JUSTIÇA DIVINA
Humberto Ellery*
A doutrina da Igreja Católica ensina que Deus é a Suprema Perfeição.
Deus é onipotente, onisciente e onibenevolente. Não pretendo entrar detidamente
na discussão do Paradoxo de Epicuro (ou Trilema), que contesta a prevalência
dessas três virtudes ao mesmo tempo, e conclui que havendo duas a terceira é
obrigatoriamente excluída.
Resumidamente, Epicuro afirmava que, se Deus tudo pode e tudo sabe,
não deve condescender com a existência do Mal, que Ele conhece, tem poder para
destruí-lo e não o faz, então não é onibenevolente; se Deus tudo pode e tudo
perdoa, é porque desconhece a existência do Mal, portanto não é onisciente; e
se Deus tudo sabe e tudo perdoa, porque Ele é bom, então deveria destruir o
Mal, que Ele conhece, e mesmo assim não o faz, então não é onipotente.
Outra boa discussão da Teologia se dá acerca da Perfeição de Deus.
Segundo as Sagradas Escrituras, se o maior dos pecadores se arrepender
sinceramente de seus pecados, e pedir perdão em sua hora extrema, Deus, em sua
infinita misericórdia, o perdoa.
Ora, que Justiça é essa que leva para Sua Glória o pior dos
pecadores, em igualdade de condições com pessoas de uma vida inteira de
santidade? Dimas, o bom ladrão, seguiu no mesmo dia com Ele para o paraíso. Que
Justiça perfeita é essa? Nenhum castigo? Simplesmente o perdão? A quem responde
que Seu Amor por nós é maior, está admitindo que Seu Amor é maior que Sua
Justiça. Ora, se a Justiça é menor que o Amor, então não é perfeita, pois há
algo maior que a anula.
Consequentemente, mesmo admitindo que o Inferno existe, e que os
pecadores vão todos para lá, chorar e ranger os dentes, a Santa Madre Igreja
Católica jamais nominou nenhum dos condenados, só o próprio Deus tem esse
conhecimento.
Temos historicamente apenas uma exceção, que é uma anedota. Quando
Michelangelo Buonarroti estava fazendo os afrescos da abóbada da Capela
Sistina, o Mestre de Cerimônias do Vaticano, Biagio da Cesena, subiu nos
andaimes que o genial florentino utilizava para fazer sua pintura. Perguntado
pelo Papa o que achava daquela maravilha o infeliz desandou a criticar
duramente a obra, “uma coisa desonesta, em um lugar tão respeitável pintar
tanta gente nua; esse tipo de pintura ficaria melhor em prostíbulos”.
Permitam um breve parêntese: a cena do Pecado Original parece dar
razão ao Biagio. Adão é retratado em pé, com as pernas levemente afastadas, Eva
sentada numa pedra em frente a ele, com o corpo todo voltado para Adão e bem
próximos um do outro, ambos nus, e o rosto dela voltado para trás, com ar de espanto.
Sei não: parece que ali houve um flagrante de fellatio, que seria o Pecado
Original, nada de maçã. Honi soit qui mal y pense. Fecha o parêntese.
O gênio resolveu se vingar daquele sapateiro que ousou ir além das
sandálias, e o retratou no inferno, com orelhas de burro, enlaçado por uma
cobra que morde sua genitália, e com Minos “fungando no seu cangote”. (“O Juízo
Final”, no grande painel, ocupa toda a parede por trás do altar, no canto inferior,
à direita de quem olha).
O “condenado” resolveu se queixar ao Papa Paulo III, que, muito bem
humorado, resolveu participar da galhofa/vingança de Michelangelo e respondeu: “Meu
caro Biagio, se você estivesse no Purgatório eu poderia ajudá-lo, mas eu não
tenho jurisdição no Inferno. Lá, só Deus”. E o desgraçado está até hoje no seu
martírio eterno.
Mas eu vou encerrar com um fato mais recente, lá do Século XVI,
voemos para o Século XXI. Recentemente, numa entrevista em Harvard, o então Juiz
Sérgio Moro afirmou que o crime de Caixa-dois é mais grave que a corrupção para
enriquecimento ilícito.
Eu não concordo, mas, enfim o homem é um jurista, deve saber o que
está dizendo. Aconteceu que ele abandonou o trono de Robespierre de Curitiba e
assumiu o Ministério da Justiça (trono já foi ocupado pelo Marombado de
Nilópolis, com coroa, cetro e manto).
Confrontado com a confissão do ministro Chefe da Casa Civil, Onyx
Lorenzoni, que admitiu o pecado de Caixa-dois, se disse arrependido e pediu
desculpas à Nação, o incorruptível (sem gozação) respondeu candidamente: “É
verdade, ele praticou o crime hediondo de Caixa-dois. Mas afirmou que está
arrependido e pediu desculpas”. Pronto! Está perdoado.
Tomara que ele consiga incluir este cânone da Igreja Católica no
nosso arcabouço jurídico. O Sérgio Cabral, por exemplo, já começou a admitir
seus pecados e a pedir perdão, o próximo deve ser o Lula.
COMENTÁRIO
Não sou teólogo como Ellery, nem filósofo, do tipo que se especializa
em conhecer, cotejar e comentar o pensamento existencial e ontológico concebido
e consagrado por terceiros.
Mas, como livre pensador, intuo que não há nenhuma contradição ou
incongruência na ideia-força que se tem chamado Deus – a concepção de um Intuito
Lógico exterior e superior à Natureza.
Esse Intuito também seria superior ao ser humano, mas não
totalmente exterior a ele, desde que este dispõe de consciência, sendo capaz de
se comunicar entre si, pela palavra, e consigo mesmo, por meio do pensamento.
Essa fagulha de Deus que os seres conscientes detêm em si não é suficiente
para que possam fazer uma análise plena desse Fenômeno de caráter imperscrutável, determinando
seus atributos, seus métodos e seus planos finalísticos.
Tendemos então a cair no antropomorfismo ao imaginar e tentar
configurar essa Entidade Suprema como se humano fosse, e a elaborar sobre Ela
os mais pedestres raciocínios.
Para mim, pecado e castigo são conceitos humanos, que não se podem
refletir no Absoluto. Pecado é fato atual, nascido do equívoco da pessoa, enquanto
castigo tem efeito corretivo, preventivo de futuros erros.
Mas, em Deus, esse
mecanismo não é tão cartesiano. Dele, só o perdão se pode esperar, se a Ele se pedir. Talvez aqueles que a lei dos homens ainda mantenha em expiação, de dentro dos calabouços e masmorras já se tenham confessado a Deus, que os tenha perdoado, como aconteceu ao “bom ladrão”.
Então, segundo entendo, cabe a cada um aceitar a sua sorte, para
bem identificar e aproveitar de forma lícita e digna as oportunidades que ela ofereça, em
busca da felicidade, tolerando humildemente os percalços que o destino lhe imponha, e elevando sempre o pensamento a Deus para Lhe dizer
de seus justos anseios e lhe agradecer os seus sucessos, augurando por
melhoras.
Já a política, que Ellery aborda na conclusão do seu artigo, deve se
prestar a manter e ampliar as oportunidades do povo de empregar e desenvolver os potenciais
de cada um dos seus elementos, no limite da sorte e do mérito de cada qual, sempre com fraternidade, igualdade e liberdade.
Também cabe ao Poder Público segregar da sociedade e afastar da
vida pública os escolhos morais que ainda não tenham entendido que o objetivo
da vida é ser feliz, e que só se pode ser feliz de fato sendo pacífico, verdadeiro,
gentil, e, principalmente, honesto e justo.
Reginaldo Vasconcelos.