A SUBJETIVIDADE
E A CULTURA DO CANCELAMENTO
Elizabeba Rebouças Praciano*
Escuta-se aos quatro ventos que cada um de nós
tem uma forma de perceber o mundo, que cada um de nós tem uma maneira de
experienciar nossos desejos, comportamentos, afetos ou qualquer outro ato
construído em nossas vivências.
No entanto, essa subjetividade que, segundo o professor e psicólogo Luís Cláudio M. Figueiredo, fora desenvolvida com o
iluminismo, face à ruptura do período medieval, que praticamente continha uma
verdade única, por conta do domínio político e religioso da época, ela restou
consagrada na Revolução Francesa, no sentido de que “homens são iguais em capacidades e devem ser iguais em direitos”, e
que, para tanto, “devem ser livres, e que
para que essa liberdade não se torne um caos, todos devem ser solidários uns aos
outros”. São os clássicos ideais daquela Revolução: liberdade, igualdade e
fraternidade.
Assim, se é possível delimitar o nascedouro
dessa subjetividade, vinculando-a a uma liberdade antropocêntrica, pode-se
dizer que seu ápice fora atingido com o advento da Internet, através do uso das
redes sociais, em que cada um tem a oportunidade de exercer sua liberdade, para
mostrar sua singularidade, oportunizando, inclusive, a divulgação de todo o seu
“eu”, seja no campo das ideias, emoções e desejos, seja na apresentação da sua
imagem corporal.
No entanto, ao passo que contribuíram para o
fortalecimento da subjetividade dos indivíduos, bem como ampliaram o contingente
de pessoas conscientes de sua singularidade, as redes sociais passaram também a
exigir códigos de conduta restringindo a subjetividade daqueles que pensam
diferente, criando mecanismos de censura, como no caso da atual “cultura do
cancelamento”.
Tal sistema de censura funciona quando um
usuário das mídias sociais, ao entender que há uma ação que considera ofensiva
ao seu modo de pensar, ou do seu grupo, passa a usar medidas constrangedoras ao
“agressor”, para que este seja excluído do meio em que esteja inserido e,
consequentemente, seu comportamento destoante não seja mais propagado, ou não
tenha o alcance devido, em virtude de ter sido “cancelado”.
No campo da política atual, o cancelamento
evidencia-se bastante recorrente. Desde o resultado das eleições presidenciais
de 2014, comentaristas políticos afirmam que se acendeu uma polarização
acirrada no processo de impeachment
da Presidente Dilma Rousseff, em que simpatizantes de direita e de esquerda,
respectivamente nomeados de “coxinhas” e “mortadelas”, passaram a travar lutas
para além do campo partidário, alijando dos grupos quaisquer pessoas que não
compartilhassem das mesmas pautas ideológicas que os seus integrantes
resolvessem encampar.
Tomando como exemplo as eleições presidenciais
deste ano, pode-se verificar que a exclusão das pessoas era assunto recorrente
nos sites de Internet. Basta uma
pesquisa na rede e logo se depara com manchetes do tipo: “famílias rompida pelas eleições”; “discussões acirradas durante eleições abalam amizades”. Na verdade,
até a relação entre ídolos populares e seus fãs foram abaladas, a exemplo do
Neymar, jogador da Seleção Brasileira de Futebol, pois tendo ele declarado apoio
ao então candidato e atual Presidente da República Jair Bolsonaro, recebeu
inúmeras críticas de seus seguidores virtuais, inclusive do ex-jogador e
comentarista da Seleção Brasileira, Walter Casagrande, que não cancelou apenas
o próprio Neymar, mas todo o selecionado brasileiro, à medida em que afirmava não
torcer pela equipe enquanto o camisa 10 estivesse no time.
Também, no mesmo cenário eleitoral, a cantora
Claudia Leite foi censurada pelos seus fãs quando perceberam que ela seguia, na
sua conta do Instagram, o Pastor Evangélico André Valadão, apoiador do
candidato Jair Bolsonaro e crítico ferrenho do então candidato Lula. As
manchetes de diversos sites do dia 20
de outubro tratavam do assunto[i], e
nesta reportagem a fala do cancelamento é expressa pelo internauta do Twitter
que exclamou: “(...) ela só vai entender
o que tá fazendo quando ninguém mais apoiar a carreira dela”.
Outras reportagens na Internet apontam que os
fãs do ritmo de axé tentaram excluir Claudia Leite da programação da Micareta
Salvador 2022, onde ela estava agendada para cantar no dia 04 de novembro. Mas
como sua apresentação foi mantida, a interrupção do show, através de vaias, foi
o que restou para censurá-la, pois, segundo o comentário de um outro internauta
no Twitter, “essas pessoas públicas, principalmente aquelas que vivem de pink money, precisam ser constrangidas
em público, afinal o constrangimento ele é sim pedagógico"[ii].
Mas esse alijamento não possui destinatário
especifico. Podem ser cidadãos comum ou figuras públicas, como os artistas ou
profissionais do mundo cientifico/acadêmico, a exemplo da antropóloga,
historiadora e Professora Lília Moritz Schwerez que fora pauta do jornal Folha
de São Paulo, no dia 11 de agosto de 2021, em um artigo intitulado “O Cancelamento da Antropóloga Branca e a Pauta Identitária” referindo-se a diversas críticas
proferidas contra ela, por ocasião de um artigo intitulado “Filme de Beyoncé Erra ao Glamorizar Negritude com Estampa de Oncinha”, publicado no mesmo jornal, no dia 02 de agosto.
Ao tecer críticas sobre o filme “Black Is King”,
da cantora do pop americano, que buscava engrandecer a cultura negra a partir
de uma releitura de “O Rei Leão”, a pesquisadora apontou que a Beynoncé errou
por “glamourizar a negritude” e que
ela “precisa aprender que a luta
antirracista não se faz só com pompa, artifício hollywoodiano, brilho e cristal”.
E prosseguiu: “Nesse contexto politizado
e racializado do ‘Black Lives Matter’ e de movimentos como o ‘Decolonize This
Place’, duvido que jovens se reconheçam no lado didático dessa história de
retorno a um mundo encantado e glamourizado, com muito figurino de oncinha”.
Logo após a publicação desse artigo diversas
críticas começaram a se seguir, a exemplo do ator Ícaro Silva, que comentou em uma
das postagens da professora: “Você é uma
grande, grande vergonha. Não somente para o Brasil e para o povo preto, mas
para todos os povos aqui presentes. Não vejo por onde defender seu declarado
racismo, sua arrogância branca elitista em se dar o direito não somente de
reduzir uma obra prima ao nicho ‘antirracista’, mas em acreditar que tem
conhecimento antropológico sobre África”. A cantora Iza também rechaçou com
acidez a antropóloga ao dizer: “Eu
preciso entender que privilégio é esse que te faz pensar que você tem alguma
autoridade para ensinar uma mulher negra como ela deve ou não falar sobre seu
povo. Se eu fosse você estaria com vergonha agora”.
Também pelos movimentos negros, a atriz
Fernanda Torres foi julgada como racista pelas redes sociais, em razão de um
artigo publicado no blog #AgoraÉqueSãoElas, da Folha de São Paulo, intitulado “Mulher”,
postado no dia 22 de agosto de 2016, de
sua autoria, que ao destacar a beleza de sua antiga babá Irene, descreve-a como
“mulata”. Para compreensão melhor da fala da atriz, transcreve-se seu texto: “Minha babá era um avião de mulher, uma
mulata mineira chamada Irene que causava furor onde quer que passasse. Eu ia
para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas,
enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse fenômeno à magia da Irene.
O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela
possuía e que nunca cheguei a experimentar”.
Pelo conteúdo linguístico acima e também
porque no mesmo texto Fernanda Torres afirmou que “rejeita campanha anti fiu-fiu porque considera o flerte um estado de
graça a ser preservado”, ela também foi julgada pelos movimentos feministas,
que acusaram-na de machista.
Após 48 horas da publicação desse texto, no
dia 24 de fevereiro de 2016, a atriz pediu desculpas aos movimentos feministas
e aos movimentos negros, publicando um artigo intitulado Mea Culpa, no mesmo meio de comunicação.
Ainda em relação à Fernanda Torres, acerca da
temática aqui tratada, ela afirmou, em entrevista a Revista GZH, publicada no dia 15 de dezembro de 2017, que aprendeu a
ser muda. Em sua fala ela disse: “Apanhei
do novo feminismo, mas aprendi as novas regras. Elas fazem sentido, mas a minha
experiência passada, com os Dzi Croquettes (grupo de teatro da década de 1970),
com aquele mundo hipersexualizado em que eu cresci, pré-aids, pós-1968, isso
não vai mudar em mim. Cresci em um país miscigenado e sincrético, que talvez
não seja o Brasil do futuro. Eu vou me acostumar, mas estranharei para sempre
essa mudança. A idade é uma coisa muito louca, a sua memória é tão ou mais real
do que a realidade mesmo... A idade é uma experiência muda, solitária e
reflexiva!”.
Utilizando o mesmo tempo da atriz, inclusive
contabilizado no seu pedido de desculpas, a Antropóloga utiliza sua conta no
Instagram para manifestar seu arrependimento de ter escrito o artigo intitulado
“Filme de Beyoncé Erra ao Glamourizar Negritude com Estampa de Oncinha”. Em sua
rede social ela escreveu: “Passei as
últimas 48 horas praticando a escuta. Conversei com pessoas amigas e críticas e
rascunhei essa mensagem inúmeras vezes. Não deveria ter aceito o convite da
Folha, a despeito de apreciar muito o trabalho de Beyoncé; seria melhor uma
analista ou um analista negro estudiosos dos temas e questões que a cantora e o
filme abordam (…)”. E continuou: “Errei
e peço desculpas aos feminismos negros e aos movimentos negros com os quais
desenvolvi, julgo eu, uma relação como aliada da causa antirracista. Assumo a
minha responsabilidade pelo artigo e não pretendo vencer qualquer discussão.
Quando uma situação dessas se monta, todos perdem; tenho consciência”. No
programa Roda-Viva, transmitido pela TV Cultura no dia 07 de setembro, ela
afirmou: “Eu estou aqui aprendendo nesse
debate, aprendendo muito nesse processo dolorido, por certo, mas que eu não sou
uma vítima (…) e que a escuta é um
processo transformador”.
Como se vê, a atriz e a pesquisadora adotaram
o mesmo comportamento: silenciar, não discutir assuntos relacionados a anos de
vivência e de expertise acadêmica, como no caso da professora Lilia que expôs
as chagas do racismo no Brasil, sobretudo no período colonial, em diversas
obras publicadas.
O Professor Wilson Gomes, Titular da Faculdade
de Comunicação da Bahia, em seu artigo “O Cancelamento da Antropóloga Branca e
a Pauta Identitária”, indaga muito bem: “Por
que aceitar as acusações de racistas e as descomposturas em que se acusam de
ter exorbitado por ter falado sobre o que está proibida de falar simplesmente
por não ser de raça ou da cor que reivindica o monopólio do tema? (...) Afinal passou a vida lutando contra o
racismo, ensinando contra o racismo, publicando contra o racismo. Nela deve
doer ser acusada de racista (...)”.
É lamentável que o silêncio seja o efeito
nefasto desse cancelamento, pois, vindo de artistas e pesquisadores, quem
silencia é a arte e o conhecimento científico, os quais devem ser livres de
qualquer censura. Não se pode substituir o Tribunal da Inquisição pelo tribunal virtual dos grupos sociais da Internet, e não se pode trocar a pena da
fogueira pela pena do cancelamento.
Em favor da liberdade de expressão e contra
esse cancelamento, a carta intitulada “A
Letter on Justice and Open Debate”, publicada pela revista americana
Harper’s, no dia 07 de julho de 2020, em que foi pontuado “a maneira de derrotar as más ideias é expondo-se, argumentando e
persuadindo, não tentando silenciá-las ou desejá-las embora. E a restrição do
debate, seja por um governo repressivo ou por uma sociedade intolerante,
invariavelmente fere os que não têm poder e torna todos menos capazes de
participar da democracia. Recusamos qualquer falsa escolha entre justiça e
liberdade, que não podem existir uma sem a outra”.
A referida carta foi assinada por 153
personalidades, os quais mantêm pensamento liberal e conservador, dentre
filósofos, escritores e diversas especialidades acadêmicas, a exemplo de Noam
Chomsky, JK Rowling e Steven Pinker, o qual demonstra que é preciso construir
pontes entre todos os seguimentos da sociedade civil e institucionalizada para
alcançar e aceitar as “humanidades” existentes entre nós, e assim termos uma
cultura, não de cancelamento, mas sim de um conhecimento num sentido ampliado
com acesso a todas as maneiras como nossa subjetividade se expressa.
[ii] https://www.uol.com.br/splash/noticias/2022/11/05/claudia-leitte.htm?cmpid=copiaecola
COMENTÁRIOS:
Muito me alegrei ao me deparar com esse
artigo, muitíssimo bem escrito e que nos traz uma reflexão bastante atual: o
mal estar que vivenciamos, mudos, diante das diversas situações da atualidade
perante as quais não temos a liberdade, essa que é o mais sublime dos direitos
da alma humana, de expressar nossos pensamentos e ideias, sem que corramos o
risco de sermos cruelmente trucidados. Para onde caminhamos? Onde tudo isso irá
nos levar?
Rosiana Correia Ribeiro
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Bem colocadas palavras, maravilhosamente
escritas, de forma a traduzir a angústia que eu sinto ao me deparar com
situações reais e análogas, onde silenciar parece a melhor opção, afinal de
contas parece que desapredi a viver nesses tempos modernos.
Como poderemos reaprender a viver? Quando poderemos discordar de um pensamento, expor uma opinião, sem sermos
cancelados? Que mundo frágil e sem emoções, esse virtual. Tão diferente do
robusto mundo real, que tanto aprecio.
Ceiça