As palavras, e principalmente as expressões idiomáticas, nascem, vivem e envelhecem. Algumas vezes morrem, mas algumas delas duram muito, geralmente mudando de cara, de pronúncia, de sentido.
Ninguém sabe hoje, por exemplo, por que se diz “lavar a burra”, expressão de uso ancestral que ainda vigora e que corresponde a “se dar bem”, no moderno falar da juventude.
Pode ser referência ao baú em que os antigos guardavam o dinheiro, uma antiga versão do cofre, que se chamava “burra”; o verbo “lavar” pode estar aplicado no sentido de seu transbordamento.
Alguém defende ainda a tese mais fraca de que os novos ricos do passado, para ostentar a riqueza, lavavam suas alimárias com cerveja, ou seus cavalos de corrida com champanha.
Assim, lavar a burra, inicialmente, referiria especificamente à fortuna financeira. Mas essa é ainda uma interpretação muito forçada.
Mais plausível pode ser uma alusão velada à zoofilia dos rapazes do passado, que, quando incumbidos de lavar as montarias fêmeas, tinham o “privilégio” de fazer uso erótico delas.
A zoofilia é algo muito tosco para os atuais civilizados, porém, mormente a equina, é prática corriqueira em milênios de evolução da humanidade – ainda em voga pelos cafundós deste Planeta.
Mas há exemplos recentes em que os termos perdem o sentido original quase que imediatamente, em virtude da vertiginosa evolução tecnológica. Há vinte anos se criou a expressão “queimar o filme”, com o sentido de estragar a imagem social de alguém. Fazia referencia ao “filme”, fotográfico ou cinegráfico, que o excesso de luz podia “queimar”.
As novas gerações não convivem mais com filmes para fotografar, nem para produzir vídeos, tudo hoje convergindo para os métodos eletrônicos. Aliás, os modernos aparatos digitais que fotografam e gravam vídeos, não são “câmaras”. Câmaras eram apenas as antigas máquinas, dotadas de uma caixa escura onde os filmes eram expostos às imagens selecionadas e admitidas pelo obturador da lente.
Os mais jovens também não sabem por que “cair a ficha” significa compreender uma mensagem ou um fato, completando, finalmente, as necessárias sinapses cerebrais.
Isso remonta ao tempo recente em que os telefones públicos funcionavam com fichas metálicas, que tilintavam dentro do aparelho quando as ligações se completavam.
Há uma famosa entrevista concedida pela cantora Elis Regina, gravada em vídeo, ainda em preto e branco, em que ela diz que ao chegar ao Rio de Janeiro “transava” com muitas pessoas do meio musical.
Quando essa gíria nasceu significava apenas relacionar-se socialmente, conviver, ter amizade. E foi nesse sentido que Elis Regina a empregou. Somente depois o termo “transar” substituiu a expressão eufêmica “fazer amor”, que apagaria a memória de seu primeiro uso. A expressão “fazer amor”, por seu turno, para designar o ato sexual, fora extraída do jargão hippie.
É inelutável que as línguas evoluam, ganhem acréscimos vocabulares, façam expurgos, alterem o sentido semântico das palavras. Mas é mister dos homens de letras fazer o link histórico entre o falar das gerações, para que as pessoas saibam exatamente o que dizem, e por que dizem, pois isso lhes enriquece a capacidade de dizer, e até de criar novos dizeres. Conhecer o passado é a melhor forma de contribuir para o futuro.
Seria ótimo que soubéssemos hoje com absoluta certeza a exata origem da expressão “lavar a burra”, acima especulada. Para isso seria necessário que alguém entre os antigos a tivesse notado e anotado, antes que sua geração passasse adiante o “bastão” vocabular, levando para o túmulo a sua peculiar explicação.
Por outro lado, se não se fizer o registro da evolução do termo transar, a memória de Elis Regina ficará distorcida para sempre naquele vídeo, pois sua gíria antiga pode fazer entender que ela praticava sexo com muita gente para galgar posição no mundo artístico.
Mas não só no que se refira a uso antigo, os usos atuais também devem ser analisados, para que a comunicação tenha um norte de clareza e coerência.
Por exemplo, quando se diz que uma coisa é “paia”, para lhe desqualificar, se está referindo à maconha de má qualidade, contendo “palha” na sua composição. Da mesma forma, quando alguém aplica o termo “viagem”, para falar de uma convicção equivocada, está referindo às alucinações produzidas pelo ácido lisérgico, droga conhecida como LSD.
Nos dois casos, sem o saber, o inocente falante estará recorrendo à gíria dos usuários de drogas ilícitas. Se for um abstêmio absoluto, um legalista ferrenho, um educador, enfim, um enérgico ativista contra as drogas, estará traindo seu caráter, ou a sua bandeira ideológica, ingressando por ignorância no universo verbal dos marginais.
Um último exemplo de mau emprego verbal: hoje em dia se tem visto, com grande frequência, notórios pacifistas referirem a alguém muito esforçado, que resistiu bem aos embates da vida, que superou dificuldades e progrediu, como um grande “guerreiro”.
Ora, nada mais impróprio do que evocar a guerra para significar o denodo e o progresso de um pacato cidadão. Guerra pressupõe ferocidade, agressão, morte, violência. E certamente não é essa imagem grotesca e sangrenta, inerente ao termo empregado, que se quer produzir... mas é exatamente ela que se termina produzindo.
Reginaldo Vasconcelos