terça-feira, 31 de dezembro de 2024

CRÔNICA - Saudade e Esperança (RV)

SAUDADE
E
ESPERANÇA

Reginaldo Vasconcelos*

Último dia do ano, ensejo de esperança e de saudade. As perspectivas pessoais ainda são ótimas, mas os doze vagões temporais que partem amanhã não transportam nada alvissareiro para a Nação e para o povo a que pertenço, e as agruras que carregam não são surpresa para mim. 

Desde o começo da atual conjuntura eu já tinha um prognóstico funesto sobre os destinos da locomotiva nacional. Entretanto, se o País se afigura uma pocilga moral, de violência, mentira, iniquidade e incompetência, da lama que borbulha nos gabinetes da República somente o seu olor acre e nauseabundo me atinge, até agora. 

Mas o incenso da saudade trescala intensamente neste dia, com o perfume que harmoniza a fragrância dos prazeres e dos afetos do passado, ou da ausência fortuita de alguns destes, com o almíscar do que passou e não retorna – mas continua presente em nós, entre as memórias mais gentis e os mais enlevados sentimentos. 

Quereria eu ter ao meu lado nesta noite todos os amigos queridos que a vida me emprestou, visitar todos os salões dos antigos carnavais, cavalgar pelas veredas ensolaradas da infância, mergulhar de novo na Piscininha da Praia de Iracema, vagar pela cidade no meu carro branco do passado.

Com o outro da mesma cor, subir a serra, perfurar a paisagem em demanda do sertão. Ah! Saudade dos meus vários e sucessivos carros brancos! Que saudade das tantas moças que me cortejaram e que, consequentemente, cortejei. Saudade imensa dos meus cães, dos queridos operários com os quais lidei. 

Saudade da minha pequena bicicleta, a única que tive, com a qual eu disparava pelas calçadas da minha rua, ainda tão pequeno e primário quanto ela. Saudoso também dos fícus benjamins que exalavam um perfume florestal sobre a avenida em que eu morava, como também das oiticicas nativas gigantes que sombreavam o pátio da velha casa da fazenda.

Vem-me algumas lembranças olfativas do tempo de escotismo – o odor da lona das barracas de acampamentos e das cordas de sisal, e os cheiros da prática de lutas  as luvas de crinas de cavalo, os suados quimonos de algodão trançado, a palha dos tatames japoneses.    

Uma grande nostalgia dos meus pais, e dos tios, tantos tios, tantas tias, apenas delas uma ou outra ainda viva. E das modinhas antigas, como das canções americanas e os boleros em castelhano, que giravam na radiola da sala, ou as músicas que surgiam no rádio da cozinha, novinhas em folha, vindas do Rio de Janeiro. 

Melancólica lembrança das marchas de carnaval, das composições que apareciam a cada ano, a cada período momino, com suas letras burlescas e irreverentes, cheirando à maisena, ao pó de café e ao colorau que sucediam aos confetes e serpentinas, durante o corso, o entrudo líquido, o saudável, animado e amistoso “mela-mela”. 

Enfim, recordações de um tempo em que a humanidade era mais pura e a vida era mais doce. Não. Não se trata de cultuar memória eufórica. Sim. Havia dor e sofrimento também. Mas as mulheres eram mais mulheres, e os homens mais homens. 

As crianças eram tratadas com respeito e rigor, para que reproduzissem ou superassem os seus próprios pais na vida adulta. Havia disciplina, devoção, honra, compromisso. Ah! como diria Guilherme Neto, tendo vivido tantas maravilhas e tanto tempo desfrutado – hoje tenho saudade difusa, principalmente, saudade de mim mesmo.   

Em 31.12.2024  

sábado, 28 de dezembro de 2024

CRÔNICA - Senhor dos Anéis (RV)

 SENHOR DOS ANÉIS
Reginaldo Vasconcelos*

 

Dedos masculinos cheios de anéis rivalizam em cafonice com dentes de ouro e com correntes calibrosas no pescoço. Joias em geral requerem bom gosto, delicadeza, comedimento e discrição. 

Mas fico cheio de dedos ao confessar que, na maturidade, tenho a tendência de incorrer nesse deslize de etiqueta – não por ostentação ou vaidade, mas em razão das memórias afetivas e pelo histórico da minha trajetória com os anéis. 

Esses adereços clássicos me perseguem, e por vezes me abandonam (assim como as mulheres), desde quando meus pais trocaram catitas aliancinhas com os Canella, casal amigo de origem italiana, pequenas joias permutadas à guisa de anéis de compromisso que eles celebraram à revelia entre mim e a Carla, recém-nascidos, seus respectivos primogênitos. 

A minha pequena aliança logo se perdeu na tralha do mundo, mas a Carla tinha a sua até adulta, pendente do cordão de ouro que usava – não sei se mantém e se porta essa pequenina joia ainda hoje, que não nos casamos e há muitos anos não nos vemos. 

Depois o pequeno anel com um minúsculo topázio, recebido de uma madrinha aos oito anos de idade, que, certa vez, em banho de mar na praia mansa entre o Iate Clube e o cais do porto, uma marola me tirou do dedo e em segundos remansou e devolveu sobre o cascalho, após apelo mental que fiz ao oceano, em audiência íntima com Netuno. 

Na adolescência resolvi usar durante algum tempo, por imitação parental, o anel com rubi que meu pai ganhara do pai dele e que usou durante toda a juventude – peça que depois sumiu de casa, causando suspeição sobre domésticos da família.

Anos 70, já rapaz, fui ao Rio de Janeiro e o amigo que me hospedava em Copacabana fora sócio de uma revenda de automóveis, já fechada por ordem da Justiça, depois de ilicitudes constatadas.

Num daqueles típicos bares cariocas de esquina o meu jovem anfitrião marcara encontro com um de seus parceiros nos negócios obscuros de veículos, o qual tinha no dedo um anel em ouro e ônix, adquirido barato de um sequioso viciado em cocaína, o qual me passou a joia pelo preço que comprara. 

Anos à frente um irmão trouxe dos Estados Unidos da América um típico cabochão americano, a safira encrustada nos legalmente limitados dez quilates de ouro, mas com quase cinquenta gramas de peso, que ele me deu, e que por muitos anos usei, até que perdi-o por um descuido imperdoável.

Aliás, só me aliviei do peso dessa culpa ao encontrar casualmente e adquirir um outro anel de mesma “tonelagem”, e de beleza solar. E, ainda mais, coincidentemente assinalado com o símbolo cabalístico que utilizo em um dos meus livros, o filosófico “Eutimia”, para significar graficamente a complexidade ontológica de Deus. 

Mas, antes disso, pelos anos 80, após uma confraternização de natal, um colega do escritório de advocacia me deixou em casa, e no trajeto para a sua, encontrou a morte em uma acidente tenebroso. Chamado às pressas, na madrugada, ao pronto socorro, recebi dos socorristas, entre outros objetos, o ensanguentado anel de grau do meu amigo. 

A viúva preferiu que eu ficasse com ele, e em contrapartida eu me comprometi a passá-lo ao filho deles, que então era criança, quando da sua formatura. Mas este não se formou em Direito, e então eu custeei o seu anal de bacharel em informática. 

Mais recentemente deparei-me, novamente por acaso, com uma raridade anelar, em prata e rubi, que fora enterrada por dois séculos, entre outras joias, em uma botija sertaneja, encontrada secretamente por um fazendeiro, peça vendida a um gerente de agência do Banco do Brasil do interior. 

Constatada a qualidade física dos componentes minerais e a autenticidade artística e histórica do artefato, em que inclusive consta em alto relevo a coroa imperial, um monarquista precisava de mais um dedo para comprometer, em prejuízo da elegância. 

Assim como acontece às mulheres da minha vida, perdi alguns dos anéis que fortuitamente cruzaram o meu destino, acima descritos. Mas, como me ficaram os dedos, conservo e tenho que me fazer acompanhar para sempre dos remanescentes desses preciosos adereços.

CRÔNICA - Crônica de Natal (RV)

 

CRÔNICA DE NATAL
Reginaldo Vasconcelos*

 

Mesas têm quatro pernas, como os quadrúpedes em geral. Mas a longa távola da Tenda Árabe só tem três, as colunatas centrais, seus aprumos líticos, lembrando os seres imaginários de Jorge Luis Borges. 

É naquela mesa que se pratica a “ceia larga” dos amigos e confrades que frequentam a minha casa, célebre peça de mobília comentada no último livro de crônicas do saudoso Ibiapina, que, vindo direto de Brasília, a frequentava.

A cachaça com caju do Barros Alves, o vinho tinto do Paulo Ximenes, a cuba-libre do Adriano Jorge, a caipirinha do Sávio Queiroz Costa, o uísque do Luciano Maia, a abstinência do Rui Martinho Rodrigues – ecletismo de preferências e de ideias.

O recinto foi inspirado na península arábica pelo querido amigo Artur da Távola, região de onde lhe vieram os ancestrais – cujas areias a Sagrada Família palmilhou, como narram as Escrituras, fugindo da sanha assassina de Herodes contra hebreus. 

Mesmo que andasse, a mesa não poderia ter saído da sala para a qual foi concebida e desenhada, descido da Torre Quixadá – depois de aposentado o escritório de exportação do Tio Osíris – e caminhado até o Largo da Poesia, onde se situa a Tenda Árabe.

Não. A mesa veio (e talvez a contragosto, que toda mudança drástica incomoda quem esteja longamente acomodado), trazida pelo braço operário com cuidado extremo, que o raro mármore rosa da Bahia de que é constituída é um tanto delicado – a mais nobre coloração da pedra em Portugal, e a preferida pelos árabes, segundo o nosso confrade especialista na matéria, o geólogo Carlos Rubens. 

Foi o dito Paulo Ximenes que a batizou de mesa “uvular”, em razão do seu formato. E, além do Paulo, em torno dela se sentaram ao longo do tempo ilustres personalidades que já se foram do convívio nosso, a duras penas para nós, que os pranteamos.

Mas ela continua a receber os que glorificamos a boa conversa entre copos e talheres tilintantes, nas noites das terças, ou nas tardes de sábado – certamente conosco em espíritos todos os habitués para quem a “caetana” antecipou-se – no dizer de Ariano Suassuna.

Mas na antevéspera do natal, há alguns anos, a mesa uvular trupicou sobre o piso novo que instaláramos e desmoronou dramaticamente diante de nós em seu terço sinuoso, que se partiu em mil pedaços. 

Pode-se supor que o tenha feito inconformada com a insolência de a termos manuseado para a obra, atentando contra a sua insigne majestade. Ou, por outra, pode ser que, enciumada com a bela cerâmica agora assentada sob ela, tenha tentado suicídio vingativo – aquele que alguns praticam para punir, com a sua perda, quem os ame e eventualmente os incomode. 

Meu Deus! Seria amanhã a grande reunião natalina, e agora se demitia das funções a grande bancada daquele templo dedicado ao exercício do intelecto, ao amor cósmico e ao deleite social – e também ao aconchego geral nas grandes datas. 

Siderado com o contratempo, corri a cidade e seus subúrbios, mergulhado nas indicações do celular, até encontrar um santo homônimo do “pobrezinho de Assis”, que se prontificou a vir resolver em nosso domicílio o tal problema. 

Esse Francisco, restaurador aplicado, empenhou-se conosco e recompôs a peça imensa com tamanha presteza e esmero, entrando pela noite, que assim conquistou a nossa gratidão, levando para a sua casa – além dos merecidos honorários – insumos para a ceia com a família. 

Ufa! A mesa foi salva, a tempo e sem sequelas, e aquele natal foi, como sempre, cheio de luz e encantamento – enquanto Maria de Fátima, em sua nívea porcelana, do seu nicho iluminado, no tronco de cedro que enfeita e abençoa o ambiente, parecia sorrir com ar bondoso ante o alívio que se seguiu ao grande susto natalino.

          

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

NOTA SOCIAL- Sebastião Belmino - Uma Saudade Nacional

 SEBASTIÃO BELMINO
UMA SAUDADE
NACIONAL

No programa de televisão do apresentador Luciano Huck, que foi ao ar na noite de ontem, dia 15 de dezembro, especialmente dedicado a uma retrospectiva sobre as grandes personalidades brasileiras de 2024, durante o delicado necrológio dos que falecerem neste ano resplandeceu a figura do nosso Sebastião Belmino, muito justamente lembrado entre os cearenses que partiram. 


A fama do jornalista (e, principalmente, radialista) Sebastião Belmino, superou as divisas do Estado. Ele que adotava uma personalíssima maneira de se comunicar com o grande público – alegre, bem humorado, espontâneo, cheio de cearensidade – tratando os interlocutores, no ar e fora dele, carinhosamente, de “macho véi”, no jargão característico do dito “Ceará Moleque”.

 

Em solenidade da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, realizada no Palácio da Luz na noite do último dia 04 de dezembro, Belmino, que faleceu em 06 de julho deste ano, foi alvo de homenagem póstuma, como recipiendário, in memoriam, da Comenda Benemérito Ivens Dias Branco – instituída para agraciar radialistas, tendo em vista que o paraninfo do laurel foi um grande amigo da radiofonia cearense. 

Sebastião, que em vida já estava eleito para receber  a homenagem,  foi representado na solenidade pelo seu sobrinho, o Juiz de Direito César Belmino, que recebeu a láurea das mãos do empresário Ivens Dias Branco Júnior. Dr. César se fez acompanhar por irmão, esposa e filho do homenageado.              

sábado, 14 de dezembro de 2024

DISCURSO - Carlos Rubens Alencar

 

CARLOS RUBENS ALENCAR


DISCURSO PROFERIDO NA ACADEMIA CEARENSE DE LITERATURA E JORNALISMO NO DIA 04/DEZEMBRO/2024, POR OCASIÃO DA SOLENIDADE DE SUA POSSE NA INSTITUIÇÃO .


Caros Amigos e Amigas, boa noite! Hoje é um dia muito especial na minha vida. 

Gostaria de iniciar agradecendo primeiramente a Deus, a quem devemos tudo. 

Gostaria também de agradecer aos meus pais, Maria Lorêto e Aluísio Barbosa de Alencar Barros, e aos meus irmãos, aqui representados por Maria Luiza Araújo Alencar. 

A minha esposa Leila aqui presente, que é o núcleo central da minha vida, e com quem tive três filhos, que trouxeram três noras maravilhosas, e que nos presentearam com quatro netos. Agradecer ainda aos meus sogros Cileide e Luiz Aguiar Vale, aos meus cunhados queridos, meu concunhado Fernando Melo, aqui presente, e a todos que compõem a nossa família. 

Ainda muito criança aprendi a declamar na escola Irmã Julieta: 

Me pediram para deixar de lado toda tristeza, para só falar de alegria. 

E mais: me disseram que se fosse breve, eu agradava com certeza. 

Eu que não posso enganar, misturo tudo o que vivo, 

Faço versos com clareza, à rima, o belo e tristeza. 

Não separo dor de amor. Eu sou de uma terra plana 

De um céu fundo e um mar bem largo, preciso de um canto longo para explicar tudo que digo, para nunca faltar comigo e lhe dar tudo que trago”. 

Na minha trajetória até os 17 anos, os livros desempenharam um papel fundamental em minha educação e crescimento pessoal. Lembro-me das noites iluminadas no Clube dos Poetas Cearenses, onde no início dos anos 70, Carneiro Portela e Adriano Espíndola compartilhavam sua genialidade poética.

Alguns dos meus amigos brincavam de leitura, como os queridos Carlos Augusto Viana, Maynand Rodrigues, Joaquim Cartaxo, Roberto Bezerra e Silvio Barreira, além dos futuros jornalistas Rogério Moraes, Luís Pedro Bezerra Neto e tantos outros. 

Mas, A CIÊNCIA ME TOMOU, e virei um servo da Geologia. Escrevi alguns livros e dezenas de artigos, alguns referenciados mundialmente. Enfim, lembrando Ortega & Gasset, “o homem é o homem e a sua circunstância”. Tornei-me empresário, e hoje tenho fome e vontade de empreender, de gerar oportunidades que ajudem a trazer conhecimento e dignidade às pessoas, pois, tal como meu querido e ilustre amigo Francisco Ariosto Holanda, acredito que o ser humano deve ser o centro de tudo. 

Hoje estou assumindo a cadeira acadêmica nº 11 da Academia Cearense de Liteeratura e Jornalismo, cujo patrono, Gustavo Barroso, é um dos maiores cearenses e brasileiros que já existiram. Escreveu 128 livros, foi quatro vezes Presidente da Academia Brasileira de Letras, Presidente do Museu Histórico Nacional durante 33 anos, membro da Academia Portuguesa de História, da Academia das Ciências de Lisboa, da Academia Real de Literatura de Londres, da Sociedade Numismática da Bélgica, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, das Sociedades de Geografia de Lisboa, do Rio de Janeiro e de Lima, no Peru. 

Minhas Amigas e meus Amigos, gostaria de expressar ainda minha profunda gratidão ao grande amigo Jorge Alberto Vieira Studart Gomes, um dos maiores cearenses dos últimos 100 anos. Sua visão e incentivo foram fundamentais para despertar em mim um potencial adormecido.

Amigo BETO STUDART, a minha gratidão eterna. Caro Presidente Reginaldo Vasconcelos e confrades, estou profundamente honrado pela maneira fraternal com que fui acolhido por todos, e com muita humildade dou início a esta jornada, onde certamente irei aprender muito, e me empenharei para colaborar com o trabalho engrandecedor que é desenvolvido pela Academia Cearense de Literatura e Jornalismo. 

Muito obrigado!

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

ARTIGO - Considerações Sobre a (Des)igualdade (RMR)

 CONSIDERAÇÕES
SOBRE A
(DES)IGUALDADE
Rui Martinho Rodrigues*

 

1 – Considerações preliminares 

A igualdade é debatida incansavelmente, relacionada com liberdade, segurança jurídica e democracia. No séc. VI a. C. o Partido Aristocrático, defendendo a igualdade proporcional ao mérito, competia com o Partido Republicano, que defendia a igualdade linear, argumentando que todos temos uma boca e um estômago. O debate continua oportuno e conveniente. Examinemos algumas considerações sobre igualdade. 

2 – O significado e o alcance das palavras 

A polissemia acomete algumas palavras importantes para a análise política. Comecemos pelos seus conceitos. São enormes as repercussões teóricas que as diferenças semânticas atribuídas ao termo igualdade podem causar. Democracia, direitos e justiça são exemplos de significados impactados pelas noções atribuídas a igualdade. A falta de clareza quanto ao que está sendo dito ocasiona graves equívocos. 

 3 – Igualdade e diferença

José D’Assunção Barros (1957 – vivo), na obra Igualdade e diferença, reserva o conceito de igualdade para o que deve ser equiparado por imperativo de justiça. Assim, desigualdade é uma diferença injusta. As assimetrias que não configuram injustiça são apenas diferenças. Alguns têm olhos castanhos e outros têm olhos azuis e isso é mera diferença, longe de ser desigualdade. Registre-se que justo é um conceito indeterminado.

Só as assimetrias decorrentes da natureza são meras diferenças, como o fato de uns serem altos e outros baixos, alguns têm sanidade e outros enfermidades. Alguns estudantes obtêm boas notas e outros não se saem bem nos exames. Alguns são músicos talentosos e outros não distinguem uma nota musical. Seriam tais discrepâncias puramente naturais, explicadas pela biologia? Quanto haveria aí a influência de condições econômicas e sociais? As condições citadas, todavia, não impedem pessoas, nas piores condições, de se tornarem grandes músicos ou grandes matemáticos. Seria injusto a diferença? Surgem então as polêmicas concepções sobre desigualdade. 

4 – As assimetrias patrimoniais 

As liberdades econômicas são uma pedra no caminho da igualdade patrimonial. A concentração de renda deve ser superada pela sua distribuição? Alguns aspectos extrínsecos ao mérito da questão, mas relevantes, devem ser lembrados. Quem fala concentração e distribuição de renda geralmente esquece produtividade, formação poupança de capital (no sentido macroeconômico), e investimento produtivo. Rendas iguais significam igualdade de resultados ou igualdade linear, com o desprezo de outros fatores que não devem ser descartados. 

Os “horrores” da concentração de renda se deram nos séculos em que a mortalidade infantil caiu; o analfabetismo caiu; a esperança de vida cresceu; os anos médios de escolaridade cresceram; e o acesso aos bens e serviços foi ampliado. O distributivismo deve ser analisado à luz dos resultados obtidos no caminho da igualdade entendida como provimento de necessidades. 

5 – O exemplo da Europa 

A Europa é lembrada como o exemplo a ser seguido. A ação do Leviatã como provedor estaria demonstrada, afastando a reserva do possível como obstáculo à satisfação de necessidades e desejos. A produtividade elevada de países Alemanha, Suécia, Reino Unido, França, fruto do emprego em larga escala de tecnologia e da qualificação de recursos humanos são fatores eclipsados pelo distributivismo. O desemprego estrutural de quase toda Europa não é esquecido. A assimetria das trocas internacionais, favorecendo os países desenvolvidos, muito lembrada quando a discussão é outra, é deixada de lado quando o debate é sobre as finanças do Estado provedor nos países desenvolvidos. A medida em que esta vantagem dos países desenvolvidos declina, a dificuldade para financiar o Estado provedor cresce. 

Igualmente os baixos índices de corrupção, que agrava os custos dos serviços públicos, é igualmente esquecida. Registre-se que as economias europeias estão em sérias dificuldades, inclusive com elevados níveis de endividamento, apesar de tecnologicamente avançadas, dos recursos humanos qualificados e das trocas internacionais favoráveis. A manutenção, a longo prazo, do “paraíso terrestre” parece comprometida. 

Os limites do bem-estar patrocinado pela sociedade através do Estado não são apenas financeiros. Princípios como esforço pessoal, autodisciplina e perseverança, necessários a superação das dificuldades, estão em declínio no Ocidente, onde o sonho do paraíso terrestre tornou-se hegemônico. O descarte dos citados princípios ligados às diferenças econômicas guarda relação com o declínio do Ocidente, onde se diz: ganharás o teu pão das mãos do Leviatã. 

Pesquisas mostram vantagens econômicas da desconcentração de renda. Quem usa um grande anzol para pescar, só pega peixe grande. Não significa que o lago só tenha grandes peixes, segundo Rubem Alves (1933 – 2014). Os pressupostos e métodos do pescador só permitem pegar o que espera encontrar. 

A pesquisa social é influenciada pelos pressupostos teóricos hegemônicos e os seus métodos. Os dados de mortalidade infantil, expectativa de vida, escolaridade e acesso aos bens de consumo não se harmonizam com a ideia de que a concentração de renda é economicamente prejudicial aos consumidores, quando lidos em escala secular. Registre-se o exemplo da economia dos EUA, onde o Estado Provedor não é tão grande como na Europa e o desemprego tende a ser menor e as crises são superadas mais rapidamente, apesar das despesas militares serem muito maiores. 

Fuga de capitais e custos da máquina governamental devem ser contabilizados ao lado das considerações anteriores na avaliação das políticas distributivistas. O debate sobre os limites que devem ser respeitados pela concentração de renda e patrimônio, para que a dinâmica da economia não seja prejudicada, não podem ser estimados sem a análise da ampla constelação de fatores. 

5 – Igualdade, direito declaratório e assecuratório 

Igualdade é um direito. Pode ser declaratório, protegendo a ação de realizar e desfrutar das realizações, quando proteger o titular do direito contra a ação de quem queira impedir o seu exercício. Neste caso não é oneroso para a sociedade que sustenta o Estado. Encarado como direito assecuratório, que é garantia de realização da igualdade, implica em obrigação de fazer, que é modalidade onerosa, a exemplo da igualdade de oportunidades, que tem custo. Então o problema passa a ser definir a fonte provedora e o limite de gastos, já que os meios são finitos. Assim chegamos ao problema da reserva do possível. Isto é: não há obrigação de realizar o impossível. É um problema sem fim definir a fronteira entre o possível e o impossível, tanto quanto definir prioridades em meio a um mar de aspirações.


POESIA - Sonetos Decassilábicos Portugueses - Gratíssimos (VM)

 GRATÍSSIMOS!
Vianney Mesquita*


[À Extraordinária Família Dias Branco]

 

A sociedade não é, senão, o desenvolvimento da família. Se desta sai o homem corrompido, pervertido entrará ele na cidade. [Jean Baptiste Henri de Lacordaire - religioso, político e jornalista francês. Recey-sur-Ource,12.05.1802; Sorèze, 21.11.1861]. 


I
Coincidentemente ao Advento,
Momento de acolher o Redentor
O Salvador, divino Sacramento
Escarmento ao acre, ao amargor ...
 
Sob imane fulgor, múltiplo alento,
Tomou-se tento em receber o honor
Com estreme amor, polidez e talento,
Desde um rebento de nímio vigor.
 
Eis que enobreceram a Academia
Os votos de Natal de Ivens Filho
Herdeiro da vetusta padaria.
 
Por tal razão se entoa o estribilho
Da natalina peça em divo brilho
Dos Dias Brancos em airosa via.
 
II
 
A Sociedade e a família semelham ao arco de um palácio: se tirares uma pedra apenas, tudo desabará. [Talmude Babilônico]
 
Desde que a Arcádia se estabeleceu,
Diletos Dias Brancos são parceiros
Árcades beneméritos, os primeiros
Compartes atuantes do Ateneu.
 
Por um mais que afetivo querer seu,
Avessos a motes interesseiros,
Conformam-se partícipes, lindeiros,
De quem vai conduzir o caduceu.
 
De efeito, o Silogeu cearense
De Literatura e de Jornalismo
Ínclito segue com sobranceria.
 
E anos-luz distante de non sense,
Desonerado do solipsismo,
Viceja fasto nesta companhia.