sábado, 27 de janeiro de 2018

CRÔNICA - Hino (GJ)

Hino
Geraldo Jesuíno*


Ela fica ali, quieta, distante em sua cadeira velha de ferro e fios de nylon. No seu silêncio, quase sempre alheada das coisas, esboça de vez em quando um arremedo de sorriso, desenho perdido entre as tantas rugas, ou deixa que alguma lágrima escape e, à falta do que a contenha, caia-lhe no colo, sobre o vestido barato.


Nem sempre foi assim. Houve tempo em que faceirice e graça lhe sobravam no corpo de menina-moça, quando, ainda com os pais, esquivava-se da cobiça dos olhos famintos dos clientes da barraca de feira livre, onde vendiam quase de tudo e garantiam o sustento da vida simples.

Também houve época em que, sozinha, enfrentou a tarefa de cuidar da própria vida. Já mulher feita, exibia uma beleza pronta, sem mais retoques do que aqueles das roupas colhidas, ao seu agrado, entre as tantas que vendia. Dava-se bem nas tarefas mais do que pesadas do dia a dia e ainda atentava em se desvencilhar das investidas, mas, agora, sem o seguro cuidado dos velhos, nem se dava mais a tanto empenho. De vez em quando, correspondia a um sorriso. Já não virava o rosto, não franzia o cenho, não cerrava a porta. Quem sabe, um braço para ajudar na luta, um corpo para aquecer a cama, um amor para completar a vida... – Ah! Um amor! Ah... – Era tempo de querer chegar mais perto de tudo com o que sempre sonhara. Mais de trinta anos já vira passar.

Então houve o tempo das felicidades. Pleno, revolto, impetuoso. Um ano, dois, três. Ela, firme na luta da feira, nas lidas da casa. Ele, zanzando nos biscates, nas mesas dos bares e, até, nas penumbras de casa. Depois, a modorra, a feira mais pesada, a casa mais oca, o carinho mais no fim da madrugada. Quatro, cinco, seis anos. Tempo de gravidez de risco, mas ela queria. Impôs-se e, quase entorpecida pelo odor de álcool, conquistou o intento. Nasceu-lhe filha num domingo de feira, sem as vistas do pai. Sete, oito anos. Vida difícil. Dinheiro curto, canseira. A casa, agora menor e num bairro mais distante. Vida de dor, de insultos, de hematomas. – Melhor viver apenas com a minha filha e Deus. – Assim, ficou um coração quase esvaziado de um amor que partiu aos trancos, em passos bêbados, sem dizer adeus.

Oito, nove, catorze ... – Quanto tempo, meu Deus?!
Foi isso que ela se perguntou quando a filha, já de sete anos atendeu, no meio da noite,à porta da frente.

 – Mãe, tem um homem aqui procurando a senhora!

Ele! Quebrado, maltrapilho, ferido, embriagado, mas ainda um amor, mesmo repudiado até quase às entranhas.

Deu-se o tempo das piedades, dos perdões e das acolhidas; de curar feridas do corpo e da alma. Tempo de acreditar em entes e destinos sãos, e em milagres. Um aconteceu: nasceu seu varão entre dores e lágrimas. Aquele outro sonho sumiu, sorrateiro como sempre, no apagar das luzes de um dia qualquer.

Vieram os anos amargos. Tantas sequelas do parto. Tanto a fazer.

A filha, apoio seguro; o filho, rastro do pai. Foi do que se lembrou quando, amparada pelas lágrimas e os braços da filha, e carregada, às pressas, para uma UPA. Um infarto quase fatal, uma cadeira de ferro e fios de nylon para sustentar os cansaços de tantos anos e um radinho de pilhas, quebrado e amarrado com ligas de borracha, que mal dava para ouvir.

Outra vez, porém, se clareou tempo de festa! – Parabéns pra você, nesta data querida!... – O beijo na testa e o presente, lindamente embalado em papel com flores vermelhas: um radinho de pilhas, novinho, moderno e de voz clara e macia.

– Tó, eu vou para a feira, trabalhar. Vê se tu ficas um bocadinho com a mãe, antes de ganhar o mundo. Presta atenção! É aniversário dela, olha o que é que tu vai fazer, viu? Vou trazer um bolinho, meio dia... – Ela ouviu a filha dizer ao filho.  Outro beijo e o sinal de até logo.

O radinho cantava um hino bonito. Dava gosto ouvir.

– Desculpa aí, velha, mas eu preciso mais do que a senhora!

– Gruniu-lhe o filho entre suores e visíveis tremores.

Desta vez não foi preciso muito tempo; foi um quase-nada. O radinho foi sacado do seu colo e saiu, ligeiro, cantando, rua abaixo, no rumo das esquinas mais escuras.

Cantando, cantando... 

  

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