou mentiras” são postas e muitas fogueiras são acesas. Tudo de acordo com as necessidades dos novos tempos, que começaram na sociedade de consumo, onde se participa ou se é engolido por ela. Cresci lendo Álvaro de Campos. Lembro-me do dono da tabacaria. 

“Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?”.

CRÔNICA - Palavra (TL)

 PALAVRA
Totonho Laprovitera*

 

Os africanos chamavam de “candango” seus colonizadores portugueses. Era um termo pejorativo atribuído a um indivíduo ordinário, ruim. Porém, no Brasil, a palavra mudou de sentido. Referindo-se positivamente às pessoas que trabalhavam na construção da sua nova Capital, “candango” virou sinônimo de desbravador, de homem que confia no progresso, de brasileiro comum e operário de Brasília. 

Pois bem. Certa vez, ouvi dizer: “Hoje em dia só quem tem palavra é dicionário.” Não essa máxima sobre a importância de uma palavra dada. 

Na enseada do Mucuripe, enquanto eu espiava as ondas do mar pautando a praia, ouvi um senhor de cabelos brancos dividir suas reflexões sobre a vida, sentado na coxia da calçada. Ele falou que uma palavra é mais valiosa do que qualquer papel assinado, pois quando prometemos algo a alguém, fazemos valer nossa integridade e confiança. A palavra representa o nosso tutano, resume a nossa própria essência. Aquelas palavras, ditas com convicção o e sabedoria, fervilharam em minha mente. Passei a prestar mais atenção nas promessas que fazia e, desde então, tento viver de acordo com essa simples lição. 

Também sobre o mote, as palavras têm um grande poder. Elas inspiram, motivam, acalmam, ferem ou até mesmo mudam o curso da história. O modo como as usamos pode definir como somos percebidos e como nós percebemos. Elas têm o poder de unir pessoas, de criar laços de entendimento e empatia. Por outro lado, podem ser usadas para dividir, ferir e para semear discórdia. 

Pois é, as palavras têm consequências, e é responsabilidade de cada um de nó s usá-las com sabedoria. Podemos escolher palavras que elevem, inspirem e promovam a paz e a compreensão. Podemos usar nossas palavras para construir um mundo melhor, onde o respeito, a gentileza e a misericórdia sejam as bases do nosso diálogo. As palavras têm poder, e cabe a nó s usá-las da melhor maneira possível.

No mais, “seu” Cizota, então carcereiro da antiga cadeia pública da cidade do Icó, foi desafiado por um velho conhecido: 

– Cizota, eu lhe dou um negócio a cada palavra que você disser certa. São três, tá bem? 

– Cuma? 

– Perdeu a primeira. 

– Pois me dê uma chanche! 

– Perdeu a segunda. 

– Tumém... 

– Perdeu a terceira.

terça-feira, 23 de julho de 2024

NOTA ACADÊMICA - 5ª Reunião da Arcádia Alencarina

 ARCÁDIA ALENCARINA
PRIMEIRO ANIVERSÁRIO
5ª REUNIÃO
DOS
FARDONADOS 

 

A Arcádia Alencarina é um departamento interno da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo (ACLJ), formada pelos acadêmicos acelenanos titulares que administram e subvencionam a Confraria.

 

Suas reuniões solenes são privadas e visam projetar a instituição nas redes sociais da Internet, delas participando os árcades disponíveis entre os onze bastonários, em seus fardões acadêmicos, e entre eles acelejanos convidados.

A sua 5ª Reunião ocorreu na noite do último dia 10 de julho, quarta-feira, nos domínios do árcade Sávio Queiroz Costa – mesma locação da Reunião Inaugural.

Presentes os árcades Adriano Jorge, Arnaldo Santos, Pedro Bezerra de Araújo, Reginaldo Vasconcelos, Vicente Alencar e Vianney Mesquita, além do anfitrião, Sávio Queiroz Costa. 

Tiveram assento na Mesa de Honra o Titular Cândido Albuquerque, Reitor Emérito da Universidade Federal do Ceará, o empresário e bibliófilo José Augusto Bezerra, Membro Benemérito, e o empresário Carlos Rubens, representando o Benemérito Beto Studart.

 

Presidindo a sessão o Dr. Lúcio Gonçalo de Alcântara, Membro Benemérito e Presidente de Honra Interino da ACLJ, que abriu os trabalhos e ao final os encerrou, com duas brilhantes performances oratórias – tendo também falado José Augusto e Cândido Albuquerque.

Os confrades acelejanos convidados foram Edmar Ribeiro, Humberto Ellery, George Tabatinga e César Barreto.

  

Durante a sessão prestaram-se tributos póstumos ao confrade João Bosco Serra e Gurgel, falecido no dia 1º do mês, e ao jornalista Sebastião Belmino, que fizera a passagem para o Éden no dia seis. 

Em sua homenagem o árcade Pedro Bezerra de Araújo declamou uma poesia de sua lavra, intitulado “Saudade Presença”, acima, na voz de Reginaldo Vasconcelos.

Em seguida o grupo rezou o Pai Nosso em sufrágio de suas almas, enquanto Pedro dizia a prece em latim.

 

Ao final, após o tradicional brinde com vinho do Porto, foi servido o jantar, nas opções risoto de camarão e arroz de carneiro, regado a vinho rose italiano. 

Vólia Uliânova, Graça Leandro e Jô Nogueira assinaram o cardápio. Cira Leona e Rocélio, da CL Produções, fizeram os registros fotográficos e cinegráficos para as mídias em geral.  

segunda-feira, 22 de julho de 2024

CRÔNICA - Mágoa Magoa (PN)

 MÁGOA MAGOA
Pierre Nadie*

 

É um tapa que a gente não espera. Não há como escapar. Andarilhos, seresteiros, truões, cientistas, todos caminhantes são surpreendidos por essa visita. Amigos e amantes, colegas e parceiros não conseguem isentar-se dessas incômodas picadas.  

Em algum momento da caminhada, ela vai bater em nossa alma, ferir nossos sentimentos, questionar nossa autoestima. Todavia, ela também toca o nosso corpo. 

Não são apenas coisas materiais que nos podem causar mal, com danos ao nosso organismo. Os males orgânicos, decorrentes de diversas causas, não exibem tanto a nossa fragilidade quanto aqueles invisíveis que nos tomam pensamentos, sentimentos e emoções. Mágoa magoa. 

E a imediata sensação que acomete a pessoa fermenta, borbulha e salpica. Todavia, se não deixarmos que a mágoa adentre nosso espirito, ela, qual bumerangue, volta-se para o emissor e seu efeito maior está no rebote, que duplica seu efeito. Quem fere quer ver a ferida, quem magoa quer ver o magoado. É a lei da emissão desse dardo. 

Há uma outra face da mágoa. Ela abre os nossos porões e nos outorga uma perspectiva de aprendizagem vivencial, um exercício de autoavaliação, induzindo à tolerância e criando oportunidades de autocontrole, o que motiva um crescimento de nossa autoestima. 

Se a mágoa segue na correnteza de nossos rios, não há como empoçar no ódio, no orgulho, na vingança, na perseguição. E, então, a mágoa não será uma "má água".



CRÔNICA - Kit Rapariga (MMG)

 KIT RAPARIGA
Marcos Maia Gurgel*



Da minha terra recebo um telefonema, em princípio estranhíssimo. Era um colega dentista com atuação em várias frentes de odontologia na região, porém apenas como clínico. 

Ele me pediu para ajudar uma adolescente inocente, uma jovem que, segundo ele, precisava completar o seu sonhado “kit rapariga” – e foi logo adiantando o assunto, talvez por notar a minha perplexidade e o meu silêncio.

– Kit rapariga?

– Pois bem – disse ele:

– Ela diz que já tem uma moto cinquentinha, tem um aparelho celular smartphone de última geração, e, portanto, só precisa de um aparelho ortodôntico para completar o seu kit e ter direito a esse título.

Falei com um colega do Serviço Público – aliás, louvores ao Estado por proporcionar esse tipo especializado de tratamento – e ele prontamente me atendeu.

Enfim, a bela moça conterrânea voltou para o nosso Município (dela, meu e do colega que intercedeu em seu favor), já pronta para desfilar, e abafar, e amar. O seu kit rapariga estava completo.



NOTA DA REDAÇÃO

Vários leitores nos consultam sobre por que uma motocicleta cinquentinha, um celular de última geração e um aparelho ortodôntico constituiriam um “kit rapariga”.

A repercussão dessa croniqueta do satírico Marcos Gurgel dá sinais de que se trata de uma peça especial de literatura ligeira, capaz de atrair a atenção do leitorado e de suscitar indagações.

Essa capacidade de revolver o espirito do leitor, distraindo-o do banal e do previsível, fazendo-o pensar, emocionar-se, indignar-se, escrutinar as entrelinhas, é a maior virtude que se pode constatar de um texto escrito e publicado.

É cabível, corriqueiro e até necessário que o receptor de uma mensagem peça esclarecimentos a quem declara ou informa algo, para que se expresse de forma mais clara e inteligível.

Porém, não se pode pedir explicações ao autor de uma poesia, de uma letra de música, de uma crônica, enfim, de um texto literário de vocação conotativa, sobre o que ele quis dizer – muito menos a explicação de uma anedota. É entender, ou calar.

Mesmo assim, para propor ao leitorado um exercício intelectual inteligente, lembramos que se pode facilmente intuir que os três itens referidos representem para uma adolescente sertaneja a sua plena emancipação social.

Isso porque lhe dá mobilidade para ir e vir, trânsito virtual na Internet franqueado, enquanto o aparelho ortodôntico, como se sabe, tornou-se sonho de consumo dos meninos e meninas, um modismo da "geração saúde", um item de status juvenil.

A acepção clássica da palavra “rapariga” é o feminino de “rapaz” – patamar a que moços e moças aspiram e atingem ao evoluir da adolescência – de modo que  se assim se expressou o autor, assim a deve entender o leitor bem advertido.

Bem, resta aos incautos cair na “pegadinha” de resgatar a conotação preconceituosa que o vocábulo “rapariga” adquiriu no passado, nos rincões do Ceará – e talvez seja exatamente isso que, matreiramente, o escritor quis provocar.

Vai ver, o dentista que requereu o benefício para a moça, qualificada expressamente na matéria como “adolescente” e “inocente”, tenha ele participado da grande diáspora de jovens odontólogos brasileiros na direção de Portugal, na década de 90, e por lá tenha escoimada a palavra “rapariga” da conotação depreciativa que ela adquiriu no Ceará.

Talvez tenha aplicando a palavra, daquela vez, ao telefone, no seu sentido regular que se adota no país que é o pai da língua – e o cronista então percebeu que ali havia o tema pronto para essa crônica burlesca. Sabe-se lá? 

Seja como for, fazer lucubrações interpretativas é o grande deleite de quem aprecia consumir textos literários e contemplar obras de arte. E proporcionar isso é o grande mérito dos autores.

CRÔNICA - O Susto do Airton (TL)

 O SUSTO DO AIRTON
Totonho Laprovitera*

 

O almoço de domingo no apartamento de Carlos Augusto e Laéria é sempre perfeito! Lá, come-se bem, bebe-se também, e a conversa, inteligentemente amena, rola farta na arte do bem-receber do casal. 

Uma vez, fomos convidados para nos deliciarmos com um peixe que a dona da casa havia preparado. Eu e Elusa fomos os primeiros a chegar, depois o Levy, e, por fim, o saudoso Airton Monte. Estava formado o time, e logo começou o jogo com uma linha doida, ao som de música medieval. 

Assuntávamos fatos, acontecimentos e ideias, quando o telefone da casa tocou. Para surpresa de todos, era para o Airton – psiquiatra, a toda hora de plantão. Uma paciente se agoniava do outro lado da linha, e ele a orientava: “O quê? Você tá na janela?! Saia imediatamente da janela, tá me ouvindo? Saia imediatamente da janela! Cadê seu marido? O quê? Você tá só em casa?! Saia imediatamente da janela!”. 

Todos ficamos apreensivos com o acontecimento, e ele continuava: “Você tá tomando os remédios conforme eu receitei? Sei, sei... Se acalme, se acalme... Não, não tem mais o quê, não! Não, não, agora, saia imediatamente da janela! Vá pra bem longe dela!”. 

O Airton insistia em orientar a paciente, que queria lhe dizer algo e não conseguia. Até que, enfim, resolveu ouvi-la: “Sim, minha filha, pode dizer. Diga... Como é que é?! Não acredito... Quer dizer que você mora numa casa que nem sobrado tem?! Ô, alívio... Olhe, pode ficar na janela, viu? E assim que seu marido chegar, vá passear de carro...”.

domingo, 21 de julho de 2024

NOTA FÚNEBRE - Marcos Gurgel é Imortal (RV)

MARCOS GURGEL
É IMORTAL
Reginaldo Vasconcelos*

 

Imenso pesar nos trouxe esta manhã do dia 21 de julho, com a notícia da passagem do querido amigo e confrade Marcos Maia Gurgel, pai do nosso mais jovem Membro Titular, João Pedro Gurgel. 

O Marcos sempre foi um lutador aguerrido, que não parou de evoluir durante a vida toda – a odontologia, o Exército, o Direito, o serviço público, o consultório – sempre estudando e trabalhando incansável pelo progresso próprio e pelo conforto da família. 

Ademais, pessoa inteligente e agradável, com uma veia satírica inesgotável, exercitada em suas crônicas e na sua coleção de histórias, que glosavam com graça e simpatia a família, a profissão e o seu amado Limoeiro do Norte – e a política cearense, da qual sempre participava intensamente, parente de Dona Osmira Castro, que foi Primeira Dama do Estado. 

Aliás, Marcos tinha no sobrenome dois importantes apelidos de família – Maia e Gurgel – indicativos da melhor eugenia cearense, dois dos clãs que mais têm gerado intelectuais de escol e juristas importantes. 

Que o confrade João Pedro e a sua família recebam os nosso sentimento fraternal e que Deus conforte os seus corações e que receba o Dr. Marcos em festa nas paragens divinais.

ARTIGO - O Brasil e o Nordeste nos Anos 50 (AS)

 O Brasil e o Nordeste
nos anos 50
Arnaldo Santos*

 

Os fundamentos históricos e condicionantes político-econômicos para o desenvolvimento tardio da Região Nordeste e o Banco do Nordeste do Brasil como ação para o projeto nacional desenvolvimentista do presidente Getúlio Vargas

De conhecimento global é o fato de que a relação de dependência econômica, científica e tecnológica do Brasil perante o mundo desenvolvido ocorreu, especialmente, à extensão de toda a primeira metade do século imediatamente anterior.

Revisitando a história desde o fim do mencionado espaço temporal, encontra-se registro da realização, já em 1947, no Rio de Janeiro, de Conferência Internacional sobre a defesa dos interesses econômicos do Brasil no Continente. No evento, os representantes nacionais cobraram ao Presidente dos EUA, Harry S. Truman, anuência para que fosse criada uma comissão bilateral com o objetivo de debater modalidades de incentivar o investimento privado no País. Propositura aceita e confirmada, organizou-se um grupo de trabalho denominado Comissão Técnica Brasil-Estados Unidos, liderada por John Abbink, representante estado-unidense, e por Otávio Gouveia de Bulhões, indicado pelo Brasil. O grupamento ficou conhecido como Missão Abbink. 

Na sequência de determinação do referido grupo, já em 1949, a Missão Abbink elaborou um documento onde analisou, não só, os segmentos econômicos e as precondições para o desenvolvimento, mas, também, a participação do Estado Brasileiro e do capital estrangeiro. Esse estudo foi a primeira tentativa de assentar um plano de desenvolvimento para o Brasil, apesar de não detalhar os projetos, tampouco de estimar os recursos financeiros necessários à implementação, o que já evidenciava sua ineficiência para alcançar os objetivos pretendidos. 

O Governo de Eurico Gaspar Dutra, a seu turno – e que vinha trabalhando paralelamente com os mesmos dados - também divulgou, em 1949, um conjunto de medidas a serem implementadas daquele ano até 1953. Essas medidas ficaram conhecidas como Plano Salte. O acrônimo SALTE é constituído pelas letras iniciais das palavras Saúde, Alimentação, Transporte e Energia, que compunham as áreas a serem incentivadas. 

Como, até então, não havia recursos externos para alavancar a industrialização, o Governo Dutra perfilhou uma política de crédito mais liberal, concedendo, por exemplo, empréstimos do Banco do Brasil a setores industriais considerados essenciais.

Dessa ideação resultaram algumas fábricas localizadas no Sudeste, mas nada de relevante para o Nordeste – o que reafirmava o afastamento da Região desde sempre – pelo fato de que o Salte não previa um planejamento em escala nacional. Ainda assim, nos últimos anos do Governo sob comentário, a economia brasileira denotava índices de crescimento expressivos, de 6% ao ano. O Nordeste, entretanto, mais uma vez não se beneficiou dessa dilatação, confirmando a tradição malsã de excludência, ainda vigente na realidade em curso. 

Nesse período, impõe-se enfatizar o fato de que, por décadas, as tragédias ocasionadas pelo clima no Brasil eram somente as “secas do Nordeste”, estampadas nas primeiras páginas dos jornais e na maioria dos meios de propagação coletiva em todo o Estado Nacional, que exibiam imagens de crianças esquálidas pela fome, migração em massa, animais no chão esturricado, forjando o estereótipo de um grande e oneroso locus para o País, já que a ação da elite política local se limitava, tão somente, a pressionar o Governo Federal por mais e mais recursos, sem, todavia, propor uma política de desenvolvimento para a Região. Essa atitude só contribuiu para reforçar o estigma de uma terra cada vez mais miserável! 

Vale o registro de que foi na primeira metade da década de 1950, isto é, correspondente ao início do segundo Governo Vargas, que ocorreu a maior saída, até então registrada, de nordestinos desesperados para outras regiões do País, especialmente para São Paulo, o que intensificou as preocupações do Governo Federal com o flagelo regional. Nesse tempo, além da seca, a economia do Nordeste vinha de um extenso período de estagnação, com agricultura atrasada e pouco diversificada, grandes proprietários de terras, débeis relações capitalistas de produção, concentração de renda e indústria com baixíssima produtividade. 

Malgrado todas essas adversidades de atraso econômico e social, baixa industrialização, falta de infraestrutura rodoviária e de transporte, energia e telecomunicações, foi que ocorreram as novas eleições. Consoante registrado na História, no dia 3 de outubro de 1950, Getúlio Vargas foi eleito Presidente da República, retornando, então, pelo voto, a ocupar a mais alçada função no País. 

Vargas tomou posse em 31 de janeiro de 1951. O debate iniciado no Governo Dutra sobre estratégias de desenvolvimento econômico teve continuidade, então, com muito maior ênfase, oportunidade em que o Presidente Getúlio Vargas aventou para sua regência a decisão central acerca das políticas sobre o tema, considerando que era necessária a intervenção governamental para direcionar o crescimento econômico brasileiro, de preferência com o apoio do capital estrangeiro.

O Banco do Nordeste do Brasil como ação para o projeto nacional desenvolvimentista de Getúlio Vargas 

No segundo governo Vargas, tinha curso um ambiente institucional favorável à criação de um banco como o BNB. No começo, havia sido objeto de promessas de campanha, apontando para a continuidade do desenvolvimento impulsionado pela ação estatal, que caracterizou o período ditatorial de Vargas. Secundariamente, experimentava seguimento uma filosofia desenvolvimentista de cariz institucional consubstanciada na Constituição vigente do País, com base na qual a ação do Estado era largamente protegida. Assim, neste entretempo – segundo Governo Varguista – mudava somente o ambiente político, com a redemocratização, via Carta Grande de 1946, mas o espírito desenvolvimentista impulsionado pelo Estado continuava muito robusto e, objetivamente, expresso no próprio Texto Constitucional. 

Nesse âmbito de efervescência desenvolvimentista, foram instituídos dois grandes bancos estatais que mudaram a própria configuração institucional do sistema financeiro nacional – o BNDES e o BNB. As motivações, todavia, para instituir ambas as instituições financeiras foram bem diferentes. A primeira distinção foi que a ideia para implantação do BNB não surgiu de um simples plano, mas de uma filosofia de governo, expressa nos vários discursos da campanha de Getúlio Vargas à Presidência da República, que era para sustentar a continuidade do desenvolvimentismo, transportado robustamente pela ação estatal, iniciado com a Revolução de 1930. Já o BNDES aflorou da ideia de impulsionar o desenvolvimento por meio da industrialização do País e, como é farto na História, inspirado pelas análises da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos – CMBEU. 

O aparecimento do BNB na ambiência regional, no início dos anos de 1950, assinala um ponto de inflexão estratégica na política até então vigente com a qual o Governo Federal cuidava dos problemas do Nordeste, onde o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs) ocupou, por cerca de 40 anos, o lugar de efígie central daquela sucessão desenvolvimentista. 

A seca de 1951-1953 registra um significado especial no argumento histórico do Banco do Nordeste do Brasil, porquanto foi depois de uma visita que o Ministro da Fazenda, Horácio Lafer, fez à Região, todavia – uma vez atingida por estiagem prolongada e devastadora –, que despontou a ideia de originar a Instituição. Assim, para o BNB, mais do que uma catástrofe em seus efeitos naturais e políticos, aquela comprida e dolorosa estiagem constituiu, também, um marco em sua trajetória. 

Em 1951, conforme há pouco expresso, ocupava o Ministério da Fazenda o político e homem de negócios paulista, que participava no Recife, naquele ano, de um evento promovido por empresários ligados ao setor algodoeiro. 

Depois que retornou ao Rio de Janeiro, por meio de uma Exposição de Motivos circunstanciada, Lafer propôs ao Presidente Vargas o instituto de um banco especial, que veio a representar, também, uma mudança radical nos procedimentos de apoio do Governo Nacional ao Nordeste, sob a visão de que esse amparo não devia se restringir apenas aos momentos aflitivos do povo da Região, mas ter um caráter de permanência, atuando como um instrumento transformador da economia regional. 

A seca de 1951-1953 e a formulação da proposta para a criação do Banco do Nordeste 

Alguns analistas entendem que o BNB foi originado em razão da visita que Horácio Lafer fez ao Nordeste em 1951, quando começava mais uma seca devastadora, e teria ficado bastante impressionado com o que viu – o sofrimento do povo atingido pela seca, a desarticulação do sistema produtivo regional e a impotência das políticas governamentais em decurso, mormente as de “combate às secas”, que eram remédios ineficazes para tanger aquela situação dramática. 

Sobra evidente o fato de que uma decisão complexa como a de sugerir o estabelecimento de uma grande instituição financeira de desenvolvimento não haveria de ser resultado de uma impressão conjuntural do Ministro da Fazenda. 

Há de se entender, então, o que motivou a formação do Banco do Nordeste, feito algo que era amadurecido, não exatamente como uma ideia de originar uma agremiação nos seus moldes, mas como fundamento para uma política sob a qual convergiam as convicções técnicas, por assim dizer, do financista Horácio Lafer, e as premissas do projeto político do Segundo Governo Varguista. A seca de 1951 patenteou, somente, um fator de precipitação, um catalisador, alguma ideação que faltava para deflagar mudanças cujos fundamentos já vinham sendo constituídos, bem antes de Getúlio Vargas assumir a Presidência pelo voto popular. 

A propósito, nem a nova política para o Nordeste, que se propunha, em que o estabelecimento do BNB foi o marco zero, era, como ideia motriz, algo tão novo assim. É azado expressar o argumento de que a falência da velha política assistencialista, exercitada havia cerca de 40 anos, tinha sido constatada há várias décadas por outro titular da Fazenda, o Ministro Ruy Barbosa. 

Na vigorosa advertência para a ineficácia daquele tratamento concedido aos flagelados pelas secas do “Norte” (o conceito de “Nordeste” ainda não existia), o Titular baiano do Ministério atentava para a relação entre os gastos astronômicos e os resultados pífios obtidos com aquela política oficial e a carga tributária elevada imposta aos contribuintes. Dizia ele que As despesas com os Estados afligidos pela seca formam, no orçamento, uma voragem, cujas exigências impõem continuadamente ao País sacrifícios indefinidos. Cumpre que a política republicana, apenas consiga desvencilhar-se dos grandes problemas que envolvem a sua inauguração, busque a esse problema solução mais inteligente e menos detrimentosa para os contribuintes”. (Apud Paulo Brito Guerra, em A civilização da seca). 

A importância do fundo das secas para a criação do BNB 

A ideia de instalar o BNB era estabelecer uma instituição para gerir os recursos do chamado “Fundo das Secas”. Os recursos que formavam tal substrato financeiro foram instituídos na Carta Maior de 16 de julho 1934, cujo artigo 177 estabelecia duas diretrizes fundamentais da política de assistência do Governo Federal ao Nordeste, no tocante à defesa contra os efeitos das estiagens, conforme vêm. 

a)     A defesa contra os efeitos das secas nos então chamados Estados do Norte deveria seguir um plano sistemático de caráter permanente, sob a responsabilidade da União. 

b)    Era estipulada uma quantia destinada à construção de obras e serviços de assistência de valor nunca inferior a 4% da receita tributária da União sem aplicação especial. 

Sobrava estabelecido o fato de que três quartos (75%) desse percentual eram destinados ao custeio das obras normais do plano fixado, ao passo que o restante dos recursos era depositado em caixa especial, para aplicação no socorro das populações atingidas pelas secas. 

Determinava-se, pois, que o importe de 4% deveria ser revisto por lei ordinária, após decorridos dez anos de seu estabelecimento. 

A Constituição de 1937, que instituiu no País o regime autoritário conhecido por Estado Novo, não tratou sobre o assunto, mas, na Carta Magna de 1946, em seu artigo 198, o tema foi retomado e os recursos do Fundo passaram a ser regidos pelas regras dispostas à continuidade. 

a)    Na execução do plano de defesa contra os efeitos de determinada seca do Nordeste, a União deveria aplicar, anualmente, com as obras e os serviços de assistência econômica e social, quantia nunca inferior a 3% da sua renda tributária. 

b)    Um terço daquele percentual haveria de ser depositado em caixa especial, destinada ao socorro das populações atingidas pela calamidade, sendo essa reserva, ou parte dela, passível de ser aplicada a juro módico, consoante as determinações legais, em empréstimos a agricultores e industriais estabelecidos na área abrangida pela seca.


As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva do autor, não refletindo necessariamente a opinião institucional da FGV.