PASSARINHEIRO
Geraldo Jesuíno*
Move-se sorrateiro. Ainda não são nem cinco da
manhã. Bermudas folgadas, camiseta, relógio e tênis. Uns trocados para comprar
dois carioquinhas, na volta, para o desjejum. Pisa baixinho para não acordar a
mulher, ainda entre os lençóis. Ela, já acordada, finge dormir. Sabe do cuidado
dele. Disfarça um sorriso e continua quieta, contando-lhe os passos quase
silenciosos e esperando o "click!" da fechadura da porta da frente.
Ele também sabe dela, também finge acreditar
que ela dorme. [Vai com Deus, meu velho!] E ele vai.
– Hora de contar passarinhos!
A rua e a pracinha, ainda mal clareadas, têm
jeito de paz. Casas, quase antigas e quietas, qual sua mulher, fingem-se
adormecidas para assegurar os últimos minutos de descanso da madrugada. As
árvores da praça, das calçadas e dos jardins, não! Estas já se aquecem nos
primeiros raios da manhã e vibram na inquietude do vento. Acalentam o despertar
algazarrento dos passarinhos que, com seus trinados, vão aparecendo exaltados,
felizes.
– Os sabiás! Um, dois, três... Ê, aquela eu
conheço! Dona de casa e mãe de dois sabiazinhos de bicos escancarados. Aquele,
mora num ninho acomodado em uma luminária da casa da Dona Beta, logo ali na
frente. Mais dois, lá...
E segue pela calçada, às vezes andando de
costas e apertando os olhos para alcançar os beija-flores miúdos e ligeiros que
catam os botões, desviando-se das arapuás, também em disputa pelas flores.
– Quatro, cinco, seis... Acho que é um
pintassilgo. Arrisca, palpitando uma
categoria para os pássaros que não identifica: pintado, rolinha... Doze... Coroado, curió, golinha, sebite, cardeal... Vinte
e dois, vinte e três... Até um galo de campina, já avistara.
Segura o passo na descida. Cuidado para não
escorregar no cimento liso. Já chegando na esquina da sexta quadra, o barulho
de um motor de carro. Seu Alfredo e sua coitada Brasília, levando as verduras
para o mercadinho da Dona Elcí. Perfila-se
para cumprimentar o amigo, como sempre faz.
– Bom dia, Seu Alfredo!
– Bom dia – responde o motorista suado,
enquanto tenta controlar o seu velho e quase destroçado carro, que teima em
descer desenfreado a pequena ladeira, liberando odor de cheiro-verde e
manjericão; uma luta.
Um susto acusa o estrondo de outro motor.
Este, dessas motocicletas grandes e ruidosas. O som se torna constante e cada
vez mais próximo. Muito mais próximo quando o bólido aparece fumando sobre a
calçada transversal. Faz uma manobra brusca na tentativa de dobrar na esquina,
mas o meio-fio, esquisito e alto, prega uma peça no piloto e lhe subtrai o
equilíbrio. Bem na frente da pobre e velha brasília do Seu Alfredo.
Catapum!!!
Um choque de raspão. O carro velho segue,
espantado, guinchando nos freios desgastados e desobedientes. A moto cambaleia
pela rua de pedras e se aquieta, sem muito dano, alguns metros à frente. O
piloto, tão ágil quanto mirrado, jaz com a perna presa sob o tanque de
combustível.
– Coitado!
O socorro ocorre tão rápido quanto o permitem
as pernas e o coração do velho contador de passarinhos.
– Você está bem, meu filho? – quase uma
criança, ele pode constatar agora. Concentra-se no peso do veículo ainda de
motor ligado. Uma forcinha a mais e a perna do menino pode escorregar para
lugar seguro.
Larga o peso, bem maior do que lhe concede a
lombalgia crônica, e estira-se. Com alguma dificuldade, vira-se para socorrer o
piloto.
– Perdeu, vovô! – disse-lhe o cano da arma
apontada para o seu nariz.
– Passa o dinheiro, o relógio e o tênis! Rápido!
Lá se foi o relógio com a cara do Mickey, que
ganhara do neto no último aniversário e o tênis que o filho lhe trouxera de São
Paulo.
A moto fumaça pela descida, em disparada. O
dinheiro? Dois reais.
– Hoje não vai ter carioquinha. Não faz mal,
só hoje...
Reclama um pouco da dureza das pedras da rua
contra os pés descalços. No mais, pequenas perdas, nada relevante. Ninguém
muito machucado, estamos todos bem, graças a Deus.
A rua volta ao quase sono, novamente tudo se
acomoda. O sol já acende as boas vindas e ainda há
passarinhos para contar...
Ilustração: Geraldo Jesuino: Gravuras: Sabiá e Campina.
COMENTÁRIO:
Doce.
Amena. Interessante e muito bem escrita por um mestre da estética, honra deste
"blog".
Vianney
Mesquita.
Doce. Amena. Interessante e muito bem escrita por um mestre da estética, honra deste "blog". Vianney Mesquita.
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