quinta-feira, 31 de outubro de 2013

CRÔNICA

IDOSO NÃO É UM INVÁLIDO
Por Paulo Maria de Aragão*

Inseparável do percurso existencial, a velhice faz parte de nosso caminho, mas estão excluídos da regra os que terão o pôr do sol antecipado. Todos hão de seguir a viagem transitória, marcada pela ampulheta, desígnio da Providência.
Barbosa Lima Sobrinho
No entanto, os dissolutos de desejos ilimitados e ambições desmedidas se arredam desta realidade. Vivem e viveram a juventude indiferentes à velhice, como condição de vida. Passou-se a época em que as cãs foram dignas de reverência; a educação familiar tinha peso e ensinava a tratar, com respeito, o idoso e a ceder-lhe lugar nos coletivos, sem precisar de placas, leis, nem de organizações de defesa cidadã.
Sobral Pinto
A desintegração do tecido familiar diluiu vínculos afetivos. Não nos surpreendemos mais com os maus-tratos praticados pelos filhos contra os pais, chegando ao extremo de abandoná-los em asilos. Fala mais alto a lei da ingratidão, em que pese à responsabilidade constitucional que lhes impõe “ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Exilados, à margem da sociedade, resta-lhes aguardar o fim, sem referência ou participação.
Oscar Niemeyer
Contudo, surgiram alguns avanços. A CF/88 e o Estatuto do Idoso saíram do papel para assegurar deferência aos idosos, inclusive na vida trabalhista. Em recente decisão, a 2ª Turma do TST, por unanimidade, considerou ilícita a dispensa imotivada de um professor de 86 anos, após 50 anos de serviços prestados à PUC-PR, em função do critério etário. A circunstância caracterizou afronta aos artigos 186 e 189 do CCB e ao 5º, inciso X, da Constituição (Proc. RR-928600-64.2007.5.09.0008).
A insurgência do docente contra a medida desrespeitosa e ofensiva teve como fundamentação jurídica normas de diversas fontes, determinantes da nulidade da dispensa, ensejando-lhe indenização pelos danos morais sofridos. No contexto, releva-se o direito ao trabalho e à vedação ao ato discriminatório, manifestos na Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Constituição Federal, bem como na Convenção 111 da OIT de 1958, reportando-se ainda à Lei Benedita – Lei Federal nº 9.029/95 – e ao Estatuto do Idoso.
É incompreensível e desalentador que o Brasil, país pobre de mentes grandiosas, despreze a colaboração de intelectuais, juristas, cientistas, embaixadores e de outros lentes em razão de um critério etático. Construtores do conhecimento, notáveis septuagenários e octogenários, ganhadores do Prêmio Nobel, são exemplos.
Adísia Sá
Há de ver-se que a produção do trabalho nem sempre se sujeita à idade – não são poucos os jovens que, prematuramente, perdem os vigores físico e mental para o ofício. A imagem pessoal é dissociada da produtividade. Alguém esqueceu ícones do porte de um Barbosa Lima Sobrinho, Sobral Pinto ou Oscar Niemeyer? e o trabalho atual e modelar da jornalista Adísia Sá?

(*)Paulo Maria de Aragão
Advogado, professor e
membro do Conselho
Estadual da OAB-CE.
Titular da Cadeira nº 37 da ACLJ

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

BILHETE


Caro amigo Bruxo,


Esta quinta é 31 de outubro, “Dia dos Bruxos”, razão desta mensagem.

Esta tua alcunha surgiu de nosso convívio, dos teus atos, que muitas vezes consideramos verdadeiras bruxarias. Do bem, claro. Com elas consegues apaziguar ânimos, motivar pessoas, prestigiar outras, valorizar trabalhos, projetar o bem.

Noutras oportunidades, mais que uma trégua, consegues a paz entre amigos em litígio. 

E atinges esses objetivos pelo teu simples querer bem a um, a outro, a uma causa; sem interesses pessoais, tampouco materiais.  A coisa está complicada e lá vem o “Bruxo” com sua poção mágica e... Tcham! Tudo resolvido.

Mas sabemos que essa “mágica” não é tão simples assim. Tua mágica vem do coração, e com ele ninguém pode, não é mesmo?

Porém, antes que tua poção surta o efeito desejado, ela é maturada dentro de ti, faz-te sofrer, angustia-te, pensas em soluções.

Quem sabe varas noites e noites com estes pensamentos até que o “Bruxo” enxergue uma luz, descubra uma receita para uma nova poção mágica.

Amanhã, em nosso habitual encontro das quintas, comemoraremos o Halloween do Pelos Bares da Vida, em conjunto com o Flórida Bar. Todos estão convidados. Esperamos muitos amigos por lá. Este dia será dedicado a ti por merecimento, e digo-te: é muito bom ter um bruxo entre meus amigos.

Abraço,


Altino

"O Bruxo" é o agnome do acadêmico Reginaldo Vasconcelos, 
 destinatário do bilhete. 
 Altino Farias é o acadêmico remetente.





terça-feira, 29 de outubro de 2013

CRÔNICA

AS TRÊS DOSES



Certa época passou por grande aperto financeiro, quando a empresa na qual trabalhava, havia dezesseis anos, entrou em processo de falência. Cinco meses sem receber, dois filhos pequenos para criar e educar, e demais compromissos. O pior é que a situação não se definia de vez, para que ele pudesse tomar outro rumo, mantendo-se preso a ela. Sem gostar de incomodar ninguém com problemas, ia se virando como podia.

A turma se encontrava no Bar do Toinho Gordo às quintas. Numa dessas, contando apenas um real no bolso, resolveu fazer uma caminhada e depois passar no bar para tomar duas cachaças, que custavam trinta centavos a dose, àquela época. 

Fora de circulação há algum tempo que estava, pediu a primeira dose ao Toinho enquanto perguntava pelas últimas. Conversa boa e animada, logo pediu a segunda, sorvida com grande prazer e anunciada como a saideira. Frente ao (previsto) protesto geral que se seguiu, solicitou a terceira e última dose, conforme a disponibilidade financeira de então permitia e limitava.

Tomada na calma, lambendo os lábios em busca do seu último e recôndito sabor, demorou o quanto pôde, até que mandou fechar a conta. Os noventa centavos apresentados de despesa seriam saldados pela sua única moeda de um real, mas... Cadê a danada da moedinha, afinal?

Procurou num bolso, noutro, e nada! Logo dois ou três se propuseram a honrar o débito para com a casa, mas Toinho Gordo recusou recebê-lo de quem quer que fosse: “Essa é por conta da casa, faço questão!”, sentenciou. “Então eu pago a próxima!”, retrucou de imediato uma das testemunhas. Porém, encabulado e meio sem ânimo, nosso protagonista bateu em retirada. 

Enquanto isso, não muito longe dali, em sua casa, a moedinha de um real jazia tranquila em cima do criado mudo, pronta para a próxima rodada.


Pedro Altino Farias, em 21/10/2013
Titular da Cadeira nº 16 da ACLJ
www.opiniaoemperspectiva.blogspot.com

INFORME

Academia Cearense de Administração
Por Paulo Tadeu*

Os administradores  cearenses estão muito bem estruturados em termos de  representatividade: já dispunham do Conselho Regional de Administração e Sindicato,  e agora surge a Academia Cearense de Administração – ACAD, fórum apropriado para reunir profissionais comprometidos  com o desenvolvimento  da Ciência da Administração  e com a eficácia dos meios de produção alocados às organizações públicas e privadas.  


A ACAD  foi fundada  em 6/2/2013, contudo a instalação  aconteceu no  Palácio da Luz,  último dia 18,  quando foram empossados os dirigentes e os sócios fundadores. Dentre estes estão os políticos Mauro Benevides, Eunício Oliveira  e Gaudêncio  Lucena. A ACAD muito contribuirá para o fortalecimento  da  Ciência da Administração, que dentre as neociências surgidas a partir do Século XX foi a que mais se desenvolveu.


Sua primeira Diretoria está composta por João  Alves de Melo (Presidente), Francisco de Assis Moura Araripe (Vice-Presidente), Lamarck Mesquita Guimarães  (Finanças) e Francisco Sérgio de Vasconcelos Bezerra (Administração). Conselho Fiscal: Messias de Sousa, Roberto Pinto, Marcos Eliano, Rogério Cristino, Geraldo Batista de Fritas e  Roberto Campelo Feijó.

Na qualidade de administrador oriundo da pioneira e querida Escola de Administração do Ceará – hoje Curso de Administração  do Centro de Estudo Sociais Aplicados da Universidade Estadual do Ceará  onde tive a honra contribuir como  Professor Adjunto exultei  com a  criação da ACAD pois, conhecedor da capacidade de liderança dos seus membros, já a  antevejo movimentando a nossa  categoria, dando-lhe novo ânimo. Afinal,  ela  promoverá sessões culturais destinadas a debater problemas  de administração, mediante conferências, seminários, exposições e outras formas de divulgação dos princípios teóricos, fundamentos doutrinários e progresso tecnológico  da Administração e ciências afins.

Aqui não comportaria  declinar as atribuições da Academia Cearense de Administração, como o estímulo à pesquisa na área da administração pública e empresarial;   boletins informativos, destinado ao exame e debate de problemas administrativos, e a divulgação de trabalhos de relevante importância técnica;  intercâmbio entre instituições congêneres e universidades, inclusive no exterior; serviços de biblioteca, documentação;  colaborar com os poderes públicos e com as empresas privadas no estudo e encaminhamento de soluções de problemas de atinentes à administração como ciência e arte. Assim é a ACAD, uma relevante iniciativa!

Jornal O Estado – 26.10.2013

*Paulo Tadeu 
é jornalista veterano 
em Fortaleza

domingo, 27 de outubro de 2013

TWEETFOR - LIVROS - UNIFOR 40 ANOS



 
Revestiu-se de pleno êxito a sétima edição do Tweetfor, o grande encontro físico de integrantes das redes sociais da Internet, o maior do Brasil, que ocorreu na 


tarde destsábado, dia 26 de outubro de 2013, no bosque de coqueiros do Hotel Marina Park, em Fortaleza.

Ao contrário do que se temia, não prejudicou a afluência de público a concorrência ocasional de um grande evento católico promovido no aterro da Praia do Ideal, nem a aplicação da primeira prova do ENEM, que também coincidiu na mesma data e horário.








A festa deste 7º Tweetfor teve início às 13 horas, quando começou o serviço de bufê de feijoada, que se estendeu até as 7 da noite, com todos os pertences e guarnições que o prato exige. Digna de nota também a farta e variada mesa de doces, e a oferta de refrigerantes e cervejas, sem limite de consumo.

Às 16 horas, no louge da ACLJ, aconteceu o lançamento do ensaio filosófico EUTIMIA – O Segredo da Felicidade Essencial, do acadêmico Reginaldo Vasconcelos, obra que teve o apoio cultural da Universidade de Fortaleza – UNIFOR, dentre os atos comemorativos dos 40 anos daquela instituição de ensino superior, completados este ano. O livro tem prefácio do jornalista e sociólogo Arnaldo Santos, e o médico e político Lúcio Alcântara redigiu uma das orelhas. Foi editado pela RDS Gráfica e Editora, fundada pelo saudoso jornalista Dorian Sampaio, hoje capitaneada por seus sucessores Dorian Filho e José Dorian.



Após a solenidade de lançamento, para evitar fila, moças do cerimonial levaram exemplares às centenas de ocupantes das dezenas de mesas dispostas pelo bosque, muitos dos quais foram ao estande da Academia colher o autógrafo do autor. Alguns deles já se haviam iniciado na leitura do livro e comentavam o seu instigante conteúdo.











Presentes à festa os acelejanos titulares Rui Martinho Rodrigues, Evaldo Gouveia, Djalma Pinto, Altino Farias, Roberto Martins Rodrigues, Adriano Jorge, Paulo Ximenes, Dorian Sampaio e Denise Gurgel – além do Membro Benemérito Miguel Dias de Sousa e dos promotores do Tweetfor, Alfredo Marques, Freitas Júnior e Sávio Queiroz, que também são “imortais”. Aliás, estes três últimos, assim como o autor do livro, são todos ex-alunos da UNIFOR, em que cursaram o ensino superior e se graduaram.
Também disseram presente ao Tweetfor e à tarde de autógrafos no lounge da ACLJ o advogado José Damasceno Sampaio e sua mulher, ele presidente da  Academia Cearense de Letras Jurídicas – ACLJUR.


Foram oferecidos gratuitamente ao público no lounge obras de outros acelejanos, cujos exemplares foram avidamente disputados. Havia livros de Dorian Sampaio Filho, do Prof. Rui Martinho Rodrigues, do jornalista Gusmão Bastos e da escritora goiana Edilma Neiva, mulher do jornalista Wilson Ibiapina, titular da ACLJ.

Brilharam na animação da festa as bandas roqueiras “The Dillas” e “O Verbo”, que se sucederam no palco durante a tarde. Durante a sesta o Hotel Marina Park disponibilizou aos convidados rápidos passeios de escuna, a que alguns dos presentes aderiu.

Encerrou o evento o Bloco “O Baqueta”, já na fase noturna, a mais afinada e bela agremiação carnavalesca cearense. 









sexta-feira, 25 de outubro de 2013

ARTIGO

Novo Mestre da Crítica Literária no Ceará
Por Rogério Bessa (*)

Conhecemos Vianney Mesquita na segunda metade dos anos 50 do século passado no antigo Seminário da Prainha. Reencontramo-nos como professores na Universidade Federal do Ceará. Em novembro de 1987, tornamo-nos membros efetivos da Academia Cearense da Língua Portuguesa. Como seu confrade nesta Instituição, da qual foi Presidente durante dois mandatos, tivemos a oportunidade de perceber a extensão e o peso de sua ampla cultura nos domínios fronteiros da Comunicação e Literatura, sobre os quais, até agora, já produziu catorze livros, sem incluir artigos em periódicos científicos nacionais.

Todas as obras publicadas lhe evidenciam o respeitável lastro de cultura clássica e um grande domínio do Vernáculo. Se mais é necessário destacar, diremos, então, que escreve com a clareza, a fluência e o requinte dos grandes mestres da Comunicação e da Literatura.

O Ceará tem muita tradição no âmbito da Crítica Literária, tradição surgida em meados do século XIX com Araripe Junior e consolidada pelas valiosas contribuições de Rocha Lima, Braga Montenegro e Pedro Paulo Montenegro, para lembrar apenas nomes exponenciais nascidos no Ceará. Esta galeria dos grandes críticos literários cearenses agora se amplia com a inclusão de Vianney Mesquita que, com a publicação de Arquiteto a posteriori (2013), ratificou o domínio de sua atuação preferencial e maior saber.

Professor Doutor Rogério Bessa 

Foto: Diário do Nordeste
 






CRÔNICA

NEM TANTO AO CÉU NEM TANTO AO MAR
Por Paulo Maria de Aragão (*)

Haverá maior descaro do que perceber vencimento, inclusive por meio de um procurador, sem sequer ficar visível nas repartições? Sócrates, o filósofo ateniense, dizia: “Quem não quer trabalhar tem a intenção firme de viver do roubo ou da esmola”. Na escola primária, já se ensinava que “A ociosidade é mães de todos os vícios”.

Nada é mais natural que as obrigações sejam exercidas com diligência e assiduidade, sob pena de configurar ato desidioso, seja nas relações celetistas, seja nas estatutárias. O contrato é lei entre as partes, implica concessões recíprocas que, violadas, autorizam a sua resolução.

Nesse contexto, gestores dão de ombros para os princípios constitucionais da administração pública. Dada a enxurrada de desmandos, indefesos administrados bancam mordomias e valores desviados diante da remota possibilidade de recuperação.

Ora, como esperar zelo com o patrimônio e com o erário quando os responsáveis transigem com fraudes impudentes e gigantescas no governo? A eficiência é uma carta fora do baralho no jogo dos gestados, curtidos nos conchavos manipulados pela corrupção - cargos são distribuídos conforme critérios político-partidários.

Assim, entes públicos transformam-se em “capitanias hereditárias”, partilhando-se cargos comissionados entre os três poderes, em flagrante burla ao processo seletivo de modo amplo e democrático - corolário do princípio isonômico. Desse modo, os “donatários” consolidam o pacto do esbulho da máquina estatal. Ora, na forma estampada pela imprensa, como admitir que, ainda hoje, 40% dos cargos públicos sejam comissionados (ocupados por indicação), e dos 60% restantes, 20% sejam de pessoas contratadas sem concurso?

Ilustre-se, por atemporal, a proeza do audaz soldado no antigo Império Romano; estritamente fiel e rigoroso às obrigações, morreu de pé no seu posto, enquanto a cidade se sepultava nas cinzas ardentes do Vesúvio, dois mil anos atrás. Não ocorreu como lenda o alucinante ato da sentinela, mas de real exemplo do indesviável cumprimento do dever, embora tenha excedido os limites da razoabilidade.

Porém, excessos à parte, ação boa ou digna mantém-se coerente com o imperativo categórico kantiano: uma norma tem por fim último e único manifestar o dever consciente, moralmente obrigatório.

*Paulo Maria de Aragão
Advogado e Professor
Titular da Cadeira
de nº 39 da ACLJ

domingo, 20 de outubro de 2013

CONTO CRONOLÓGICO

MICROCOSMO
Por Aluisio Gurgel do Amaral Jr*

04h21
O silêncio não entedia tanto quanto a ausência, nem a ânsia pela palavra certeira é maior do que a dúvida, e por serem decorrências da mesma dor, confluem num ponto: na minha loucura por ti.

04h22
Confirmando a posição das coisas: camisas pelo lado esquerdo, calças pelo direito, meias enroladas em bolas. Tudo pronto, nada falta além de ti. Mas quem disse que cabes na mala?

04h23
Me levo ao banheiro, me lavo lento, me barbeio e me visto. Faço tudo isso porque não há quem faça o que sei fazer de melhor: cuidar de mim.

04h24
Yeltsin acaba de renunciar, anda me copiando rasgado, nas últimas horas – pelo menos sabemos quando não há mais espaço para a convivência leal.

04h25
Ainda te vejo dormindo mais uma vez e prossigo arranjando-me para ir, pois não é assim que queres, sem adeus, nem nada?

04h25
N'outros tempos, ameaçasse partir e caias ao chão, e rasgavas a blusa, e expunhas os seios, e gritavas tantos que a vizinhança acorria. Era assim que me fazias ficar.

04h26
Esta noite assustei–me: não houve gritos, sequer me olhaste de frente e, se bem recordo, não ouvi uma palavra tua, bastaram os gestos.

04h27
Outra vez defronte ao espelho: lá estou eu do outro lado – sorrio ou choro? – quase esquecendo a escova de dentes e a banda de mim que não quer ir.

04h28
Do guarda roupas a roupa do corpo e a indecisão: levar o poster do Che ou sobre ele escrever uma declaração de batom?

04h29
Djavan estava certo: o amor é mesmo um grande laço, um passo para uma armadilha. Pior: confesso que tentei seguir-lhe o rastro e me perdi no caminho.

04h30
Da varanda, as luzes da cidade sempre cintilam em uma só e mesma direção: a daquele avião que parte.

04h31
Quadro, quadro, quadro, console, solitário, jarro de flores, espelho... E vou esfumaçando a paisagem que deixo em pouco.

04h31
Por que partir de madrugada? Por que não? Acaso há hora certa para partir? O tempo é referencial de despedida?

04h32
Ainda a fumaça dançando pela sala e mais um trago... E de novo vens lá de dentro, sem licença, trazendo cenas do tempo em que fazíamos tudo juntos.

04h33
Vens de quando andávamos à toa em meio aos outros, reparando nas pessoas aquilo que têm de mais belo: a espontaneidade.

04h34
Vens de quando Lena Hau, o novo nome da luz! – foi assim que a chamamos – começou a transformar nossos sonhos em realidade.

04h35
Vens de quando finalmente descobrimos que o João Gilberto não sabe dar língua direito, mas consegue ser bastante eficiente.

04h36
Vens de tantos tempos que chego a cogitar o tempo como um referencial de despedida, talvez por isto partir de madrugada.

04h37
Mas desde a primeira vez o tempo nunca regulou nossas transas. Éramos muito barulhentos e atemporais, e isto causava espécie à sua afeição pelo silêncio.

04h38
Torno ao quarto e eis a tua imagem meio nua, os cabelos desgrenhados, um seio à mostra e a calcinha entrando pelos fundos... Nem Modigliani se aquietaria.

04h39
Uma massagem na fronte, não levar Che, nem deixar declaração, apenas a preocupação do itinerário. Para onde ir?

04h39
Ao me verem, os outros certamente dirão: “tem gente que não tem nada para fazer em casa e vai fazer nada na casa dos outros, como se os outros não tivessem nada para fazer também!”

04h40
Por ora, retorces o corpo esbelto sobre a cama. Ei, psiu... Se acordasses agora talvez te perdoasse a falta de tato.

04h41
E perdoaria de coração se soubesse quem sou e o que significo para nós, mas ando tão sem saber que nem me imagino agora.

04h42
Então imagina-me assim: sou três eus que não se suportam, o primeiro vive a querer dominar-me, o segundo a querer sujeitar-se e o terceiro, esse nunca sei por onde anda.

04h43
Pois se aos outros muitas vezes é-se capaz de tudo, a si nem sempre se é capaz de muito...

04h44
E era tão bom quando cantavas: “Baby/ don't let me down tomorrow/ que eu não sei viver nem um minuto sem você/ às vezes/ quando bato o pé/ e fecho o tempo/ juro que não sei dizer porque/ só sei/ que lhe amo, baby/ e que nada mais importa a mim/ não vá embora, baby/ se você for não vai sobrar um tanto assim/ de mim...”

04h46
Agora, nec mihi mors bis patienda foret: nem eu teria de morrer duas vezes, nem eu teria de sofrer duas vezes a mesma morte.

04h47
Logo amanhecerá e ainda não tive coragem de ir outra vez. Aqui, bem aqui no coração há uma química acontecendo que pelejo para entender.

04h48
Conduzo a mala até a sala e finjo que vou fumar, finjo que alguém baterá à porta e que um dos meus eus – talvez aquele que não me suporta – irá ao encontro do outro que nem sei por onde anda.

04h49
Farei bom negócio se ficar apenas com o que realmente gosta de mim... Correção: faríamos bom negócio, se assim fosse.

04h50
A água ferve e os segundos correm no counter do micro-ondas até o marco zero. Um apito, abro a porta, despejo o pó na xícara, o adoçante...

04h50
Um ruído flecha o resto de silêncio que me sobra: é uma tampa de privada que bate no banheiro do ex-quarto.

04h51
Sei que acordaste. Te conheço tão bem que sou capaz de adivinhar o som dos teus pensamentos, a forma dos teus sonhos, a cor dos teus sentimentos, tudo. E sabes disto muito bem.

04h51
Sorvo o café em um gole rápido – não quero mais incomodar – e a quentura arquiteta uma lágrima que me corre pela face. Decidi, vou mesmo: me viro, rumo em direção à sala...

04h52
...e esbarro contigo na porta da cozinha. Agora tenho certeza: em tanto tempo, esta é a primeira vez que realmente nos olhamos.

04h52
E olhar em ti assim não é mais a mesma coisa – nunca, nunca mais, pois é a primeira vez que me vejo claramente, nu, sem subterfúgios, nem casca alguma, entendes?

04h53
É claro que sim, caso contrário não me envolverias em teus braços, nem tocarias levemente a minha boca quando quis falar, nem dirias: “fica, desta vez foi sem querer!”

*Aluísio Gurgel do Amaral Jr
 Titular da Cadeira de nº 14 da ACLJ