domingo, 31 de outubro de 2021

CRÔNICA - A Poça d'Água (PX)

 A Poça D’água
Paulo Ximenes*

 

 

É só cair uma chuvinha mais demorada para isso mudar a feição da minha cidade. As águas tomam conta de tudo, das pessoas, das calçadas, do trânsito, dos bichos. O caos se estabelece na via pública. Os compromissos se retardam e os negócios se atrapalham. Que novidade! Vêm de longe a arruaça que as chuvas fazem nas capitais do país. Árvores tombam. Carros morrem em riachos. Semáforos entram em paranoia. 

 

Vendo a chuva que agora acontece, vem-me à lembrança alguns fatos transcorridos no centro da cidade, relativamente recentes. Num deles, um grupo de belas estudantes da Escola Justiniano de Serpa, pelas imediações do Palácio Progresso, esgoelavam gritos de terror e davam-se as mãos a cada papoco de trovão; cessado o tiroteio elas se desgarravam e saíam de chouto, cada uma para o seu lado, saltitando sobre as pequenas lagoas que se formavam nas calçadas, até que um novo estrondo as unissem novamente. Pareciam não entender que o perigo morava nos raios, não nos trovões. De qualquer sorte, no corre-corre, no segurar das barras das saias, formidáveis troncos de coxas eram expostos às vistas de todos. 

 

Outro se deu num dos cruzamentos da avenida Heráclito Graça, sob semelhantes condições meteorológicas, em que eu me vi amontoado a uma dúzia de transeuntes, todos com os olhares grudados no semáforo. À minha esquerda, no asfalto, quase à beira da calçada, uma poça d’água me espreitava. Provavelmente a depressão no terreno importasse um metro e meio de diâmetro por um palmo de profundidade, nada de excepcional que propiciasse um apocalipse, mas o suficiente para um estardalhaço d’água voando em todas as direções, caso um pneu daqueles cortasse ao meio. E eles passavam numa velocidade de quarenta a cinquenta quilômetros por hora “tirando um fino” em suas bordas.



 

 

Ser precavido não é pensar no pior. Ser precavido é ser precavido. Então, estando eu defronte àquela poça, recuei uns três passos, sem tirar os olhos dos bólidos borrachudos que cada vez mais se aproximavam de um desmantelo. Mas a outra vítima em potencial, parecia não dar conta do perigo. Era o sujeito mais bem trajado do grupo, esbelto, todo no linho branco, ruivo, cabelos encarapinhados, óculos à pincinê e barba pontiaguda no queixo, lembrando o Visconde de Sabugosa do Monteiro Lobato. Portava uma pilha de papéis e se absorvia na leitura de algum manuscrito. A camisa de mangas compridas com abotoaduras douradas não escondia o relógio de aspecto caro, e chamava a atenção o cinto de couro combinando com a leve tonalidade marrom dos sapatos de bico fino.  

 

Qualquer cidadão com mediana capacidade cognitiva deduziria que se tratava ali de um grã-fino, cujo carrão dera pane no aguaceiro. O que Importa é que o “visconde” se detinha a menos de dois metros do epicentro, a um passo de tomar um banho fétido, porque as primeiras águas do ano são sempre sujas, as ruas estão sempre embrenhadas de poeira, de carcaça e fezes de pequenos animais.  

 

Uma camioneta pesada passou raspando. Desta vez foi por um triz. Não me contive. Bati sutilmente no ombro do cidadão, apontei para o chão e lhe disse na maneira mais educada que eu pude: “O senhor corre o risco de se molhar, caso algum carro desses trisque nesta poça d’água”. Não sei se dessa forma eu o chamei de pouco inteligente. Não tive essa intenção. Juro que não! O que conta é que sua resposta foi maligna: fitou-me por uns três ou quatro segundos, como quem contemplasse um tonto. E sem arredar um milímetro de onde estava, virou-se para o outro lado, num desdém que não era desse mundo. O fato de ele não ter saído do canto, foi de uma gravidade atroz; fez todo mundo perceber aquela clássica aplicação de desprezo, executada ao vivo e à cores. Foi como se houvesse me dito para todo mundo ouvir: vá cuidar da sua vida, moço!  Da minha cuido eu... 

 

Doeu. Que sujeito abusado! Fiquei sem ter para onde olhar, procurando bolsos para esconder as mãos. Não sei por que cargas d’água ainda me meto a ajudar a quem não conheço! Sucedeu que um ar corroído se despencou à minha volta. Não há quem possa contradizer a verdade de que essas coisas espetam os brios das pessoas mais pacatas. Via de regra, atiçam nelas o impulso da vingança. Sentimento mesquinho, admito! Mesmo assim não conseguiram me segurar as âncoras do espírito elevado, e, num vil segundo de distração, escapuliu-me o atroz agouro: “tomara que um pneu desses acerte bem no meio do buraco, só pra dá um banho bem grande nesse deslumbrado!”. Mal eu sequei o pensamento, deu-se o fato por consumado:  

 

Vapt!!!  

 

Um fusca conduzido por um elemento idoso (devia ir pelos oitenta anos), cumpriu os meus votos com magistral pujança. Não teve a destreza para fazer o desvio necessário e espalhou o “precioso líquido” para tudo quanto foi lado. O visconde, por conta da sua indolência, levou um banho da cabeça aos pés. Jatos d’água não têm juízo, não poupam ninguém. Ali estava o resultado: papéis molhados, óculos arremessados ao chão, e de quebra, a calça de linho branca encharcada, agora semitransparente, denunciava a extravagante combinação de cores: era no tom de cenoura a peça mais íntima do seu vestuário. Cena burlesca. Ali estava um palhaço ante o picadeiro. A plateia do outro lado irrompeu em ruidosa gargalhada. Houve até quem providenciasse uma bela vaia, que o cearense, ainda mais molhado, adora fazer dessas coisas. Espalhafato igual eu ainda nunca tinha visto. 

 

O sinal esverdeou. Seguimos em frente, uma penca de marmotosos, reféns da chuva e do trânsito. No próximo sinal fechado, o barba-de-bode deixando de lado a sua leitura paralela, manteve exagerada distância para uma poça d’água que de tão pequena já não metia medo a ninguém. É a velha teoria do gato escaldado. Também caberia ali outro adágio: seria cômico se não fosse penoso! O incidente cresceu em importância porque a ingrata criatura fora advertida a tempo. Os que presenciaram o episódio, entre olhares esquivos, fingiam ter percebido coisa nenhuma. E ainda se esforçavam para não cair no riso compulsivo. E eu, a vítima legítima do achaque, entrevia, naquela simulação de sentidos, um aceno de solidariedade coletiva pelo belo constrangimento a que fui submetido. Segue a vida. Cada qual com seu pensamento, suas dores, perdas e danos.  

 

Felizmente, escrevo. A narração deste episódio – prato frio que deve ser comido pelas beiradas – não seria uma vindita de fato se não houvesse um livro pronto para acolhê-la. Afinal, tenho todo o direito a me estrebuchar, porque, embora haja controvérsias, um homem é apenas a consequência das suas circunstâncias. Talvez por isso, naquele instante choco, barganhavam estranhas percepções entre si, o contentamento e a raiva, a vitória e a derrota. No meu rosto vingado sopravam os ventos do Olimpo; talvez fosse mister ao elegante “visconde” sentir-se apenas um varapau molhado e acabrunhado, louco para sumir de cena.  

 

Era um dia fechado. Das bandas de Caucaia ouviu-se mais um trovão. Um corisco riscou em algum lugar. Tempo abafado. Tempestuoso. Nenhum raio de sol ameaçava escapulir das nuvens de chumbo. Sob a penumbra celeste os carros continuavam zoando um atrás do outro, e os faróis acesos refletiam-se e multiplicavam-se nos pisos molhados, parecendo procurar por novas poças d’água para atazanar a vida de outros lesados.  

 

Mais um sinal fechado. Tenho o privilégio da boa visão periférica, destreza mais comum entre as mulheres, de sorte que consigo prestar atenção ao que se passa ao meu redor, mantendo um foco visual noutra direção, tudo com eficiência e riqueza de detalhes, sem que ninguém me perceba. De esguelha, ele ainda arriscou um vago olhar na minha direção, mas evitei que nossas vistas se encontrassem. Permaneci absorto em meu “olhar distante” enquanto ele devia ir ouvindo do meu franco silêncio:

 

“Eu não lhe avisei?”.


 

ARTIGO - Desigualdade e Diferença (PN)

 DESIGUALDADE
E
DIFERENÇA
Pierre Nadie*

 

Diferente não é desigual. A Wikipedia traz uma definição de diferença: 

“A diferença é um conceito-chave da filosofia, denotando o processo ou conjunto de propriedades pelo qual uma entidade SE DISTINGUE (o destaque é meu) de outra dentro de um campo relacional ou de um determinado sistema conceitual”. 

Algo é “diferente” quando sua essência se difere da essência do outro – seja no todo ou em algum aspecto particular. 

A “desigualdade”, no entanto, não se refere a essências distintas, mas, sim, a uma circunstância que privilegia algo ou alguém em relação ao outro – independentemente de os dois serem iguais ou diferentes. 

A diferença é própria da natureza. Pode ligar-se também a civilizações e  culturas.  Não se trata de inferioridade, de marginalização, ou de semelhantes. A desigualdade, porém, é própria da “(des)humanidade”.

A desigualdade independe das diferenças e das igualdades. Impinge-se sua raiz à conjuntura social  e, muitas vezes, assume o papel de injustiça, preconceito e coisa que o valha. 

As plantas, sejam frutíferas ou não, têm as suas diferenças naturais; os animais vivem nas suas diferenças genéticas, sem fazerem jus a desigualdades.


O ser humano, na sua igualdade, tem diferenças particulares, como a altura, a cor, o sexo, o peso, a força, ou seja, a sua fenotipia. Essas diferenças não implicam em desigualdades, senão caracterizam  a singularidade, na universalidade ontológica do ser humano. 

Fazer das diferenças desigualdades é, portanto, injustiça humana e não corresponde à realidade, não traz proveito à convivência social, mas labora em ideologias secessionistas e aprofunda o fosso das desigualdades. Torná-la objeto de preconceitos, de marginalidade e de menosprezo é injúria, não só à raça humana, mas uma afronta à dignidade pessoal. 

Daí, a necessidade de lutar pela desigualdade das desigualdades e jamais  usar as diferenças para protagonismo de lutas fratricidas e  ou proselitismo político. Não somos “guetos”, somos família humana, com nossas diferenças. 

Diferenças exigem respeito. Desigualdades cobram coragem e destemor.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

RESENHA - Reunião Virtual da ACLJ (25.10.2021)

REUNIÃO VIRTUAL DA ACLJ
   (25.10.2021)




PARTICIPANTES

Estiveram reunidos na conferência virtual desta segunda-feira, que teve duração de uma hora e meia, dez acadêmicos. O Jornalista e Advogado Reginaldo Vasconcelos, o Bacharel em Direito e Especialista em Comércio Exterior Stênio Pimentel (Maricá - RJ)

Também  o Engenheiro Agrônomo e Poeta Paulo Ximenes, o Físico e Professor Wagner Coelho (Rio de Janeiro-RJ), o Agente de Exportação Dennis Vasconcelos (Maringá-PR), o professor e advogado Aluísio Gurgel do Amaral Júnior.

Presentes ainda o Marchand e publicitário Sávio Queiroz Costa, o Agrônomo, Professor e Pesquisador Luiz Rego (Rio das Ostras - RJ), o Advogado e Sionista Adriano Vasconcelos, e o Advogado Betoven Rodrigues de Oliveira.  



TEMA DE ABERTURA

Na abertura da reunião desta segunda-feira Aluísio Gurgel lembrou o fato de que naquela data transcorria o natalício do Magnífico Reitor da Universidade Federal do Ceará, Cândido Albuquerque, Membro Efetivo Fundador da ACLJ.

Apesar de todas as dificuldades arrostadas no momento pelo Brasil e pelo mundo, ao longo da pandemia de Covid-19 e em face das dificuldades que ela causou às finanças públicas, Dr. Cândido tem tido um grande desempenho à frente da UFC. 

Nenhuma surpresa, para quem conhece a sua brilhante carreira na advocacia e no magistério superior, bem como o seu ótimo desempenho quando na Presidência da OAB, Secção Ceará, e na composição do Conselho Nacional da Ordem.   

 
OUTROS TEMAS ABORDADOS

Na sequência, o grupo entrou a trefegar pela rodovia dos temas administrativos da ACLJ, discutindo detalhes sobre a Assembleia Geral de dezembro vindouro, ainda envolta em dúvidas sobre como e onde realizá-la, de acordo com os protocolos sanitários que a pandemia recomenda.

A seguir discutiu-se longamente o que se tem dito nas fontes confiáveis sobre a eficácia das vacinas, e sobre a ameaça de terceira onda da doença, tema sobre o qual o Prof. Wagner, que é versado em físico-química, deu opinião proficiente.

Tratou-se sobre lugares do Planeta em que os índices de contaminação e de mortes ainda estão elevados, coincidindo com populações ainda resistentes à vacinação, como no caso da Rússia, de onde o nosso Membro Honorário Dmytri Sidorenco nos confirma essa realidade. Por lá prevalece o temor popular de que as vacinas causem mortes, mito contra o qual o Governo Putin se debate.  

Em seguida, Luiz Rego referiu ao projeto cultural de que participa em Rio das Ostras, cidade do Estado do Rio de Janeiro em que se radicou. O trabalho consiste em fazer o resgate da memória literária da região  – e como exemplo dessa iniciativa ele apresentou a obra  "Bastidores da Cultura", da Profa. Selma Rocha.  


 

PERFORMANCES LITERÁRIAS

A primeira performance literária foi feita pelo Aluísio Gurgel, com a longa leitura de uma crônica do Paulo Ximenes, intitulada "A Poça D'água", em que o autor narra fato burlesco  que arrancou risadas e aplausos da "plateia". 

Depois o grupo trouxe à baila a pessoa do saudoso confrade Roberto Martins Rodrigues, advogado constitucionalista de notável saber jurídico,  falecido em meados 2019, aos seus 90 anos. 

Então Reginaldo resolveu performar com a  leitura de um artigo que publicou no dia da morte do grande Robertinho, texto poético cheio de carinho e de saudade antecipada. 

  


ROBERTO MARTINS RODRIGUES

DESCANSOU

Reginaldo Vasconcelos*

 

Não que ele quisesse descansar. Era incansável. Aos novent’anos ainda era um menino. O andador lhe prestava reverência; a bengala era uma concessão que ele fazia à Natureza.   

 

Mas o Pai Celeste Absoluto insistiu com ele que era preciso descansar. Ele resistia. Passou um mês argumentando que ainda havia namoradas em flor para regar com o seu carinho galante, com a sua britânica elegância juvenil.

 

Seu sobrinho e homônimo intermediava a negociação. Ainda havia uns uisquinhos a tomar, na ceia larga da Tenda Árabe, contando seu passado idílico vivido sem grandes sobressaltos, geralmente elogiando e, se muito, narrando sem mágoa nenhuma e perdoando.

 

Principalmente – com certeza dizia ele ao Pai Celeste – tinha gravações a fazer nas sextas-feiras; não podia deixar na mão o nosso confrade Arnaldo Santos, em cuja mesa de debates na TV tinha cadeira cativa. Ainda não era hora de sair de cena – ele obtemperava.

 

Na arquibancada do afeto nós esperávamos ansiosos,  acompanhando a sua luta para convencer o Arquiteto do Universo a deixá-lo conosco um bocadinho mais, mais um pouco de manhãs e entardeceres, algumas noites a mais nos brindando com a sua honrosa amizade e companhia.

 

Mas não deu. Finalmente ele teve que despedir o amigo motorista, com o qual ganhava pernas pelas ruas da cidade, para, ainda que de mau grado, embarcar na vistosa carruagem do Divino e seguir para o destino universal.

 

Da Beira-Mar, quem estivesse atento agora há pouco veria a sege divina seguindo direto para o céu dos justos, tirada a dois cavalos brancos, símbolos da paz e da virtude, com o nosso Robertinho sentado ao lado direito de Deus Pai, vergando a pelerine ritual da nossa Academia, para nos representar no Paraíso. 


Em 29 de junho de 2019 - às 20 h.


  

DEDICATÓRIA 


A reunião virtual da ACLJ realizada nesta segunda-feira, 25 de outubro, Dia do Dentista, foi dedicada ao Prof. Doutor Jório da Escóssia Júnior, que fez da odontologia a missão maior da própria vida – tanto na prática clínica e cirúrgica como no ensino da matéria no magistério superior.


Aliás, Dr. Jório segue a rota gloriosa de seu pai e homônimo, o Dr. Jório Almir da Escóssia (1933-2018), fundador do primeiro hospital de Fortaleza com foco nas mais avançadas técnicas da ciência odontológica.


Dr. Jório, para nossa honra e júbilo, é Membro Consorte da ACLJ, marido da Dra. Graça Dias Branco da Escócia, que por seu turno é nossa Benemérita, sucessora de seu saudoso pai, o empresário Ivens Dias Branco.



       

sábado, 23 de outubro de 2021

POESIA - Joias Líricas (RV)

 JOIAS LÍRICAS
Reginaldo Vasconcelos*

 

A poesia telúrica de Luciano Maia pervaga o ambiente sertanejo lindamente, transpira o clima nordestino, trescala o hálito dos currais de gado vacum nas ordenhas matinais.

Evoca o canto dos galos madrugadores, o suspirado ordejo asinino marcando o meio dia, o gradiente dos aboios vespertinos verberando desde longe até a esplanada, entre maviosos toques de chocalhos, de surtidos diapasões e timbres nobres. 

Abaixo, dois poemas seus que trazem em comum referências ao pastoreio dos ovinos – o primeiro deles, “Soneto da Marrã Extraviada”,  recebido dos duendes da sua verve lírica nos idos de 84 do século anterior, exatamente quando eu o conheci. 

O segundo, “As Nuvens, o Tempo, o Rebanho...”, de recentíssima inspiração – nós então já amigos velhos.  Ambos os versos nutridos pela mesma substância poética dimanada das evolações jaguaribanas, das solidões das matas rudes, do clima sáfaro, da vida lúdica dos caboclos e de seus bichos de cria.



ARTIGO - O Labirinto (RMR)

 O LABIRINTO
Rui Martinho Rodrigues*

 

Labirintos têm muitos caminhos. São escolhas. Já se disse que todas as sendas são resolutivas. Historicamente tudo se resolve. Mas algumas rotas são mais árduas ou levam a desenlaces trágicos. A política é uma floresta cheia de placas indicando destinos. Cada uma se apresenta como o fio de Ariadne. Representação e participação política; garantias individuais e direitos sociais; liberdades negativas ou de agir e positivas ou de ser; direitos e patrocínios; justiça e segurança jurídica; responsabilidade fiscal e voluntarismo; instituições e populismo; (des)informação e catequese são algumas das rotas do “novelo” político. 

Escolher entre as indicações exacerba os ânimos. Pensadores, líderes e ativistas, por convicção ou por oportunismo, defendem ardorosamente alguns dos destinos indicados. Nem sempre sabem o que significam. As crises exigem escolhas. É o desafio do nó górdio. 

A nossa representação política deve ser aperfeiçoada, mas quem legisla tem interesse na manutenção do quadro atual. A participação ou democracia direta não obteve sucesso em parte alguma. As garantias individuais são a parte mais preciosa da democracia e estão ameaçadas pelo fortalecimento da criminalidade pesada, o terrorismo, o afã punitivista de justiça, (ou justiçamento?) e pela cavilosa defesa da democracia. Os chamados direitos sociais são uma fórmula para flexibilizar as preciosas garantias individuais em nome da justiça social.

Liberdades negativas são aquelas que dizem não a quem pretende avançar sobre os direitos de outrem. Liberdade positiva, nome bonito para legitimar o sacrifício de uns pelos outros, embora não tenha uma história de êxitos que possa invocar para legitimar-se. A respeito disso Milton Friedman (1912 – 2006) adverte: quem troca a liberdade (de agir) pelo bem-estar (liberdade positiva) acaba perdendo as duas coisas. A liberdade de escolhas, nos termos das condições transcendentais do agir moral (Immanuel Kant, 1724 – 1804) é poder optar livre e conscientemente; dentro das normas estabelecidas; reconhecida como própria dos sujeitos capazes. 

O patrocínio não é liberdade de agir. A liberdade de ser é ilusória. O ser é realidade fática. Agir como se fosse o que não é não passa de aparência. Ser é matéria fática, não escolha. Mas a reserva do possível tem sido esquecida. Desinformação, catequese e doutrinação, nas escolas e meios de comunicação despertaram a resistência da maioria silenciosa. Esta parcela do eleitorado talvez já não seja maioria, mas continua com direito ao exercício da cidadania. 

Direitos humanos são direitos potestativos. Não são títulos de créditos contra terceiros, não têm exigibilidade, salvo quanto ao não impedimento do seu exercício. Justiça é conceito indeterminado. O entendimento do que seja tal coisa abre espaço ao exercício da subjetividade, arbitrariedade de autoridades e demagogia no campo da política. Faculta interpretações criativas do Direito que fragilizam a segurança jurídica. 

Responsabilidade fiscal é um realismo difícil de defender em palanque eleitoral, sala de aula e nos meios de comunicação. Mas é necessária. O voluntarismo que apresenta a vontade política como solução rende aplausos, amealha votos e causa desgraça. Triunfa na fase decadente das democracias, que é a demagogia (Aristóteles, 384 a. C. – 322 a.C.). Populismo é o caminho que resta quando Parlamento, sistema eleitoral, Judiciário estão desacreditados e veículos de comunicação desmoralizados. O labirinto político só tem um caminho que o homem médio pode entender: a defesa das garantias individuais.

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

RESENHA - Reunião Virtual da ACLJ (18.10.2021)

 REUNIÃO VIRTUAL DA ACLJ
   (18.10.2021)




PARTICIPANTES

Estiveram reunidos na conferência virtual desta segunda-feira, que teve duração de uma hora e meia, onze acadêmicos. O Jornalista e Advogado Reginaldo Vasconcelos, o Bacharel em Direito e Especialista em Comércio Exterior Stênio Pimentel (Maricá - RJ)

Também  o Engenheiro Agrônomo e Poeta Paulo Ximenes, o Médico, Teólogo e Latinista Pedro Bezerra de Araújo,  o Físico e Professor Wagner Coelho, o Agente de Exportação Dennis Vasconcelos (Maringá-PR).

Presentes ainda o Marchand Sávio Queiroz Costa, o Agrônomo, Professor e Pesquisador Luiz Rego (Rio das Ostras - RJ), o Advogado e Sionista Adriano Vasconcelos, o Jornalista Wilson Ibiapina (Brasília) e o Advogado Betoven Rodrigues de Oliveira.  
 


TEMA DE ABERTURA

Na abertura da reunião desta segunda-feira, abordou-se o tema da esperteza humana, a partir de um texto apresentado pelo Betoven sobre alguém que apanha uma cédula de cinquenta reais que outro deixara cair, e se recusa a devolver. 

Ora, no caso específico, o fenômeno da "invenção", na exótica terminologia jurídica para significar a eventualidade de alguém encontrar e se apropriar de algo que outrem perdeu – somente se legitima quando o dono original não é identificado. 

Mas o mundo está repleto de espertos, que não se pejam de se locupletar do alheio, bastando que o proprietário da coisa se distraia.

Em seguida, por sugestão de Stenio Pimentel, Reginaldo leu o texto poético "Oração da Maçaneta", do poeta, advogado e jornalista Gioia Júnior (1931-1996), que emociona os pais de filhos jovens, por tratar das angústias paternas vividas quando seus rapazes e moças se demoram a voltar para casa, nas suas noites boêmias. 

 OUTROS TEMAS ABORDADOS

Na sequência, fizeram-se louvores ao Dr. Pedro Bezerra de Araújo, o único médico presente no grupo  – acima destacado no mosaico iconográfico  – pelo transcurso do dia do ano consagrado à sua valorosa categoria profissional, que transcorria nesta data. 


PERFORMANCES LITERÁRIAS

A primeira performance literária foi feita pelo Dennis, lendo uma crônica sua, intitulada "Holanda", sobre o país estrangeiro  em que ele moraria, se para lá pudesse levar consigo os seus afetos.


Holanda

Seis e meia da manhã. Muito frio lá fora. Assim mesmo, pássaros cantam seus pios holandeses para esquentar seus corpos e despertar os hóspedes. Aqui dentro, no quarto, corpo quente da calefação, mente fria da saudade de casa. Corpo quente do trabalho que aqui já conclui, cabeça fria tive para poder enfrentá-lo. Povo bom, gente alegre. De tudo fazem para me agradar. Por fora simulo alegria, e até os faço rir. 

Por dentro tristeza, saudade e vontade de logo partir. A noite não passa. Parece eterna. Vejo fantasmas, leio, rezo, cochilo e acordo… Até que ouço os pios holandeses me convidando a levantar, sair e viver. Ver as belezas deste lugar, deste clima e deste povo que aprendi a amar. Viver mais um dia neste país de beleza sutil e gente sempre feliz. País dos meus ganhos e amigos, verdadeiros e fiéis. Imito-os e sou amado. 

Não fora a dor da distância dos meus, com certeza borbulharia a vontade de aqui viver. 

Dennis Vasconcelos

Dögen – Holanda – 01/3/2012


Adriano, a seguir, disse um poema do poeta Silvanildo Tavares Silvino, cujo tema é a letra grega Pi, que representa o perímetro e o diâmetro de um círculo, uma proporção numérica infinita, por isso classificado como "número irracional".



 
 


Por fim, Pedro Araújo fez a leitura de um texto de sua lavra, "A Magia da Liberdade", reflexão contida no seu livro "Traços Triunfastes", de 1986.

A magia da liberdade

A riqueza de alegrias recheia a vida a criancinha, vibrante, na sua simplicidade, pelas mensagens das fadas habitantes de paragens encantadas. Fica triste pela maldade das bruxas e de quem abusa da fraqueza de alguém. A realidade da criança é plena de maravilhas talvez em parte pela maneira surpreendente de apreender a ciência da existência. Assim, ela fascina e encanta em sua beleza e naturalidade e penetra também a magia que é fantasia, que é alegria pura e sem jaça, que é Branca de Neve, existente na lucides da pequenez de sua mente. 

A esse deslumbre pueril, etapa que a maturidade admira e aplaude, junta-se u’a magia mais fecunda, destituída de caracteres alienantes, a magia da liberdade, que flutua e adeja nas asas excelsas das quimeras. À maneira de talismã, leva a capacidade de criar e imaginar seres e cenas ‘reais’ na indescritibilidade da mente infantil.  

Dignidade de gente, que pensa e que faz germinar a semente de ideias magníficas, deriva, substancialmente, da excelsa liberdade humana. Nalguns países, integra a candura das miragens de reis e madrinhas fascinantes. 

A liberdade existe; pensar, imaginar, ir além. E sua raiz se alicerça na inteligência que se miscigena de peculiaridades metafísicas da existência da espécie. Nenhum sistema detém sua energia. Nem aniquila sua faculdade de agir e manifestar-se. A habilidade da vida se assenta, direta e estruturalmente, na livre atividade que se expande nas atitudes imersas nas águas da naturalidade. 

Expressar-se, participar de debates e ajudar na assistência às necessidades de base, criticar e analisar medidas, sugerir hierarquia de dificuldades a ser encaradas, ir e vir, delineiam a verdadeira liberdade que faz caminhar a humanidade na senda da mútua fraternidade, que pereniza paz, bem-estar e dignidade. 

A liberdade liberta a felicidade, que suas crendices prendem. 

Pedro Bezerra de Araújo - livro 'Traços flutuantes', 1986, em processo de reedição

  

DEDICATÓRIA 


A reunião virtual da ACLJ realizada nesta segunda-feira, 18 de outubro, Dia do Médico, foi dedicada à memória da jovem médica Camilla Queiroz, tragicamente vitimada em tenebroso acidente fatal rodoviário, na manhã do dia 27 de setembro, quando se dirigia à cidade cearense de Madalena, onde era diretora do Hospital Municipal.  



  
    

ARTIGO - O Tecido Social (RMR)

 O TECIDO SOCIAL
Rui Martinho Rodrigues*

 

Compreender o homem ocupa largo espaço da reflexão humanística. Alex Carrel (1873 – 1944), militava nas ciências biológicas. Enveredou pela Filosofia. Na obra “O homem esse desconhecido”, concluiu que o homem é indefinível. Acrescentemos: defini-lo seria uma limitação. Renê Girard (1923 – 2015), percebeu que o homem se constrói pela imitação. A autoafirmação, porém, o leva a competição com aquele a quem imita. É o conflito mimético.

A sociabilidade, pelo antagonismo citado, é conflitiva. O animal social de Aristóteles (384 a.C.– 322 a.C.) não exclui a litigiosidade. A metáfora de Arthur Schopenhauer (1778 – 1860) sobre o porco-espinho, que no inverno, para sobreviver ao frio, se aconchega aos semelhantes, mas espeta e é espetado, descreve bem a sociabilidade forçada e conflitiva do animal social do Estagirita. 

O controle social preserva a sociabilidade, que é necessária embora conflitiva. Controlar as espetadas do porco-espinho leva ao que Sigmond Freud (1856 – 1939) descreveu em “O mal-estar na civilização” como uma insatisfação com os limites da vida em sociedade, normatividade heterônoma (lei do outro). Inconformidade que tem origem na ilusão de uma sociabilidade sem restrições. 

A autonomia (auto = próprio; nomos = lei) é a esperança na razão para superar o conflito em sociedade. A razão cria meios que viabilizam fins. É instrumental como a ciência em sentido estrito. Mas o conflito não é só disputa de meios. Os “espinhos de porcos” têm relação com os fins. O embate mimético vincula-se a um fim: ser o que o outro é e tomar o seu lugar. 

Os limites da razão instrumental restringem o poder de harmonização da razão. Esta, porém, não é unívoca, nem responde a totalidade das inquietações de todos. Uma suposta razão fundante desloca a reflexão para o campo da ética. Este tem dois problemas: crítico e o teórico. A crítica indaga: devo obedecer essa norma? Quem pode institui-la (fonte primária) ou modifica-la? A ética é universal ou situacional? A deontologia não tem o amparo do Leviatã e nem sempre tem o apoio da sociedade. Fica restrita ao foro íntimo. 

A fonte primária da ética tem três caminhos. Um deles, o cosmocentrismo apresenta a fonte dos valores como sendo a natureza. Mas não demonstra tal coisa até a saciedade. Outro, o teocentrismo diz que Deus é a fonte da ética. Agnósticos e ateus resistem e teólogos se contradizem. O terceiro é o antropocentrismo, o caminho da arbitrariedade do homem omnipotente, individual ou coletivamente, fonte do dever ser que tudo pode. Todos os caminhos acabam em aporia. O problema teórico da ética é mais claro e resolutivo. Pergunta pelas condições transcendentais do agir moral. Que são: liberdade; imputabilidade; e existência de normatividade (legítima). Trata da liberdade de agir, não de ser. 

Pulsões de vida e de morte não se submetem a razão. A heteronomia é indispensável, única fonte de normatividade que limita o poder do mais forte. É uma forma de contrapoder. Libertários sentem opressão no léxico e nas categorias gramaticais, como se planejadas fossem para oprimir. 

Na economia, no Direito e na sociedade confundem diferença com desigualdade. Falta a validade da experiência histórica aos críticos dos padrões e papeis sociais. A ausência de referências potencializa conflitos e desestrutura o tecido social, desorienta, leva ao hedonismo. Prisioneiros da finitude, por falta de transcendência, caem no niilismo atestado pelo suicídio e depressão crescentes. 

A desorientação do mundo, que Anthony Daniels (Theodore Dalrymple, 1949 – vivo) descreve, foi induzida pela ilusão de emancipação. Atribuir à sociedade e aos padrões sociais a própria infelicidade é um erro. A felicidade “...árvore milagrosa que sonhamos/ (...) está sempre apenas onde a pomos/ E nunca a pomos onde estamos (Vicente de Carvalho, 1866 – 1924).