sábado, 30 de junho de 2018

ARTIGO - O Desgaste do STF (RMR)

O DESGASTE DO STF
Rui Martinho Rodrigues*



O STF solta presos? Não qualquer um. Nem os maiores empresários merecem o desvelo do Pretório Excelso para com o garantismo penal. Só políticos de alto coturno, o que trouxe desgaste. O desgaste do Judiciário, porém, tem um lado velho e outro novo. 



O velho desgaste diz respeito aos presos comuns que já cumpriram pena, que não têm contra si sequer uma denúncia, delongas intermináveis nos processos, privilégios injustificáveis de outras vezes, e suspeitas de corrupção por integrantes de todos os níveis do Poder em comento. O novo desgaste é o do STF

As preciosas garantias democráticas que protegem o Judiciário; o suicídio moral dos políticos; a Constituição analítica (minuciosa), programática (traça o destino da sociedade), principiológica (subordina a clareza das normas da espécie regra à vagueza dos princípios) e rígida (impõe dificuldades às reformas)  armada de controle de constitucionalidade concentrado (com efeito erga omnes tudo isso ensejou a judicialização da política e o seu corolário: a politização do Judiciário. 



Consiste tal coisa em submeter à toga as decisões de natureza política, supostamente para fazer justiça, alegando que as leis podem ser inconstitucionais (injustas à luz dos princípios da Carta Política). Isso é controle concentrado de constitucionalidade. O ordenamento jurídico é hierarquizado e tem materialidade, não é apenas formal. Alega, ainda, a Nova Hermenêutica, que precisa acompanhar as transformações históricas e superar a impropriedade das normas genéricas, em face da singularidade dos casos concretos.


A “interpretação conforme [o entendimento do STF]”, pela qual o texto legal nada vale em face da Corte Constitucional; a vagueza dos princípios e a “mutação constitucional”, pela qual o Judiciário declara que o significado do texto escrito mudou, pois, a semântica das palavras sofreu transformação, fortalecem a judicialização da política. A segurança dos jurisdicionados seria protegida pela necessidade imposta ao magistrado de fundamentar a decisão.

A Nova Hermenêutica está noventa e nove porcento certa, mas aquele um porcento vagabundo é que faz sucesso, porque abre as portas à subjetividade das partes, principalmente da autoridade. Não existe caso singular, “não há nada de novo sob o sol” (Eclesiastes, 1;9 in fine). Tudo pode ser “fundamentado” pelo contorcionismo hermenêutico. 

As transformações históricas tendem a exigir mudanças no Direito, mas esta é uma tarefa do Legislativo. O STF não é um órgão supletivo do Parlamento. Os legisladores se negam a fazer modificações no ordenamento jurídico quando temem o eleitorado. Isso é veto tácito. A falta de apoio do eleitorado desmente as alegadas transformações históricas. A usurpação da função legislativa é presunção de “reis filósofos”, com evidente caráter aristocrático. O controle concentrado de constitucionalidade não deve ir além de legislar negativamente, excluindo normas inconstitucionais.

Aquele um por cento vagabundo é a oportunidade de legislar positivamente e de interpretar de modo claramente contrário ao sentido do texto. É o que está na moda. Usa conceitos indeterminados, como equidade e justiça, abrindo espaço à subjetividade da autoridade. Não consegue ocultar o que Nietzsche (1844 – 1900) chamou de vontade de potência. Alegar que um Estado bandido pode fazer leis iníquas contra as quais a Nova Hermenêutica armaria a mão dos juízes é ingenuidade demais. Juízes não podem deter um Estado bandido.

Finda a ilusão da revolução pelas armas, sem voto para fazê-la pela via democrática, vem a tentativa de realiza-la pelo Judiciário, com a Nova Hermenêutica Constitucional, com as constituições dirigentes, programáticas, principiológicas e rígidas, com o controle de constitucionalidade ao mesmo tempo difuso e concentrado. Culpam Hans Kelsen (1881 – 1973), com a ênfase por ele dada à positividade das leis, pelos abusos do nazismo, como se juízes, com a Nova Hermenêutica, pudessem impedir os crimes de uma ditadura. Mas isso prejudica a segurança dos jurisdicionados, desgasta o Judiciário e ameaça a democracia.


Porto Alegre, 27 de junho de 2018.



CRÔNICA - Golvavá (TL)


GOLVAVÁ
Totonho Laprovitera*



A tradicional macarronada italiana da família Laprovitera, faz-se acompanhar de bracciola (enrolado de carne recheada) e polpette (bolinho frito de batata, às vezes recheado de salsicha).

Lá em casa existia a “cozinha do povo”, um amplo cômodo de serviço nos fundos da residência, para apoio aos habituais festejos da família. E foi onde a bracciola virou “brajola” e  polpette “propeta”, pelas afetuosas cozinheiras e copeiras que aportuguesaram as palavras da língua italiana.

Em 1962, no Chile, Vavá foi um dos artilheiros da Copa do Mundo com cinco gols e bicampeão mundial. Na época, aos 5 anos de idade, eu dava um trabalho danado para comer. Aí, no almoço, a Maria (minha segunda mãe) espetava uma propeta com o garfo e, imitando o locutor do rádio, gritava: “Gol, Vavá!”. Encantado, eu abria a boca e me deixava alimentar.

A partir de então, lá em casa, a propeta, que era polpette, passou a ser chamada de “golvavá”!




COMENTÁRIO

Zélia Gatai lançou um livro que denominou “Códigos de Família”. A obra trata dessas expressões curiosas nascidas de fatos singelos, porém marcantes, que se tornam corriqueiras entre pais e filhos, entre irmãos, entre familiares, às vezes perfurando gerações do mesmo clã.

Totonho traz nessa sua saborosa croniqueta a evolução na terminologia culinária italiana, no seio de sua família de oriundi, com afetuosas inflexões na cultura brasileira – a gentil criadagem multiétnica e a proverbial paixão futebolística.

Dou dois exemplos pessoais, ambos no campo alimentar, para não dissentir do tema em que Totonho trefegou com galhardia.

Traficamos para a nossa família uma expressão dos Coelho Ximenes, célula familiar com cujas últimas gerações a minha gente se irmanou.

Contam eles que uma tia, de finanças modestas, visita a casa da cunhada pecuniosa em reunião familiar, e, a certa altura, na roda feminina, ansiosa por oportunizar um pequeno luxo que a sua dispensa não fornece, ela indaga à anfitriã: “Emília, tem queijo? Pois vamos a ele!

Por isso, aqueles, e depois os meus, passamos a solicitar que algum acepipe venha à mesa com essa frase, na direção de quem esteja no serviço: “Emília, tem queijo?”.

Um segundo código de família de minha casa, também culinário, teve início no Sítio Nirvana, lá pelos anos 60, entre irmãos e primos da prole de minha mãe e de minha tia, reunidos para as férias.

Elas costumavam mandar ferver as roubas lavadas, creio que para obter melhor limpeza ou para evitar contaminação de qualquer ziquizira que o ambiente sertanejo transmitisse às crianças, no convívio com os bichos e com os simples.  

Uma certa manhã os meninos percebemos a grande lata cheia de panos fumegando entre as panelas do fogão, e quando ao meio dia foi servida uma travessa com “arroz Maria Izabel”, conhecido no sertão como “arroz de atoleiro”, este ganhou imediatamente, entre nós, o apelido de “sopa de roupa”, assim até hoje conhecido esse prato por meus netos, primos-terceiros, sobrinhos-netos.

Reginaldo Vasconcelos



COMENTÁRIO

Muito me causa saudades essa referência do Reginaldo a esse pitoresco fato havido em minha casa, pelos idos dos anos 70. A Emília do “Emília tem queijo?” era minha mãe. A outra interlocutora era a minha tia Cotinha. Faz tanto tempo que os nosso estoque de queijos sofriam aquelas avarias...

Paulo Ximenes

sexta-feira, 29 de junho de 2018

CRÔNICA - A Crônica Aporta (RV)

A CRÔNICA APORTA
Reginaldo Vasconcelos*


Faz dias que não dou palavra. A alma muda, que só sabe dizer deixando dito na palavra grafada. E a boca da alma nesta inanição do verbo, emudecida pela espera e pela mágoa de não estar sendo ouvida. Mas a crônica, a poesia, vêm como cai a chuva e com nasce a relva, ao beijo do acaso, sem o voto e o arbítrio.

Hoje a crônica me visita com insistência, desde aquela criança negra, muito negra e muito alegre, muito rara nesta terra de mestiços convictos, com uns pingentes de ouro nas orelhas e um sorriso de pobreza feliz, que pela mão da avó nos estende a sua mãozinha.  

Depois, o vendedor de camarões, que barganha comigo, almoça conosco e confidencia. Revela enfim nascendo de novo não vende camarões: “Não, eu seria um cantor de rádio”, assevera. Limpa as mãos, imagina um palco, fasta do “público”, e canta um pouco assustando o meu cachorro. Fora calouro no passado, e o passado é presente no brilho de seus olhos. Despede-se e vai. A crônica fica.

Mais tarde, no recesso de uma sauna, o refúgio de mim. Mas aí, em mim o refúgio de um amigo, que toca a me falar das mágoas. Tem uma só mulher, mas sonha milhões. Gordo, paixão que não sara por uma primeira namorada, acorda em sobressalto de um sonho bêbado, procurando na esposa a fêmea etérea, de pele fresca e cabelo perfumado. Diz que não tem tido sorte na vida; desacredito um pouco; miúdo, compadeço-me. A crônica aflora.

De noite, um amigo-irmão e eu traficamos confidências que a cerveja patrocina. Nas lentes de seus óculos há uma constelação de brilhos, quais estrelas guias na navegação da vida. A crônica aporta.

Ao Leonardo Braga (1957 –1988).



terça-feira, 26 de junho de 2018

POESIA - El Paredón (MV)


El PAREDÓN
Martônio de Vasconcelos*

 (Soneto a Emiliano Zapata)


A guerrilha viveu a tempo pleno,
Nas trincheiras cavou a liberdade,
Mergulhada nas sombras, na cidade
Destilando dos ódios o veneno.

Ao romper os grilhões da tirania,
Buscou na morte um novo renascer:
Se a Nação Mexicana vai viver,
Eu agora me vou, mas volto um dia.

Carabinas de algozes já lhe apontam
Um caminho por certo bem escuro.
Demônios mil já nunca mais se contam.

O herói sucumbe em trágico momento
Mas do corpo liberto fez-se o assento;
Do passado a incerteza do futuro.



CRÔNICA - Felizômetro (RV)

FELIZÔMETRO
Reginaldo Vasconcelos*


Não costumo jogar na loteria, mas quando o faço sempre me assalta um receio-paradoxo: ganhar o prêmio e me tornar infeliz. 

Ainda não inventaram o “felizômetro”, imaginário medidor do contentamento íntimo, cujo ponteiro se elevaria por ocasião dos momentos de euforia, mas que não se manteria elevado, necessariamente, pela simples obtenção de cabedal financeiro e patrimônio.

O ouro pesa muito. Custa obtê-lo, pesa mantê-lo, pesa como chumbo o risco de perdê-lo, porque perdê-lo não é tão simples como nunca tê-lo tido. A privação franciscana pode enobrecer pela humildade, mas costuma aviltar, pela humilhação, os que a ela retornam de inopino. Depois, nas partilhas, o ouro vira chumbo trocado, gerando ódio entre os consanguíneos.

Ademais, ser feliz é sentir-se útil, e os abastados vão perdendo a sua utilidade pessoal para o utilitarismo do dinheiro que possuem. Valem pelo que têm, e intimamente sabem disso. Ser feliz é sentir-se amado... Mas, como distinguir o afeto verdadeiro da mulher bela, do amigo prestimoso, do filho herdeiro?

Tenho vitimado alguns, involuntário, pelos ácidos da inveja  por ser feliz, não por ser rico, que não sou e nunca fui. Mas certa vez matei um homem, inadvertido, com os insuspeitados venenos de sua prosperidade pessoal.

Era mecânico, dono de uma caixa de ferramentas, e vivia de biscates. Fora alcoólatra, era abstêmio, pelos  conselhos evangélicos de uma Igreja. Morava distante, tinha uma filhinha, era feliz.

Quis ajuda-lo, montei para ele uma oficina em prédio próprio em bairro nobre, anexa a uma casa de morada em que instalou a família, e onde a mulher passou a explorar um manicuro. Recomendei clientela vasta.

Prosperou, voltou a beber, comprou um carro e envolveu-se em acidente tenebroso, perdendo a vida e produzindo viuvez e orfandade. É o mesmo processo que mata, tanto os novos ricos como os filhos da fortuna. O fogo da abastança, a possibilidade de todos os excessos, os cães bajuladores que lhes lambem as feridas, sonhando devorar-lhes as carnes tenras.

Enfim, se o ponteiro do “felizômetro” está no alto, o prêmio da loteria é perigoso de fato. O desejo moderado e a consecução gradual têm mais valor intrínseco que o objeto desejado. “A conquista é tudo, o resto é quase nada”, como reza a sabedoria popular.

Não. A felicidade não é privilégio da pobreza. Não iria eu zurrar tamanha asneira. Até pelo contrário, o que digo é que esse privilégio também não é dos ricos, mas apenas dos sábios de qualquer classe econômica, que sabem jogar corretamente com as suas circunstâncias. 

É comum pensar-se erroneamente que são sempre felizes os que nascem em berço áureo, ou que encontram o veio precioso, às vezes com menos esforços que outros garimpeiros. Porém, os mais afortunados de fato são aqueles que conhecem o segredo filosófico do cofre dos sorrisos.


Nota: Do livro Traços da Memória - Laços da Província - Volume II  – Crônicas –Multigraf Editora – Fortaleza – 1993.
       
   


segunda-feira, 25 de junho de 2018

ARTIGO - Direita, Esquerda e Eleição (RMR)


DIREITA, ESQUERDA
E ELEIÇÃO
Rui Martinho Rodrigues*




O debate eleitoral usa as palavras direita e esquerda. Enclausura a pluralidade política em duas posições. Depois criou o centro, e inúmeras possibilidades em uma linha entre os extremos. Direita e esquerda demandam esclarecimentos. As duas posições teriam origem na Assembleia Nacional Francesa, na Revolução de 1789.


Direita, os monarquistas, que queriam manter a desigualdade entre os estratos sociais. Esquerda, os republicanos, que queriam a igualdade. A Revolução, porém, queria igualdade apenas perante a lei, não na lei. Não propunha a igualdade de todos em tudo, ou de resultados. Diferenças materiais não estavam da mira da revolução, e nem sequer a igualdade de alguns em tudo.

A hierarquia militar e as distinções havidas como meritocráticas persistiram. Não era, tampouco, a igualdade de alguns em tudo. Os revolucionários pretendiam apenas a igualdade de todos em algo mínimo: a obediência à lei com as suas desigualdades.


A igualdade da Revolução Francesa não era a de épocas posteriores, tendentes à igualdade de resultados ou de todos em tudo. Ademais, não só a igualdade separava os partidos da Revolução citada. Revolucionários eram universalistas, declararam os direitos do homem, não dos franceses.

Os seus oponentes aproximavam-se mais das posturas nacionalistas, tendência cada vez mais nítida nas gerações seguintes: Esquerda era internacionalista; Direita, nacionalista. Até que a II GM, as lutas pela descolonização e os primeiros tempos da globalização tornaram conveniente explorar o nacionalismo. A esquerda passou a nacionalista, até que os conservadores voltaram-se contra os globalistas. Aí tudo mudou novamente.

Textos bíblicos já usam direita e esquerda. Israel era uma teocracia. Apoiadores e transgressores da lei mosaica eram, respectivamente, direita e esquerda, favoráveis e contrários à tradição judaico-cristã. A Revolução Francesa se fez contra o trono e o altar. Esquerda e direita definiam as relações com a Igreja, não lugar das bancadas na Assembleia. A Igreja e os grupos políticos tornaram-se aliados e adversários, conforme a conveniência momentânea. Direita e esquerda seriam os defensores e opositores da lei e da ordem? Depende de quem esteja no poder.

Armas e liberdade negocial são direita? Liberdade negocial e casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou direito ao uso de drogas psicoativas, também são direita? Liberais e conservadores convivem juntos na direita? A pessoa pertencer a ela mesma é liberalismo? Pertencer a algo maior, à igreja, pátria e família; ou ao partido, à classe social e à humanidade são coisas de esquerda ou de direita? Esquerdistas são conservadores?

Socialistas instituíram uma nova classe com desigualdades profundas. Alguns regimes de direita suprimiram liberdades. Todo regime defende as suas leis e a sua ordem. Igualdade e liberdade parecem virtudes, mas seria preciso qualificar tais coisas. O que vemos é uma “ética” teleológica, mero pragmatismo e desinformação.

Porto Alegre, 25 de junho de 2018.



domingo, 24 de junho de 2018

CRÔNICA - Geração Cajuína, de Repente Vira Geração Coca-cola (JPG)

Geração Cajuína,
de repente vira
Geração Coca-cola
João Pedro Gurgel*



Costumeiramente, eu adoro falar de política e, geralmente, atacando o Governo e sua corja de delinquentes. Com a recente onda de protestos e manifestações ocorrendo, sinto-me incitado a ter mais calma, a analisar o fervor político do país, talvez pelo fato de não acreditar em mágicas.

Primeiro, ninguém toma consciência de um dia para o outro. O movimento de reação, de agora, é eivado de um sentimento efêmero, levando-me a crer que, em breve, esqueceremos tudo isso e voltaremos ao velho facebook de sempre, com suas frases de o "Diário de uma Paixão", convites para Criminal Case, e festas aleatórias.

Em segundo lugar, esse espírito de revolta tem que ser legitimado. É interessante cantar os trechos do Gabriel Pensador ou do Renato Russo, colocar a foto do V de Vingança ou se pintar de verde e amarelo. Mas onde está a transformação disso em lei? Onde estão os deputados que irão discutir isso em Assembleia?

Tenho medo da influência velada dos partidos de esquerda nessa onda de protesto. Não duvido que o PT e seus amigos também estejam infiltrados nisso, com uma ideologia subcutânea para que todo mundo se revolte, se revolte e se revolte. Devemos lembrar que a mesma geração de bandidos de hoje era a dos revoltados de outrora.

Só me resta acreditar em outro jargão: estude, estude e estude. Acha horrível a saúde no Brasil? Vire médico. Não gosta dos políticos? Seja um. Teremos um caminho mais sólido a se trilhar se confiarmos no que somos, no nosso poder inteligente de mudar o ambiente em que estamos. Para isso, precisamos ter técnica e conhecimento para agir em prol do que seja bom.

Como diria um grande amigo meu: “Quer mudar o mundo? Comece varrendo seu próprio quarto”.



quinta-feira, 21 de junho de 2018

CRÔNICA - Machismo ou Estupidez (HE)

MACHISMO
OU ESTUPIDEZ?
Humberto Ellery*




A cena de alguns brasileiros idiotas e embriagados, aproveitando a simpatia e até uma certa ingenuidade de jovens russas, e as “ensinando” a dizer palavras de baixíssimo calão em português me deixou indignado, como de resto a todo o Brasil. 

Lembrei-me de uma cena semelhante, mas completamente involuntária, que presenciei em Londres, e até de que participei. Estávamos eu e um grande amigo, médico do navio em que viajávamos, o Dr. Lamartine de Andrade Lima, homem culto, inteligentíssimo, membro do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, sua terra natal. Um dos “papos” mais agradáveis que conheci, por seu brilho intelectual e humor, sempre pronto a fazer um comentário jocoso e oportuno sobre qualquer fato do dia a dia.

Estávamos em visita ao Museu Madame Tussaud, admirando os belíssimos trabalhos em cera, quando a efervescente e galhofeira verve do Lalá (como nós o chamávamos) resolveu fazer uma brincadeira com os visitantes do Museu. O Lalá é um homem corpulento, alto, um pouco obeso e muito parecido com o cineasta Alfred Hitchcock.

Então, na curva de um dos corredores do museu ele parou, e quase encostado na parede assumiu uma pose dramática e se pôs estático, quase sem respirar, como uma das figuras expostas. A minha parte na brincadeira foi ficar olhando para ele e examinando de perto sua figura. Fazíamos ambos um enorme esforço para não sorrir. Como era de se esperar, começou a juntar gente, procurando na parede uma plaquinha que o identificasse, e admirando a perfeição da estátua, que elogiavam (“parece até que está vivo”), e perguntavam entre si quem seria aquele personagem.

De repente alguém falou, em inglês, “Eu suponho que é  Mister Hitchcock”. Foi o quanto bastou para que explodíssemos numa gargalhada que assustou os admiradores da estátua que parecia viva. As pessoas, passado o susto, reagiram com simpatia, sorrindo e fazendo comentários amáveis ao trote que passáramos neles.

A seguir vimos uma estátua de Marilyn Monroe que nos decepcionou. Como fãs da grande atriz, esperávamos uma estátua que mostrasse toda sua exuberância e sensualidade, como no filme “O Pecado Mora ao Lado” (The Seven Year Itch). No entanto, representaram-na como no filme “Os Desajustados” (The Misfits), seu último filme, quando a estrela, já próximo à sua morte, dependente de calmantes, era apenas uma sombra esmaecida daquela deusa cheia de sex appeal que esperávamos encontrar.

Em volta da estátua estavam algumas famílias, com diversas crianças,  que percebi serem franceses, mas o Lalá, distraído, não percebeu. Então, com aquele descuido com palavras deseducadas quando estamos no exterior, e como estávamos na Inglaterra, o Lalá me olhou e comentou: “Que merda”, as crianças francesas imediatamente se voltaram para ele com ar de desaprovação e espanto, pois as palavras são quase iguais, em francês é “merde’. Eu apenas disse: “Lalá, são franceses”. O Lalá, então, morto de vergonha, e fluente em francês, se desmanchou em desculpas.

Foi um custo, depois, tirá-lo do estado de tristeza que o fazia repetir: “Que vergonha, Ellery, como é que eu dou uma dessas”.

Quanta diferença de um homem digno para um bando de imbecis!




COMENTÁRIO

O cronista lança uma indagação no título, que ele mesmo não resolve ao longo do seu primoroso texto, repleto de graça e saudosismo. Então, a questão do título fica em aberto, cabendo ao leitor – ou a este comentarista  responder.

Estupidez, sim. Machismo, não. O conceito de “machismo” importa no vezo de uma supremacia autoritária sobre a fêmea, de uma desvalia acintosa sobre as prerrogativas sociais femininas. A celebração infantil de um grupo de idiotas sobre hipotéticos predicados genitais da moça não correspondem a esse “ismo”.

Por exemplo, troquemos as bolas (com perdão do trocadilho), e imaginemos a situação oposta em que brasileiras ébrias fizessem a mesma coisa com um russo, induzindo-o a cantar obscenidades semelhantes – quem sabe sobre as presuntivas vantagens de seus próprios dotes fálicos. Elas poderiam ser tachadas de devassas, nunca de “feministas”.

Também não tem cabimento a conotação penal que a imprensa brasileira deu ao caso, porque, para que se verifique um crime de ação privada, é necessário que haja uma vítima – que reclame pela lesão sofrida, ou que, em sendo incapaz, um representante legal o faça por ela.

Não consta que a moça em questão seja menor, ou deficiente mental, para se caracterizar como vulnerável moral, ao ponto de cantar espontaneamente em língua estrangeira sem saber o significado. Ela provavelmente imaginava que dizia sandices, em idioma estranho, e embarcou na brincadeira.

Entretanto, ao que parece, há uma Convenção Internacional que coíbe deboches cometidos contra pessoas estrangeiras, e aquele vídeo – a critério das autoridades russas – pode ser tido como meio de prova de que aquela nação foi afrontada – menos pela brincadeira do grupo, que a ninguém lesou, mais pela sua divulgação na rede social, com potencial para atingir a suscetibilidade nacional.    

Outro absurdo que se ouviu na grande imprensa brasileira a respeito do caso, da boca de conceituados repórteres, foi a decretação de que “ninguém ache graça!”, pois que aquele vídeo não tem graça nenhuma!. Ora bolas! A que ponto chega o fascismo do “politicamente correto”. Cada um que decida do que achar graça ou deixar de achar.

Enfim, note o insigne Humberto Ellery, atente o seu leitorado, que a chamada “ideologia de gênero” é o reino da incoerência e do paradoxo. Uma repórter russa recebeu um beijo de um turista, durante a sua elocução, na cobertura desta Copa de Futebol – e o mundo modernoso considerou que houvera assédio grave. 

Mas, quando um jornalista brasileiro, cobrindo evento desportivo no Brasil, foi cercado por mulheres estrangeiras, que também lhe pespegaram beijos, conforme circula na Internet e abaixo repercutimos – neste caso se acha não houve ofensa alguma. Espere! E a ideia que prepondera não é de que os sexos são iguais?

Reginaldo Vasconcelos
  







ARTIGO - Carga Tributária (CA)


CARGA TRIBUTÁRIA
Cândido Albuquerque*



A rigor, as alíquotas dos nossos impostos não são mais altas do que as praticadas por outros países. Em alguns casos, são até menores. Na verdade, o que torna a nossa carga tributária insuportável é o fato de que pagamos os impostos e não recebemos os serviços públicos correspondentes. Assim, temos de pagar duas vezes. Vejamos: quem pode, além de pagar os impostos relativos à saúde, ainda é obrigado a manter um plano de saúde; de igual modo, quase todos os condomínios, casas e comércios no Brasil são atendidos por serviços de segurança privada. 

A educação fundamental e o ensino médio são uma tragédia. Nas estradas, muitas esburacadas e sem segurança, os motoristas pagam caro pelo combustível e dirigem rezando para que não sejam assaltados. O Estado brasileiro não faz e não fiscaliza quando delega. Não há setor, na vida brasileira, imune à corrupção. Nesse ponto somos campeões. E as mordomias? Aqui a situação é muito grave! Somos donos da maior frota de automóveis a serviço dos privilégios dos servidores públicos.  Coisa de país de terceiro mundo. Começa no Ministério Público, o qual deveria dar o exemplo. Ali, seja federal ou estadual, a pose de Suas Excelências desfila em automóveis de luxo. E agora, com placas normais, ninguém mais controla.

Enquanto isso, milhares de brasileiros morrem nos corredores dos hospitais, nos quais faltam leitos, remédios e gestão comprometida. A situação é tão grave que o tal teto constitucional já virou ficção há muito tempo, e isso em boa parte pela obra de juízes e de membros do Ministério Público, os quais, a partir de artifícios hermenêuticos, garantem os seus próprios vencimentos acima do que seria o teto, enquanto faltam recursos para a educação e a segurança pública.

Não temos infraestrutura, pelo que produzir bens e serviços no Brasil é uma aventura difícil e sofrida. Um simples alvará de funcionamento, ainda que para simples renovação, ou é muito caro ou difícil. O Estado, em qualquer idioma ou continente, é sempre muito mais apto e eficiente para tomar do cidadão do que para servir à população. No Brasil, ainda convivemos com um dado extra: muitos ainda acreditam em um Estado máximo e provedor de bens e serviços, mesmo que isso não tenha dado certo em nenhum lugar do mundo. 

Essa visão dificulta a modernização do Estado e penaliza ainda mais a vida de quem precisa do poder público. No Brasil, a situação é tão grave que muitas agências reguladoras, inclusive no Ceará, viraram “cabide de emprego”, inclusive com a participação de entidades de classe, as quais deveriam fiscalizar e denunciar essas disfunções. Sem agências reguladoras eficientes e providas pelo critério da qualificação técnica, os serviços serão sempre deficitários, e o Estado, mais uma vez, deixará de cumprir o seu papel.

Se as disfunções acima indicadas fossem sanadas, ou seja, se o combate à corrupção, às mordomias e ao aparelhamento do Estado fossem mesmo levados à sério, sem seletividade, o dinheiro que hoje pagamos, como contribuintes, seria suficiente para que o Brasil cumprisse a sua missão institucional, com louvor, e nós reconheceríamos a nossa carga tributária como aceitável e justa.

Entretanto, para conseguir implantar as reformas aqui anunciadas precisamos, como medida inicial, trocar... boa parte dos nossos políticos. Com os que estão atualmente no poder, nada disso será possível. Ou será que o problema no Brasil é o eleitor?