Hino
Geraldo Jesuíno*
Ela
fica ali, quieta, distante em sua cadeira velha de ferro e fios de nylon.
No seu silêncio, quase sempre alheada das coisas, esboça de vez em quando um
arremedo de sorriso, desenho perdido entre as tantas rugas, ou deixa que alguma
lágrima escape e, à falta do que a contenha, caia-lhe no colo, sobre o vestido
barato.
Nem
sempre foi assim. Houve tempo em que faceirice e graça lhe sobravam no corpo de menina-moça,
quando, ainda com os pais, esquivava-se da cobiça dos olhos famintos dos
clientes da barraca de feira livre, onde vendiam quase de tudo e garantiam o
sustento da vida simples.
Também
houve época em que, sozinha, enfrentou a tarefa de cuidar da própria vida. Já
mulher feita,
exibia uma beleza pronta, sem mais retoques do que
aqueles das roupas colhidas, ao seu agrado, entre as tantas que vendia. Dava-se
bem nas tarefas mais do que
pesadas do dia a dia e ainda atentava em se
desvencilhar das investidas, mas, agora, sem o seguro cuidado dos velhos, nem
se dava mais a tanto empenho. De vez em quando, correspondia a um sorriso. Já
não virava o rosto, não franzia o cenho, não cerrava a porta. Quem sabe, um
braço para ajudar na luta, um corpo para aquecer a cama, um amor para completar
a vida... – Ah! Um amor! Ah... – Era tempo de querer chegar mais perto de
tudo com o que
sempre sonhara. Mais de trinta anos já vira passar.
Então
houve o tempo das felicidades. Pleno, revolto, impetuoso. Um ano, dois, três.
Ela, firme na luta da feira, nas lidas da casa. Ele, zanzando nos biscates, nas
mesas dos bares e, até, nas penumbras de casa. Depois, a modorra, a feira mais
pesada, a casa mais oca, o carinho mais no fim da madrugada. Quatro, cinco,
seis anos. Tempo de gravidez de risco, mas ela queria. Impôs-se e, quase
entorpecida pelo odor de álcool, conquistou o intento. Nasceu-lhe filha num
domingo de feira, sem as vistas do pai. Sete, oito anos. Vida difícil. Dinheiro
curto, canseira. A casa, agora menor e num bairro mais distante. Vida de dor,
de insultos, de hematomas. – Melhor
viver apenas com a minha filha e Deus. – Assim, ficou um coração quase
esvaziado de um amor que partiu aos trancos, em passos bêbados, sem dizer
adeus.
Oito,
nove, catorze ... – Quanto tempo,
meu Deus?!
Foi
isso que ela se perguntou quando a filha, já de sete anos
atendeu, no meio da noite,à porta
da frente.
– Mãe, tem um homem aqui procurando a senhora!
Ele!
Quebrado, maltrapilho,
ferido, embriagado, mas ainda um amor, mesmo repudiado até quase às entranhas.
Deu-se
o tempo das piedades, dos perdões e das acolhidas; de curar feridas do corpo e
da alma. Tempo de acreditar em entes e destinos sãos, e em milagres. Um
aconteceu: nasceu seu varão entre dores e lágrimas. Aquele outro sonho sumiu,
sorrateiro como sempre, no apagar das luzes de um dia qualquer.
Vieram
os anos amargos. Tantas sequelas do parto. Tanto a fazer.
A
filha, apoio seguro; o filho, rastro do pai. Foi do que se lembrou quando, amparada pelas lágrimas e os braços da filha,
e carregada, às pressas, para uma UPA. Um infarto quase fatal, uma cadeira de
ferro e fios de nylon para
sustentar os cansaços de tantos anos e um radinho de pilhas, quebrado e
amarrado com ligas de borracha, que mal dava para ouvir.
Outra vez, porém, se clareou tempo de festa! – Parabéns pra você, nesta
data querida!... – O beijo na testa e o presente, lindamente embalado em papel
com flores vermelhas: um radinho de pilhas, novinho, moderno e de voz clara e
macia.
–
Tó, eu vou para a feira, trabalhar. Vê se tu ficas um bocadinho com a mãe,
antes de ganhar o mundo. Presta atenção! É aniversário dela, olha o que é que
tu vai fazer, viu? Vou trazer um bolinho, meio dia... – Ela ouviu a filha dizer ao
filho. Outro beijo e o sinal de até
logo.
O
radinho cantava um hino bonito. Dava gosto ouvir.
–
Desculpa aí, velha, mas eu preciso mais do que a senhora!
–
Gruniu-lhe o filho entre suores e visíveis tremores.
Desta
vez não foi preciso muito tempo; foi um quase-nada. O
radinho foi sacado do seu colo e saiu, ligeiro, cantando, rua abaixo,
no rumo das esquinas mais escuras.