CIÚMES RETROATIVOS,
TRAIÇÕES IMAGINÁRIAS OU
CHIFRES QUE O PRÓPRIO PERSONAGEM
ATRIBUIU A SI MESMO, NO ROMANCE DO CHILENO JORGE EDWARDS
Durval Aires Filho*
Parto a queima-roupa: que destino você tomaria se o seu melhor
amigo tombasse morto e sua mulher, de uma hora para outra, armasse o maior
vexame, perdendo as estribeiras, com choros compulsivos, a beira de um ataque
de nervos, em lamentos profundos, com visíveis sentimentos provenientes das
entranhas, alheios às pessoas, sem a menor cerimônia, desconectada do tempo e
do espaço?
Teria dois caminhos distintos a seguir. Primeiro, relegaria
a ocorrência a um segundo plano, fingindo desconhecimento, rebaixando o fato
como o mais banal possível. A segunda via, a mais rara, recomendaria a
investigação do suposto adultério. “Os gestos convencem e a razão desconfia”,
diria Carlos Nejar. É essa opção que o escritor chileno Jorge Edwards escolheu
para o seu romance “A Origem do Mundo” que a Cosac Naify acabou de publicar e
distribuir junto aos leitores brasileiros.
O tema adultério não
é original. É comum em velórios de pessoas endinheiradas, a presença de
mulheres jovens, as quais mantiveram romances secretos com o extinto,
disputando espaços com as legítimas esposas. Existe um farto material sobre o
assunto, mas há uma singularidade neste pequeno e grande romance: a forma de
narrar, as estratégias desenvolvidas pelo autor, os recursos técnicos em que
plasmou a sua ficção de uma maneira insólita e, até despretensiosa, inovadora.
O escritor chileno abre seu romance com uma brincadeira um
tanto chistosa, quando o personagem principal reconhece a sua mulher em um
quadro indecoroso, exposto no Museu d’Orsay, dada as evidentes semelhanças de
pesos e medidas com o óleo retratado. E, ali, se lembra do amigo Felipe Diaz e
de sua mania de fotografar amantes nuas em poses obscenas. Isso há uma semana,
antes de encontrarem o cadáver desse amigo do casal.
Vivendo há trinta anos harmoniosamente com Sílvia, uma
mulher bonita, e vinte anos mais nova, o médico Patrício Illanes apresenta-se
como o oposto de Felipe Diaz, um sujeito dado à conquista e sedução. É, como
ele, um intelectual latino americano que passou pela religião do comunismo,
mas, diferentemente, queda ao alcoolismo, enquanto ele é o cara que se cuida,
tem hábitos saudáveis, e se prepara para a velhice estendida e duradoura.
E que faz água no barco existencial desse personagem que no
romance absorve as qualidades de elegância?
Por dois orifícios: a idade de Felipe, de sua mulher
Sílvia, (ambos mais jovens), geradora do ciúme, e a questão da amizade, posto
que o amigo foi classificado como um sujeito sem escrúpulos, mas, ao mesmo
tempo, “um bom amigo por vocação”. Como diria o escritor Frederico Pernambucano
de Mello: “um amigo intrigante”. Aliás, por este fabuloso personagem, Edwards
constrói todas as referências esquerdistas dos anos 60, desde os Congressos dos
PCUS, com as quais o amigo traduzia os informes de Kruchev, até as performances
de imitação, as observações jocosas, francamente desrespeitosas a Fidel, a quem
chamava de “barbeta”, porém, permitidas, dadas a invasão da Tchecoslováquia, e
outros fatos que o conduziram para o ceticismo político e a consequente
substituição para uma vida amoral, com vícios excessivos, voltados ao álcool,
drogas e mulheres, o que representa também o drama dos latino-americanos
exilados.
É claro que o médico desconfiava que a sua polidez teria
uma cariz rotunda, burocrática demais, extremado ao comportamento debochado do
amigo, com certeza, mais sedutor e alegre. Mas o que está envolta dessa curiosa
narrativa é a decadência do ser humano, as desilusões esquerdistas, o demônio
da vida e da morte, que, por sua vez, levam ao demônio do sexo e do desejo.
Não cabe olvidar que também a própria dissimulação, que é
uma espécie de ficção exercida no cotidiano, configura neste romance, um
suplemento necessário à existência humana e, por assim dizer, nesta narrativa,
resolve os impasses da trama.
O fato é que o peso da idade não encontra paralelo com as
aflições mais particulares do médico setentão, mas ele próprio traz a receita
de que esses conflitos pessoais perpassam por todas as fases do homem.
Jorge coloca na boca do personagem central: “A pessoa
acredita que as obsessões, os ciúmes, os famosos fantasmas eróticos, vão
terminar com os anos. Eu pelos menos, aos quarenta, tinha certeza de que
terminariam aos cinquenta”. Passando agora, depois dos setenta, por estes
transtornos, negativamente conclui: “nem aos oitenta. Nem aos duzentos anos!”.
A opção deliberada do médico parte do princípio de que
aquilo que lhe consome é aquilo que lhe arrasta. Antes de colher depoimentos de
outros personagens, para comprovar a sua suspeita, -- parcos relatos os quais
revelaram inverossímeis e, muitas vezes, movediços e patéticos -- Patrício vai
à caça de provas documentais. Penetra no apartamento do saudoso Felipe. Revira
correspondências e fotos. Acha uma réplica fotográfica da tela indecorosa de
Gustavo Coubert (o quadro do Museu d’Orsay), e debaixo dela, uma fotografia
três por quatro de Sílvia. Para ele, essa contemplação da imagem erótica seria
a destruição completa de sua felicidade, pois a genitália exposta, embora não
se veja o rosto, encoberto por lençóis, é igualzinho a de sua mulher,
associando, tormentosamente, as preferências do amigo, pródigo em fotos de
amantes, que ele mesmo registrava em suas inúmeras aventuras.
Neste contexto, não é difícil verificar que algumas
técnicas mais sofisticadas de narração são aperfeiçoadas por Edwards e, bem
assim, tomadas por empréstimo do cinema. Interessante é quando Patrício se
apossa da foto de sua mulher, várias projeções são plastificadas ao mesmo
tempo. Ele trava, inicialmente, uma peleja consigo, mas penetra, na construção,
Silvia e um terceiro personagem, que é ele mesmo, mas em situações ou
conjecturas futuras, portanto, em antecipações que não existiram de fato.
Vejamos esse curioso e sofisticado recurso. Primeiro, o
médico, tomado pela obsessão, com a foto de mulher na mão, diante do espelho
iluminado e da possibilidade inquisitorial, lembra de Stálin. Na mesma
sequência, permeia a voz de Sílvia, recortado de algum diálogo do passado: “O único que se libertou a tempo foi o Felipe”. E
ele complementa: “porque era muito mais cínico do que nós”. Mas o terceiro
personagem que não existe, nem fez parte do antigo diálogo, é a sua
consciência, que dispara: “Não é verdade. Felipe era mais lúcido, mais
independente, menos covarde”.
A primeira cena de abertura deste livro vai se desaguar no
último capítulo, mas com pontos de vistas diferentes. Na verdade, cuida-se de
uma tortuosa reconstrução, uma brincadeira tola que, se não houvesse o vetor
morte, não se tornaria uma sofrida obsessão, transformando-se em algo sério e
grave, que permeia toda narrativa, nos capítulos seguintes a morte do
incorrigível amigo.
Seria inútil e disparatado infirmar as supostas influências
que o escritor chileno tomou de outros escritores, para a tecitura de sua
escrita. Não dá para vê Machado de Assis, nem Arthur Doyle, nem Sábato, nem
Carpentier, nem Rubem Dário, nem Neruda, nem os “filhos abastados da narrativa
de Borges e Júlio Cortázar”, como ele próprio atribui ao amigo Felipe Diaz,
autor de uma peça teatral que representou um grande fracasso de público e de
crítica.
O que se pode dizer, necessariamente, é que este romance
tem a atmosfera momentânea de uma dúvida machadiana. Possui uma rigidez formal,
comum aos escritores do leste europeu, e, está recheado de deduções exatas,
hauridas dos romances policiais, além de formar uma trama criativamente
excepcional, a exemplo dos grandes nomes da literatura latino-americana.
Mas um detalhe importante deve chamar atenção: a
fragmentação empreendida por Jorge Edwards, contraditoriamente, tem o condão de
unir, de tecer uma prosa concisa, una e compactada, sem que para isso possa
escapulir para a descontinuidade da narrativa, ou para o abandono da
configuração de personagens autônomos e profundos.
A humanidade de Patrício Illanes, por fim, recomenda que é
melhor viver uma tragédia sentimental, do que viver uma vida de morto. Ele
corre riscos, mas vive outra vez, como um jovem atormentado e corroído pelo
ciúme, mas, ao lado dessa sina, ele é capaz de erguer força e vitalidade. A boa
notícia é que, se a arte imita a vida como ela é, neste saboroso romance, a
ficção é definitivamente traída pela realidade. Afinal, os segredos, revelados
ou não, só enganam a eles mesmos.
*Durval Aires Filho
Magistrado, Jornalista e Escritor
Membro Honorário da ACLJ