ANTINOMIAS DA
MUDANÇA CULTURAL
Rui
Martinho Rodrigues*
Dramaturgia e direção do teatro
A mudança cultural em curso guarda relação com
numerosos fatores. Intelectuais, artistas, professores, ativistas políticos e
celebridades são importantes agentes da mudança histórica. Mobilidade
geográfica, comunicações instantâneas popularizadas, urbanização e outros
aspectos das transformações em curso facilitam a ação dos agentes citados e são
impulsionados por eles.
A mudança cultural tem sido promovida por
ativistas que exercem uma mistura dos papéis de “diretor do teatro” da
sociedade e de autor do script da cultura. Invocam a ciência como
fundamento de legitimidade destas funções, como se a ciência fosse unívoca e os
fenômenos sociais fossem do tipo nomológico.
Registre-se que não existem leis,
no sentido científico (conjunto de fatores que em condições definidas levam
necessariamente a um resultado previsível) que regulamentem a dinâmica social.
Caso existissem tais leis nós não teríamos escolhas, seriamos como máquinas que
seguem uma programação. Friedrich Engels (1820 – 1895), no seu Iluminismo
tardio, repete incontáveis vezes a expressão “leis da história”, no prefácio da
edição de 1883 do Manifesto comunista.
O atavismo ideológico
O que inspirou Platão (428/427 a.C.– 348/347
a.C.), ao escrever A República, foi a ideia de um conhecimento superior como
fundamento de validade de uma ordem política e social em que os filósofos
governariam com poder absoluto sem consultar o povo. A alegoria da caverna, do
autor citado, sugere que o homem comum é como os prisioneiros da caverna, que
imaginam como seja o mundo que desconhecem. Mais tarde, porém, ele escreveu
outra obra, As leis, em que se retrata do que havia dito em A República.
Mas os divulgadores de ideias ocultam a
autocrítica de Platão sob grossa camada de silêncio. Por isso ela é pouco
conhecida. Talvez por não oferecer nenhuma fórmula apta a garantir a felicidade
em uma nova sociedade sob o comando dos
intelectuais. Os filósofos seriam como o único dos prisioneiros da caverna que
escapou, conhece a realidade e não é compreendido pelos que permaneceram presos
na falsa “consciência” e por desconhecer a realidade. Só imaginam o significado
de sombras.
Karl Popper (1902 – 1994), na obra A sociedade aberta e os seus
inimigos, coloca o pensador ateniense como um dos inimigos da liberdade,
aparentemente referindo a obra mais divulgada. Curiosamente a ideia de
“consciência verdadeira” é apregoada até pelos cultores do relativismo
cognitivo e axiológico, com a ajuda da dialética, que Lucio Colletti (1924 –
2001) nomeava como senhora de costumes cognoscitivos fáceis.
A citada obra de Platão é havida como uma
utopia, no sentido de uma sociedade imaginária, mas perfeita. Embora designe um
não-lugar, é apresentada pelos “reis filósofos” como realizável se lhes forem dados
poderes absolutos. Isso parece com o Iluminismo e com a Revolução Francesa? Ou
com todas as revoluções?
A vontade de potência
Os intelectuais classificam A República
um modelo perfeito porque se imaginam herdeiros dos reis filósofos. A experiência
histórica, porém, não lhes tem dado poder na construção da nova ordem. O regime
sonhado por Platão era totalitário, exercido em nome do bem comum, alegação
repetida pelos jacobinos, justificando o “reinado do terror” e a “fraternidade”
da guilhotina.
Grandes torpezas foram feitas em nome do bem. Todas as
revoluções se inspiram na obra de Platão e na Revolução Francesa. É mais
adequado, para os que se presumem herdeiros do poder nas revoluções, classificá-la
como utopia do que como distopia. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) viu vontade
de potência sob a pele dos abnegados missionários da construção demiúrgica de
uma nova sociedade e de um novo homem. É um desejo que embriaga, gera
dependência psicológica. Raymond Aron (1905 – 1983) o descreveu na obra O
ópio dos intelectuais.
Antinomias da engenharia social e
antropológica
O bem-estar é a meta principal e o arrimo da
legitimidade do projeto político demiúrgico. No fundo é um projeto de superação
do mal-estar na sociedade de que falava Sigmund Freud (1856 – 1939) já no
título de uma de suas obras. Acomodar pulsões de vida e de morte, do
inconsciente, em um modelo supostamente racional e perfeito é um verdadeiro nó górdio.
É, portanto, um problema a ser resolvido pela espada, como o fez Alexandre da
Macedônia. Não se trata de coincidência que a engenharia social e antropológica
use e abuse da “violência do bem”. A Antropologia Filosófica dos “reis
filósofos” nos considerada inteiramente guiados por uma suposta razão universal
na aplicabilidade a todas as demandas humanas. O seu arrazoado é tido como
irresistível em face das pessoas de boa fé. Só verdadeiros personagens bestiais
não a compreendem ou compreendendo resistem e devem ser extirpados.
Falta aos demiurgos uma razão unívoca, apta
para solucionar todos os conflitos e insatisfações sociais. Falta aos que se
dizem dirigentes, nos movimentos políticos do ambicioso projeto, a virtude da
incorruptibilidade, que na posse dos amplos poderes necessários para superar a
resistência “do mal”, tende a corromper, posto que o poder corrompe e o poder
absoluto corrompe de modo absoluto, como disse o Lord John Dalberg-Acton (1834
– 1902).
Não surpreende que as revoluções tão igualitárias e virtuosas se curvem
a lei de ferro da oligarquia, do sociólogo alemão Robert Michels (1876 – 1936).
Famílias da elite revolucionária ocupam o poder. O nepotismo sobrevive no
ambiente das sociedades dirigidas pelos reis filósofos dedicados a corrigir os
erros das velhas sociedades.
A liberdade de ser versus liberdade de agir
A sociedade dos reis filósofos enfatiza a
igualdade, dizem os seus corifeus. Não se trata, todavia, da liberdade de agir,
por eles nomeada como liberdade negativa, porque se limita a negar a terceiros
o direito de obstacular a ação de atos lícitos. Admitida a liberdade de ação,
seja dos agentes econômicos ou dos sujeitos da ação política, a desigualdade
seria reintroduzida como meritocracia ou por meio de habilidades nem sempre
virtuosas que satisfazem demandas legítimas e permitem a acumulação desigual. A
liberdade de agir tem que ser limitada para que o rendimento de jogador de
futebol, artista, atleta, técnico hábil ou de um empreendedor competente não
introduza a desigualdade.
A liberdade invocada pela “vanguarda” da
história é a liberdade de ser, que ela descreve como condição de realização do
potencial e dos sonhos de cada um. Os pressupostos de tal liberdade são que:
(i)
todos saibam o que querem ser e que tal vontade seja minimamente estável;
(ii)
todos tenha potencial para ser o querem independentemente da realidade material.
(iii) Liberdade de ser pressupõe, ainda, a compatibilidade das vontades
com o interesse social para que todos fossem igualmente remunerados, sem
nenhuma relação com o que venham a se tornar conforme a mencionada liberdade de
ser, sem importar com as demandas sociais que possam atender ou deixar de
atender.
(iv) Pressupõe, ainda, que a liberdade de ser pode se realizar
sem a liberdade de agir, que é própria das concepções liberais.
Indubitavelmente pressupõe demais.
Os profetas das utopias não deixam claro que
estão falando da igualdade na linha de chegada ou de resultados materiais,
talvez porque se trate de um tipo de igualdade que nunca foi realizada.
Historicamente a igualdade que mais se aproximou da realização foi a igualdade na
linha de partida, como oportunidade.
Mas esta não é isonômica quanto aos
resultados, acaba por ser apenas proporcional ao desempenho diferenciado pelos
mais diversos fatores, conforme defendida por Aristóteles (384 a.C.– 322 a.C.).
Trata-se de igualdade jurídica, política e valorativa. Não é econômica, não afasta
as diferenças sociais. Mas os seus prosélitos não percebem isso, ou preferem não
perceber.
A democracia do esclarecidos
Democracia versus “consciência verdadeira” é
outra antinomia da promessa messiânica dos reis filósofos. Permanece oculto, na
ideia de “verdadeira consciência” ou “consciência esclarecida”, a mudança do
conceito de democracia, deixando de ser governo da maioria para ser governo dos
“esclarecidos”. O emprego do verbo “conscientizar” oculta a ideia de
proselitismo e até de catequese. Indiferencia o conhecimento pertinente aos
juízos de realidade ou de fato do conhecimento de outra categoria, concernente
aos juízos de valor. O verbo conscientizar invoca a ideia de “consciência
verdadeira”, inconciliável com o relativismo cognitivo e axiológico, ainda sob
a camuflagem do perspectivismo. A “vanguarda esclarecida” se vale dos dois
argumentos, afinal a dialética permite tudo.
A hierarquia de conhecimento só se afirma na
primeira categoria. Juízo de valor iguala eruditos e apedeutas. Os muito
estudados podem até ser confundidos com as falácias de autores de grande
prestígio. As virtudes morais se relacionam com os juízos valorativos, não com
os juízes de realidade. Estes se inserem no campo da técnica. Decisões
políticas não são técnicas, mas valorativas.
O relativismo cognitivo e
axiológico de um certo tipo de engenheiros sociais e antropológicos, da chamada
dialética negativa, próxima do niilismo, não apresenta projeto de construção da
nova sociedade. É apenas um projeto de destruição da velha sociedade, que tem
amparo em conquistas históricas, muitas das quais valiosas, a despeito das
tragédias encontradas no seu caminho. Um autor muito prestigiado tentou
contornar a obscuridade das formas finais de sua construção dizendo, mais ou
menos as seguintes palavras: eu não sou bruxo para retirar do caldeirão da
história as formas do futuro.
Discurso sedutor, pródigo em críticas nem
sempre procedentes e em promessas que sempre precisam de mais tempo e mais
poder para que sejam realizadas. Mas falto em soluções. Diz que todos merecem
viver melhor, os nossos fracassos são culpa do “sistema” e com meia dúzia de
chavões produz “eruditos sem estudo”. Permite aos mesquinhos pregar a
solidariedade sem ônus para si, transferindo a conta para o Estado.