O
MONOPARTIDARISMO DISCRETO
III
(ou A revanche do sagrado)
Rui Martins Rodrigues*
A hegemonia ideológica (a conquista de um quase consenso político
na sociedade), alcançou Igrejas. Universidades, imprensa e indústria cultural
muito contribuíram para tanto. A sensibilidade política das lideranças, o
ativismo de infiltrados e a ingenuidade de muitos fiéis facilitaram a
influência secular. A aproximação entre os cristianismo e doutrinas políticas
foi propiciada pelo desconhecimento, de grande parte dos seguidores das Igrejas,
do que seja a doutrina que professam.
O segundo pós-guerra trouxe o fortalecimento dos partidos
comunistas e socialistas na França e na Itália, quando eles cresciam a cada
eleição. A cúpula do Vaticano era majoritariamente formada por italianos e
franceses. A impressão de que estes países seriam dominados pelos partidos
citados influenciou a cúria metropolitana. A secularização das sociedades,
agudizada na segunda metade do Século XX, deu credibilidade à ideia de uma
civilização inteiramente secularizada, dando origem a uma era pós-cristã.
A sensibilidade política adotada desde o concílio de Niceia (325
a.D.), quando as lideranças do cristianismo renderam-se ao Império Romano,
aceitando a direção do Imperador Constantino, impondo até um nome que
adjetivava o cristianismo contraditoriamente como universal (católico) e
romano, mais uma vez se fez presente. Era hora de aderir aos vencedores da
guerra fria, a tempo de chamar a si parte dos méritos pela vitória. A
América-Latina parecia inclinada a seguir a revolução cubana. Os soviéticos
saiam à frente na corrida espacial, com o primeiro satélite e o primeiro homem
lançado ao espaço. Ao vencedor as batas.
O Concílio Vaticano II adotou a dialética. A unidade dos contrários
permitiria juntar o teocentrismo com o antropocentrismo; a não violência do
cristianismo com a filosofia de guerra dos revolucionários; confundir o reino
que não é desse mundo com as lutas políticas; indiferenciando a proposta de
fazer o bem, socorrendo necessitados e assumindo o ônus da iniciativa, com a
“luta pelo mundo melhor”, que aponta culpados contra quem propõe castigos;
conciliar o amor aos inimigos com o ódio aos “opressores”; além de suprimir a
responsabilidade individual própria do cristianismo, transferindo-a para os
condicionamentos econômicos, sociais e culturais proposta pelas ideologias
libertárias.
Já não era preciso fazer o bem com uma mão sem que a outra
soubesse, nem sem olhar a quem. A propaganda revolucionária exigia que se
trombeteasse benefícios destinados aos desvalidos, ainda que estes não tivessem
sustentabilidade a longo prazo. A luta pelo poder, “só para fazer o mundo
melhor”, legitimava tudo. Sobrava uma pose de superioridade moral e intelectual
dos “esclarecidos”, embora nem sempre soubessem sequer o diziam. Assim, o
público ilustrado, catequizado pelas escolas e universidades aparelhadas, seria
contemplado. Os templos vazios, na velha Europa, teriam de volta o público secularizado.
Nascia a Teologia da Libertação, entre os católicos; e a Teologia da Missão
Integral, entre protestantes tradicionais.
Sabedoria é um bicho que quando cresce muito engole o dono. A
revanche do sagrado não tardou. Um novo sagrado, na forma de religiões
políticas, levou os “esclarecidos” para os “movimentos sociais”, abandonando as Igrejas tradicionais secularizadas, afinal partidos, sindicatos e outros
organizações seculares tinham mais competência neste campo e agora tornavam-se
sagradas, na forma de religião política. A busca do sagrado do tipo espiritual
levou parte do público para o islã, na Europa onde as conversões se fazem aos
milhares; e para os neopentecostais na América-Latina. Estes também foram
alcançados pela ideologia do “mundo melhor”, mas o ativismo da nova moral
sexual, das teses abortivas e outras mais, veio o rompimento do namoro das
igrejas avivadas com os movimentos “politicamente corretos”.
A hegemonia ideológica apresenta assim uma primeira fissura,
facilitada pelas redes sociais, que driblaram o bloqueio da imprensa e da
indústria cultural submetidas à hegemonia ideológica das doutrinas o Céu na
terra. Instalou-se uma saudável cizânia entre “progressistas” e
“conservadores”, na forma de guerra interna no coração do Vaticano.
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