SAUDADE
BOÊMIA E
GASTRONÔMICA
Reginaldo Vasconcelos*
Na
Alemanha, visitei um restaurante de 300 anos de idade, na Cidade de Colônia.
Somente os donos variaram ao longo dos séculos, mantidos o mesmo nome, o mesmo
local, o mesmo cardápio histórico, apenas acrescido, com o tempo, para
acompanhar a modernidade.
Em Nova Jersey, nos Estados Unidos da América, tive
notícia de uma casa de pasto secular que atravessou incólume as duas guerras
mundiais, e que continua atendendo e servindo os pratos criados pelos seus mais
antigos cozinheiros, que cativaram várias gerações de seus clientes.
No Brasil, não conheço exemplos de tamanho respeito
à tradição gastronômica, quando, pelo contrário, tenho lido sobre a morte de
redutos boêmios e culinários tradicionais, no Rio de Janeiro, em São Paulo e em
Brasília, que cerraram as portas, notadamente agora, durante a pandemia da
Covid.
Em Fortaleza, há poucos meses fechou a última das
nossas peixadas mais antigas da Av. Beira Mar, o Alfredo, que resistiu por 62 anos, mas que
se seguiu a tantas outras mais novas, que foram caindo em sequência como um
pelotão de dominós – o Anísio, o Expedito, a Peixada do Meio, o Tia Nair, o Delícias Cearenses, dos irmãos Marquinhos e Ranúzia.
Também não resistiram o Lido e o Estoril, na Praia
de Iracema, como mais recentemente as boas casas rústicas especializadas em
camarões do Mucuripe, como o Osmar e o Faustino.
Exceção heroica o Flórida Bar, cult point de intelectuais e artistas da Cidade, hoje localizado na Rua Dom Joaquim, na Praia de Iracema, fundado há mais de meio século pelo Sá Filho, herdado pelo seu filho, Sá Neto, depois pelo seu neto, Hermínio, hoje transferida a propriedade aos garçons da casa, mas ainda funcionando – segundo informação do acadêmico da ACLJ Altino Farias – engenheiro, dono da Embaixada da Cachaça, administrador do Blog Pelos Bares da Vida.
Outro exemplo louvável de resistência o tradicionalíssimo Restaurante Caravelle, na Av. Luciano Carneiro, fundado há já 60 anos, remontando os primórdios do antigo Aeroporto Pinto Martins, do qual ficava na passagem, até hoje mantido no mesmo local e conservando o mesmo cadápio e temperos, pela família do fundador, Oscar de Holanda – e que assim permaneça com as futuras gerações.
Para o paladar mais sertanejo, Fortaleza tinha na
Parangaba as excelentes “mãos de vaca”, as grandes paneladas, como a do tradicional
Mané Bofão, nas proximidades da Catedral, que não existem mais, cujo cardápio se restringe hoje aos grandes mercados da Cidade – e as
churrascarias populares na região do Alicate, no Bairro Monte Castelo, que
ainda sobrevivem, mas descaracterizadas da tradicional rusticidade.
O aterro da praia engoliu o restaurante Cirandinha, do Pedrão, ponto dos boêmios que virava a madrugada, e que servia uma bisteca de porco
especial – enquanto as ondas da enseada do Mucuripe rebentavam no quebra-mar a
um metro das últimas mesas. Mais na frente o Sereia, cujo restauranteur era
o Deó, também de vocação madrugadora.
Ainda subsistem, mas não têm mais a mesma
excelência culinária, os restaurantes dos clubes sociais remanescentes, o Ideal
e o Náutico, em que se servia uma impagável Lagosta ao Thermidor.
Por outro lado, já são apenas saudades as trattorias da
Praia de Iracema e da Av. Beira Mar, as do Farias – Sorriento e Il Fornelo, e a
do Alfio, vizinha do Cais Bar – saudoso e memorável.
Há muito tempo feneceu o elegante “Sandra’s”, no alto das dunas, que não sobreviveu à sua dona, Sandra Gentil – e
também naufragou o restaurante Wells de Fortaleza, do Grupo Pão de Açúcar, o
único que servia receitas de peru o ano todo.
Mais recentemente se foi a bucólica Churrascaria
Parque Recreio da Aldeota – “E a lua viu desconfiada / A noiva do sol com
mais um supermercado/ Era uma vez meu castelo entre mangueiras / E
jasmins florados”, como cantou o Ednardo.
Vez por outra ainda vou ao restaurante do Paulinho,
na Maraponga, especializado em carne-de-sol – que não é mais do fundador, mas
ainda mantém a mesma qualidade – e com mais frequência prestigio o Carne de
Caicó, da mesma especialidade, no Papicu – mas que temo desaparecer tão de
repente – não mais que de repente.
A última debacle entre os redutos mais boêmios, frequentado
na madrugada pelos notívagos mais notórios da sociedade cearense, que oferecia
à clientela um revigorante caldo de peixe – o Tocantins – que deixou na
orfandade quem quisesse “esticar” a noite, depois de festas elegantes, de
reuniões formais, de assistir a shows e espetáculos.
Enfim, sofre a culinária característica da
gastronomia cearense, não somente para prejuízo do nosso turismo, mas para
tristeza da memória afetiva dos nativos, que perdemos os referenciais da
juventude, das boas noitadas do passado, dos bons pratos remissivos aos
produtos das jangadas, bem como das antigas carneadas
nordestinas.
COMENTÁRIO
Muito boa a matéria sobre os
nossos restaurantes e bares antigos. Fiz uma viagem ao passado ao ver a
foto do Bar do Anísio, onde, há muitos anos, e ao furor de ene doses de uísque,
eu deixei minha moto Yamaha cinquentinha aos cuidados do Seu Anísio e
voltei para casa rebocado por um amigo!
Paulo Ximenes