terça-feira, 28 de maio de 2024

POESIA - Prole (VM)

PROLE

Vianney Mesquita*


Vicente Augusto

 Um filho é o nosso coração que sai para outro corpo. AFRÂNIO PEIXOTO. (médico, político, historiador, professor e romancista. Lençóis-BA, 17.12.1876; Rio de Janeiro, 12.01.1947). 

 Marília, Lívia e Ely Anna 

Em Frente, Descendência! 

 

 Coração do Menino 

A loucura está atada no coração do menino, e a vara da disciplina vai afugentá-la (BÍBLIA. Provérbios, 22-15). 




CRÔNICO - Beijo (TL)

 




domingo, 19 de maio de 2024

CRÔNICA - Luz do Dia - Noites Negras - As viagens (RV)

LUZ DO DIA
Reginaldo Vasconcelos* 

A primeira providência da manhã na casa sertaneja é fazer fogo na cozinha. E a fumaça que se evola da lenha em combustão incensa o mundo com a notícia de que há por perto pelo menos uma deusa do lar, velando pelo estômago da família.  

Café torrado em casa, leite fresco, cuscuz, ovo pé-duro, queijo de coalho frito, e os pães do Luiz Cirilo, que incorporavam no sabor, além da milenar saga do trigo e da secular tradição dos padeiros portugueses, a rusticidade dos masseiros e dos fornos do sertão.

Mas principalmente aquele pão sabia à epopeia diária do gigante negro velho, pés e mãos enormes, a palmilhar as estradas poeirentas, desde muito cedo, para distribuir o alimento bíblico. 

Mais tarde o odor de resina ardente e crepitante que trescala pela casa somar-se-á aos eflúvios culinários que logo ensejarão a solenidade cotidiana do almoço. O pai não espera muito e exige a presença dos meninos, que têm que interromper a vadiação. 

Encerrar a pescaria, ou o banho de açude; suspender a moldagem de barro, pendurar as espingardas, amarrar os cavalos – parar, enfim, o que quer que fizessem, e vir em casa para participar da refeição, o principal repasto do dia. 

Todos em volta da mesa, com o chefe da casa à cabeceira, para a degustação de um fumegante prato com “arroz de atoleiro”, feijão de corda, carne seca frita, úbere assado, farofa de torresmo, galinha à cabidela, miúdos de boi, e outros quejandos. 

A melhor sobremesa é a “espécie de gergelim”, ou o chouriço, este feito com sangue e gordura de porco, rapadura, farinha de mandioca, cravo, erva doce, pimenta do reino – louca alquimia medieval dominada apenas por um velho morador da fazenda.  O resultado é uma pomada adiposa quase negra, que provoca sobre a língua uma guerra santa do açúcar com a pimenta, enquanto promove no espírito a estranha comunhão entre o sublime e o escatológico. 

NOITES NEGRAS 

A noite no sertão não se preenche com o binômio alternativo televisão ou libação. Ela não vem cheia de luz e cor; não enche as casas de notícias e novelas, nem os bares de música e de alegria. No sertão daquele tempo a noite é coisa séria, longa e negra, momento de cautela e retração. No seu bojo as doenças são mais graves, as dores mais agudas, e as distâncias são maiores. 

Os atoleiros são profundos e os punhais não são visíveis na mão dos inimigos. É quando as cobras mais incidem, e  costumam aparecer almas do outro mundo, no que todos acreditam – mulheres, crianças e velhos – e mesmo os intimoratos não desmentem. A noite no sertão é escura e uterina. 

Alguns eventos sociais, contudo, desafiam a escuridão, que até os favorece. Por exemplo, os forrós à luz da lamparina e as debulhas de feijão ou milho. Famílias reunidas num terreiro em torno da tulha, a prosear, enquanto as mãos trabalham freneticamente, desprendendo os grãos de suas vagens ou sabugos. 

As rodas de baralho e as brincadeiras juvenis, a passagem do anel, as adivinhações, e mesmo os jogos mais maliciosos: “Meu lado direito está desocupado! Quem ocupa?”. São esses os grande momentos de recreio e de namoro. 

Alguém aí entre os leitores sabe o que é exatamente uma lamparina? De como o lume que arde no pavio de algodão forma sobre este bolinhas de carbono incandescentes, e desprende uma linha de fumo que enegrece o que se sobrepõe a ela ou aproxima? 

De como cheira a querosene em combustão uma lamparina, portada pela asa entre três dedos da mão, ou posta sobre a mesa, para vencer a noite com a sua pouca luz, bruxuleante e encarnada? A lamparina, por si só, é um marco indelével na experiência sensitiva de quem com ela conviveu.  

 AS VIAGENS 

Claro que para os meninos as viagens de ida e volta, que ocorriam duas vezes por ano, eram em si os pontos altos da aventura sertaneja, portanto momentos mágicos da nossa infância dourada. 

Talvez fosse um pouco assim também para os adultos envolvidos, na maioria muito jovens ainda, casais em torno dos 35 anos. Afinal a infância sobrevive latente no indivíduo, não obstante sufocada sob os pânicos e os anseios da maturidade, mas sempre refluindo nas paixões lúdicas do esporte, na puerilidade dos hobbys, na euforia das festas, no ridículo do amor platônico, nas peraltices de sexo, e até na inconsequência e nos debiques do etilismo. 

Entretanto, para nós a estrada era mais longa e isenta de qualquer cansaço e receio. Todo e qualquer contratempo era bem-vindo, fosse chuva e lama, ou sol e poeira, enguiço no carro ou prego no pneu, fosse noite alta ou pino do dia. E não nos ocorria a possibilidade de algum evento mais funesto. Quem estava com os pais estava com Deus – pelo menos assim então nos parecia, o que nunca, na prática, no nosso caso, jamais foi desmentido. 

Tudo começava com uma insônia voluntária, logo vencida por um sono agitado, povoado de sonhos coloridos, confusos e nervosos: preparativos de viagem sem fim, angústia temporal, algum transporte vai partir e alguém perde o horário, depois, estrada longa e cobreante, cavalgadas talvez, revoada de pássaros, pessoas indo, gente chamando... 

E, finalmente, a volta súbita à realidade, que não é menos excitante. Alguém nos acorda, chegou a hora, é sempre madrugada, há brisa e frialdade, há silêncio no mundo, na casa há luz e tudo é agitação. 

A saída ainda é noturna, de modo que as paisagens são mortiças. De Jeep ou de ônibus, de trem ou camionete, o importante é acomodar e partir. Se possível algum cochilo, depois o espetáculo boreal, um sol dourado saindo do horizonte, ora adiante, ora do lado, cheio de luz e de esperança, com seu hálito matinal. 

O dia transcorre, o ronco do motor se impregna nas pessoas, o motorista é sempre o comandante do espetáculo, a quem toda a reverência é devida, seja ele profissional ou da família. As paradas logísticas, a princípio ansiadas, dependem dele. Depois é chegar e chegar. Não interessa perder tempo. Então é nos sinais da chegada que reside a diferença. 

Chegando ao sertão, as oiticicas isoladas, os vales jaguaribanos, a amplitude e os horizontes, as serras jurássicas altaneiras, os espelhos d’água, as casas simples, as fazendas sorridentes, o sotaque dos caboclos. Aqui o tempo é a granel e é precioso. 

Retornando à cidade, primeiro os terreiros brancos de Russas, os cajueiros de Pacajus, o perfume das mangueiras floridas, o cheiro do mar, os carnaubais infinitos, agora o asfalto, os outdoors de propaganda e boas-vindas, os sítios, galpões de empresas, as casas, os prédios, as ruas, a civilização, a contagem dos relógios: vai começar tudo de novo.  

Do Livro "O Passado Não Passa"   2005

sábado, 18 de maio de 2024

NOTA ACADÊMICA - 4ª Reunião da Arcária Alencarina

4º REUNIÃO
DA
ARCÁDIA ALENCARINA

Teve lugar no jardim da Tenda Árabe, na noite deste dia 14 de maio, a 4ª Reunião da Arcádia Alencarina, da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo. 

O evento contou com a presença dos árcades Reginaldo Vasconcelos, Pedro Bezerra de Araújo, Adriano Jorge, Vicente Alencar, Sávio Queiroz Costa, Rui Martinho Rodrigues, Luciara Aragão e Stênio Pimentel Gomes. 

Como convidados o confrade César Barreto, o ator Ricardo Guilherme e o tenor Franklin Dantas. 

O tema central dos debates foi o projeto de montagem de uma performance teatral sobre Silvano Serra e a sua peça A Valsa Proibida, convertida em opereta pelas canções compostas em parceria com Paurilo Barroso na década de 40, e encenada tantas vezes no País, inclusive no Teatro José de Alencar, pela “Comédia Cearense”, desde 1957. 

A primeira reunião arcádica a céu aberto, sob a prata de uma lua crescente, teve a data fixada para homenagear o confrade Stênio Pimentel, filho de Silvano Serra, radicado no Rio de Janeiro, presente a Fortaleza para assuntos acadêmicos, que exatamente naquele dia completava gloriosos e hígidos 82 anos de idade.

Na oportunidade, César Barreto fez uma rápida palestra sobre a "jovem guarda" musical cearense dos anos 60, 70, 80 e 90, da qual foi protagonista, assunto de seu novo livro “Os Sons do Rataplans”, e executou com voz e violão uma bela canção de sua autoria e do poeta Luciano Maia, intitulada "Resultado", cuja letra trata poeticamente das questões ambientais. 

Rui Martinho Rodrigues, por seu turno, brindou o grupo com uma rápida reflexão sobre a arte teatral, e o latinista oficial da ACLJ, Pedro Bezerra de Araújo – após apresentar um estudo sobre a melhor tradução da expressão jurídica "fumus boni juris", que seria "perfume do bom direito, e não fumaça", fez uma homenagem na língua litúrgica vaticana aos três confrades recentemente falecidos – Wilson Ibiapina, Cássio Borges e José Maria Chaves. 

ACIONE O LINK ABAIXO PARA ACESSAR O VÍDEO

https://drive.google.com/open?id=175d8xWKYwqH0_BAP16lXF1JV4TFUgI85&usp=drive_fs        

CRÔNICA - Treze Anos da ACLJ (MQB)

 

Treze anos da ACLJ.

Uma crônica.

Manoela Queiroz Bacelar*

 

Cheguei antes das 19h, como combinado. Sapatos pretos de salto alto. Pelerine. Uma ajuda providencial e simpática para o laço do torçal amarelo arrumado ainda no foyer.



As pessoas se acomodavam no auditório do Palácio da Luz que, naquela noite, era a casa dos treze anos. Por algumas horas, a majestosa e vetusta edificação deixava-se rejuvenescer. Cal, pedra, madeira, tijolo, livros e memórias, tudo restou mais incauto, mais inocente, mais leve.

Ao centro do salão, bem à frente da assistência, uma mesa menor com três cadeiras, três nomes e três velas para acomodar três mulheres. O fogo parecia atraente. Sentei-me de frente para minha chama, ao lado de uma bela Graça, que seria mais tarde homenageada. Nossa terceira companheira seria Patriciana, cuja ausência comprovava o quanto as mulheres somos demandadas. 

A poucos metros da mesa feminina, uma mesa maior, mais alta, mais solene, en face, como se diz no balé. Uma mesa masculina, composta por sete homens com o presidente Reginaldo ao centro, iniciou os trabalhos de uma pauta animada a ser cumprida pelos acadêmicos. Acompanhada por familiares, amigos e convidados a noite teve direito a clarinada com arauto, hino, música, banda em uniforme verde-oliva, fotografias, um telão com projeção audiovisual, vinho do Porto e um coquetel. 

A cerimônia foi conduzida pelo confrade Vicente e sua voz bem colocada. Antes das atividades propriamente ditas, um silêncio fraterno pelos irmãos do Sul. Assim acontecia a celebração de treze anos de criação da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo – ACLJ, A palavra foi dada ao confrade Rui que discorreu sobre a delícia do contraditório. Inaugurado na Grécia antiga, o modelo epistemológico do pensamento teorético foge aos achismos tão protagonizados no agora.

Séculos mais tarde, a estrutura serviu de base para o método científico e para a elaboração do pensamento dialético (Hegel e Marx). Tal como uma vigilância das opiniões, que se sustenta na coreografia do diálogo, a dinâmica afasta-se dos solilóquios herméticos e, portanto, estéreis. No fundo é uma com-versa que se coloca aberta, reflexiva, cheia de escuta atenta e se desloca em contrapontos apresentados por interlocutores respeitosos que argumentam no lugar de se digladiarem.

 

Esse modelo cognitivo busca a tentativa de se construir um conhecimento, com raízes no terreno da argumentação, da retórica e do discurso contraditório. Constitui a estrutura cognitiva dominante nos agrupamentos de tradição eurocêntrica, ao lado de outros sistemas válidos e legítimos do pensamento humano que forjaram a linguagem em grupos sociais de diversas tradições, como, por exemplo, os da oralidade indígena brasileira.

 

Escutava com atenção as palavras do mestre quando me indaguei sobre a beleza que seria o encontro das diversas formas do pensar humano e do benefício que teríamos enquanto espécie no âmbito das nossas habilidades relacionais, sem falar na potencialização do conhecimento per se produzido pelos diferentes saberes e fazeres.

 

Passada minha digressão, ative-me à oração do confrade Reginaldo que se lastimou dos extremismos que caracterizam a oposição pueril de opiniões erguidas em monólogos muita vez intransigentes. Ao mesmo tempo, ressaltou o papel essencial da ACLJ, concebida como uma arena suíça, neutra, livre da paixão às posições, receptiva às discussões dialógicas, saudáveis e, por isso, prazerosas. Ele ratificou a fala de seu antecessor, e, no meio da minha audição, anotei uma palavra que nunca escrevi: faina. Vou adotar.

 

Na sequência da pauta, um momento de memória e afeto. Foram homenageados três confrades que se transportaram para o infinito. Um engenheiro, um médico, um jornalista. Cássio, José Maria e Wilson, este último é a razão pela qual escrevo esta crônica, pois fui convidada a participar da ACLJ por sua intenção.

 

As falas breves e emocionadas dos confrades Marcos André, Vicente e Fernando César encheram o salão da saudade que sucedeu o deleite da apreciação de um vídeo produzido por Wilson, num passado recente, sobre os nossos artistas cearenses Fausto Nilo, Fagner, Ednardo e Belchior.

 

O ato subsequente foi de júbilo quando tomou posse à cadeira de número 31, o novo confrade Geraldo. Num discurso passional, demonstrou seu grande amor pela esposa e pela filha. Reverenciou seus antepassados e nos revelou a incrível história de seu homônimo pai, que sobreviveu a um naufrágio.

Obedecendo ao rito de concluir atividades pendentes de assembleias passadas, a confreira Graça recebeu das mãos do capitão de fragata, Daniel Rocha, a comenda que leva o nome de Rachel de Queiroz, a filha mais amada do Quixadá, a primeira mulher imortalizada na Academia Brasileira de Letras, também conhecida como Rita de Queluz. De onde Rachel teria inventado esse mágico pseudônimo?

 

Por fim, a entrega da comenda chanceler Airton Queiroz a José Roberto Nogueira foi adiada para uma futura oportunidade em razão de sua ausência.

 

A sessão foi encerrada pelo confrade Lúcio e a noite findou com o tradicional brindecom vinho do Porto, retratos para a posteridade, abraços, sorrisos, restinhos de conversas, despedidas, lembranças à família e até a próxima. Para minha satisfação pessoal, pude ter dois dedos de prosa com o confrade Rui sobre as circularidades do pensamento. Lembrei da moçambicana Paulina Chiziane, primeira mulher africana a receber o prêmio Camões. Ela nos provoca: “Afinal, o mundo é redondo... e que é o remoto numa bola redonda?”.
 

Na minha memória, a trilha sonora da noite fez-se vívida. A gravação instrumental da música Oração ao Tempo, do Caetano Veloso, foi ouvida em algum momento inicial da celebração. Os treze anos da ACLJ marcam o tempo, um tempo, qual tempo? Enfeitiçada pela melodia circular, não consegui esquivar-me da poesia, da letra... as palavras, essas danadas que nos escapam; sempre elas:

 

(...) E quando eu tiver saído o teu círculo

Tempo, tempo, tempo, tempo

Não serei nem terás sido

Tempo, tempo, tempo, tempo (...)