A (DES)ORIENTAÇÃO COGNITIVA
Rui Martinho Rodrigues*
Quem diz que a tinta de uma caneta é azul ou declara esse tipo de verdade (objetiva) que é correspondência entre o que é declarado e um fato verificável de algum modo, acerta ou erra. O racionalismo crítico, com destaque para Karl R. Popper (1902 – 1994), não repudiou verdade objetiva, pelo contrário, exigiu a validação do discurso pela crítica, diversamente do relativismo laxista.
Verdade moral não é impossível. É a coincidência entre o dito e o que o declarante sabe, pensa ou sente.
Verdade lógica também é possível. Não trata da materialidade do objeto, mas da harmonia entre as partes do discurso: se “A” é maior do que “B” e “B” é maior do que “C”, então “A” é maior do que “C”. Verdades lógicas são abstrações. Não se condicionam as circunstâncias, como as “condições normais de temperatura e pressão”. Não trata de objetos materiais.
Verdades ontológicas não são verificáveis. Não são próprias da ciência. Integram a Filosofia no campo da metafísica. Ciência não trata da ontologia do ser (essência), abstraindo particularidades, buscando a abrangência capaz de alcançar a pluralidade do ser de modo pleno e integral, na visão de Aristóteles (384 a. C.– 322 a. C.).
Ciência não diz o que é a gravidade, apenas descreve o seu comportamento como sendo diretamente proporcional a quantidade de massa dos objetos e inversamente proporcional ao quadrado da distância entre eles (Isaac Newton, 1643 – 1727). Pode se expressar como lei em sentido científico, um conjunto de fatores que em condições dadas produz um resultado previsto.
A harmonia entre as partes do discurso, objeto da lógica, não sofre os efeitos da materialidade do objeto. Afirmar: que todos os elefantes voam; que Dumbo é elefante; logo Dumbo voa é um discurso cujas partes se harmonizam. É lógico, embora o aspecto material o desclassifique como falso. É necessário um complemento material verificável. Mas não é possível defender o relativismo laxista com base nas limitações da lógica aristotélica. As limitações do discurso metafísico não servem de arrimo ao negativismo cognitivo.
A desorientação do mundo, causada pelos (de)formadores de opinião, de que fala Theodore Dalrymple (Anthony Daniels, 1949 – vivo), acrescente-se que a grande imprensa nos alimenta com ficção, quem quiser conhecer a realidade deve ler ficção. Albert Camus (1913 – 1960) teria dito que a ficção é a mentira que nos conta a verdade.
O filósofo francês usou linguagem figurada. Mentiras têm o significado de negação consciente dos fatos, contrariando a verdade moral, diversamente do erro, que se opõe as verdades objetiva e lógica. A ficção não se apresenta falsamente como verdade. Conta parábolas, alegorias ou alguma forma de representação propondo verdades lógicas.
Dizer que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, frase atribuída a Joseph Goebbels (1897 – 1945) e a outros autores, confunde a credibilidade de uma mentira com verdade. A mentira repetida não se torna verdade objetiva, nem verdade moral, nem verdade lógica ou ontológica. A falta de contestação confere aparência de verdade ao erro e a desonestidade.
A imprecisão conceitual gera confusão. A consciência, em seu nível mais elementar, é um processo neurológico, simples percepção, fenômeno sensorial, automático, não volitivo, sem compreensão do processo cognitivo. No exame dos conceitos o processo cognitivo é psicológico, consciente e volitivo. A repetição sem contestação convence quem não vai além da percepção sensorial, sem a ação voluntária da vigilância epistemológica.
O conhecimento é uma alvenaria cujos tijolos são conceitos. Negar a validade destas unidades, substituindo-as por categorias teóricas sem limites definidos, a pretexto de alcançar a diversidade do mundo real é falácia ou sofisma. Conceitos são elaborados por meio de abstrações. Alcançam certa diversidade.
Mesa é um conceito formado com uma superfície plana sobre a qual é possível colocar coisas, situada acima do chão, apoiado em alguma coisa. Pode ter diferentes números de pernas. Pode ser feita dos mais diversos materiais, para múltiplas finalidades. Alargar a pluralidade dos conceitos é o caminho da indeterminação semântica do discurso. Encobre o raciocínio com uma nuvem de indeterminações. Protege o engodo contra a crítica. Mesa não deve se indiferenciar de cama, fogão ou avião. Sofismas se beneficiam da indeterminação semântica.
Invocar a ciência para legitimar um paradigma que já não resiste ao esforço de falseamento proposto por Popper é erro comum. A Teoria microbiana de Louis Pasteur (1822 – 1895), relacionando micróbios com doenças, contrariou a concepção segundo a qual o ar, a água e coisas insalubres transmitiam doenças (Teoria dos miasmas). Aterrar pântanos afastava mosquitos transmissores de doenças e isso aparentemente ratificava a Teoria miasmática. A comunidade científica não compreendeu Pasteur. Alegou a autoridade de autores renomados e da tradição. Micróbios invisíveis, presentes em toda parte, que entravam nas pessoas e poderiam matá-las era coisa de paranoico.
Segundo Max K. E. L Planck a Física só cresce quando morre uma geração de físicos. Seguidores de um paradigma se tornam impermeáveis a um conhecimento diferente, como demonstrado por Thomas S. Kuhn (1922 – 1996), na obra “A estrutura das Revoluções Científicas”. Gaston Bachelard (1864 – 1962) falou em obstáculos epistemológicos ao crescimento do conhecimento, na obra “O Novo Espírito Científico”. Muitos invocam em vão o “santo nome” da ciência em razão da cegueira dos paradigmas (Thomas Kuhn), de interesse argentário ou como tática de conquista do poder. Excluir da cientificidade desqualifica pessoas, destrói ou constrói reputações, contrariando o pluralismo da comunidade científica.
Confundir conceitos, sem distinguir terrorismo e vandalismo; crítica à autoridade e ataque às instituições; indignação cívica e discurso de ódio é elasticidade semântica que permite confundir defesa da democracia com censura prévia; com supressão das prerrogativas da advocacia e das garantias do devido processo legal, entre as quais a supressão de instâncias (violando o princípio do juiz natural); permite criminalizar condutas não tipificadas; e permite manter em segredo procedimentos que devem ser públicos.
Filosofia é esforço de superação da doxa, palavra grega para crença ingênua. Exige vigilância epistemológica, sem a licenciosidade da senhora de costumes cognoscitivos fáceis, como Lucio Colletti (1924 – 2001) nomeava a dialética de G. W. Friedrich Hegel (1770 – 1831).
Defender a quadratura do círculo em nome da síntese dos contrários é
licenciosidade epistemológica. Democracia é conceito complexo, elaborado com um
conjunto de noções. Envolve consentimento dos cidadãos, liberdade de crítica,
proteção de um ordenamento jurídico que limite o arbítrio de autoridades e uma
educação que submeta teorias ao confronto com as objeções, diversamente de
catequese ideológica.