sábado, 13 de janeiro de 2018

CRÔNICA - Passarinheiro (GJ)


PASSARINHEIRO
Geraldo Jesuíno*



Move-se sorrateiro. Ainda não são nem cinco da manhã. Bermudas folgadas, camiseta, relógio e tênis. Uns trocados para comprar dois carioquinhas, na volta, para o desjejum. Pisa baixinho para não acordar a mulher, ainda entre os lençóis. Ela, já acordada, finge dormir. Sabe do cuidado dele. Disfarça um sorriso e continua quieta, contando-lhe os passos quase silenciosos e esperando o "click!" da fechadura da porta da frente.

Ele também sabe dela, também finge acreditar que ela dorme. [Vai com Deus, meu velho!] E ele vai.

– Hora de contar passarinhos!

A rua e a pracinha, ainda mal clareadas, têm jeito de paz. Casas, quase antigas e quietas, qual sua mulher, fingem-se adormecidas para assegurar os últimos minutos de descanso da madrugada. As árvores da praça, das calçadas e dos jardins, não! Estas já se aquecem nos primeiros raios da manhã e vibram na inquietude do vento. Acalentam o despertar algazarrento dos passarinhos que, com seus trinados, vão aparecendo exaltados, felizes.

– Os sabiás! Um, dois, três... Ê, aquela eu conheço! Dona de casa e mãe de dois sabiazinhos de bicos escancarados. Aquele, mora num ninho acomodado em uma luminária da casa da Dona Beta, logo ali na frente. Mais dois, lá...

E segue pela calçada, às vezes andando de costas e apertando os olhos para alcançar os beija-flores miúdos e ligeiros que catam os botões, desviando-se das arapuás, também em disputa pelas flores.

– Quatro, cinco, seis... Acho que é um pintassilgo.  Arrisca, palpitando uma categoria para os pássaros que não identifica: pintado, rolinha... Doze...  Coroado, curió, golinha, sebite, cardeal... Vinte e dois, vinte e três... Até um galo de campina, já avistara.

Segura o passo na descida. Cuidado para não escorregar no cimento liso. Já chegando na esquina da sexta quadra, o barulho de um motor de carro. Seu Alfredo e sua coitada Brasília, levando as verduras para o mercadinho da Dona Elcí.  Perfila-se para cumprimentar o amigo, como sempre faz.

– Bom dia, Seu Alfredo!

– Bom dia – responde o motorista suado, enquanto tenta controlar o seu velho e quase destroçado carro, que teima em descer desenfreado a pequena ladeira, liberando odor de cheiro-verde e manjericão; uma luta.

Um susto acusa o estrondo de outro motor. Este, dessas motocicletas grandes e ruidosas. O som se torna constante e cada vez mais próximo. Muito mais próximo quando o bólido aparece fumando sobre a calçada transversal. Faz uma manobra brusca na tentativa de dobrar na esquina, mas o meio-fio, esquisito e alto, prega uma peça no piloto e lhe subtrai o equilíbrio. Bem na frente da pobre e velha brasília do Seu Alfredo.

Catapum!!!

Um choque de raspão. O carro velho segue, espantado, guinchando nos freios desgastados e desobedientes. A moto cambaleia pela rua de pedras e se aquieta, sem muito dano, alguns metros à frente. O piloto, tão ágil quanto mirrado, jaz com a perna presa sob o tanque de combustível.

– Coitado!

O socorro ocorre tão rápido quanto o permitem as pernas e o coração do velho contador de passarinhos.

– Você está bem, meu filho? – quase uma criança, ele pode constatar agora. Concentra-se no peso do veículo ainda de motor ligado. Uma forcinha a mais e a perna do menino pode escorregar para lugar seguro.

Larga o peso, bem maior do que lhe concede a lombalgia crônica, e estira-se. Com alguma dificuldade, vira-se para socorrer o piloto.

– Perdeu, vovô! – disse-lhe o cano da arma apontada para o seu nariz.

– Passa o dinheiro, o relógio e o tênis! Rápido!

Lá se foi o relógio com a cara do Mickey, que ganhara do neto no último aniversário e o tênis que o filho lhe trouxera de São Paulo.

A moto fumaça pela descida, em disparada. O dinheiro? Dois reais.

– Hoje não vai ter carioquinha. Não faz mal, só hoje...

Reclama um pouco da dureza das pedras da rua contra os pés descalços. No mais, pequenas perdas, nada relevante. Ninguém muito machucado, estamos todos bem, graças a Deus.

A rua volta ao quase sono, novamente tudo se acomoda. O sol já acende as boas vindas e ainda há passarinhos para contar...



Ilustração: Geraldo Jesuino: Gravuras: Sabiá e Campina. 




COMENTÁRIO:

Doce. Amena. Interessante e muito bem escrita por um mestre da estética, honra deste "blog".

Vianney Mesquita.
 

Um comentário:

  1. Doce. Amena. Interessante e muito bem escrita por um mestre da estética, honra deste "blog". Vianney Mesquita.

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