A PROVA POLÊMICA
Rui Martinho Rodrigues*
Dizer que os ácidos reagem com as
bases dando sal e água; ou que toda ação desencadeia uma reação de igual
intensidade e de sentido contrário não gera polêmica. A moral, porém, não é tão
consensual e não deve ser oficializada, obrigando o cidadão a repeti-la, sob
pena de ser excluído em exame oficial. Acrescente-se que as leis da Química e
da Física tratam de juízos de realidade. Os juízos morais estão insertos no
campo dos valores, indissoluvelmente ligados à liberdade de consciência.
A prova do ENEM apresentou questão
valorativa.
O gênero é inseparável do sexo. Não
existe gênero sem sexo. Este se define em três planos. Há um sexo genético,
determinado pelos cromossomos x e y, definido no momento da concepção, que não
é uma “construção sociocultural”. Outra dimensão é a somática, identificável
pelo desenvolvimento biológico na vida intrauterina, caracterizado
primariamente pelos órgãos produtores de gametas ou gônadas, que são os
testículos, nos indivíduos masculinos, e ovário, nos sujeitos femininos. Este
também, vale repetir, se define antes do nascimento. Não é sociocultural.
Deblaterar contra a dimensão natural
dos sexos, por maior que seja o reducionismo histórico e cultural, é engodo ou
o equívoco, evidenciado quando o culturalismo exacerbado subitamente se
converte ao determinismo biológico, que é um reducionismo de sinal contrário,
para fundamentar a tese segundo a qual a orientação sexual é determinada por
fatores genéticos. Os dois reducionismos e determinismos, um social outro
genético, são incompatíveis entre si. Mas o determinismo social é usado para
defender a extinção do dualismo de gênero, configurando um experimentalismo de
quem pretende usar a sociedade como cobaia de suas cogitações.
A dimensão cultural ou social do sexo
e do gênero é um fenômeno social e cultural, com perdão da redundância. Este
terceiro plano da definição de gênero e do sexo pode entrar em contradição com
o sexo genético e com somático. Tal contradição, seja ela um determinismo
genético, somático, um fenômeno histórico ou um conjunto no qual todos ou
alguns destes fatores interagem, não deve ser um tema de Estado. Deve
circunscrever-se aos estudos e debates científicos. As práticas sexuais das
pessoas não atingem a alteridade, permanecendo no campo da vida íntima. Este é
o campo das liberdades individuais, que é o campo da licitude. A licitude
compreende aquilo que não é proibido nem obrigado aos cidadãos, sendo deixado à
liberdade negocial entre sujeitos maiores, havidos como capazes.
As condutas da espécie em exame são
toleradas. Tolerância é coexistência pacífica. Não deve ser confundida com
apologia. Não cabe reprimenda nem diploma de honra ao mérito por práticas
sexuais, sejam quais forem. O Estado não deve interferir nas questões de foro íntimo.
O juízo moral a respeito da sexualidade deve permanecer livre. Não deve haver
uma moral oficial. Estatizar a moral oprime a liberdade de consciência. Este
não é um juízo de realidade, como aqueles dos exemplos da química e da física.
Estamos tratando de juízos de valor.
O Direito e a moral, concebidos como
círculos secantes, se distinguem justamente na parte dos juízos de valor e das
condutas que não vão além do consenso entre os agentes. Concebidos como
círculos concêntricos, o Direito ocupa apenas central do círculo corresponde a
moral, deixando margem de liberdade para os cidadão ajuizarem a licitude
conforme as suas consciências, salvo quando se viva em um Estado confessional.
A tolerância está no campo da
licitude, território da liberdade negocial. Colocar em prova questões de
consciência em concursos públicos é estatizar a moral, é coagir a consciência,
é confundir a proteção de minorias com oficialização de um juízo de valor, é
utilizar o argumento da tolerância como a obrigatoriedade de silenciar a
crítica e a livre expressão do pensamento. Em síntese: é censura das
consciências, é cerceamento da liberdade de expressão, prejudica pessoas por
questões de consciência, oficializando teses polêmicas como se fossem leis
científicas inquestionáveis.
A orquestração ideológica modifica o
significado das palavras, como na ficção orwelliana em que a novilíngua era
usada como arma de dominação, confunde palavras e conceitos. Juízos morais
conservadores têm sido apresentado pelos arautos da revolução cultural como
preconceito. Mas o prefixo “pre” indica a anteposição do juízo de valor ou de
realidade à cognição do fato ou ato avaliado. Quando se formula um juízo de
valor sobre fato ou ato do conhecimento de quem julga o temos é conceito, não
um preconceito. Conceitos podem ser criticados e repudiados, podendo ser
adjetivado, pelos revolucionários, como “reacionário”, “conservador”,
“antiquado”, “quadrado” e tantos outros. Confundi-lo com preconceito, porém, é
erro crasso ou mistificação.
Todos sabem o que sejam práticas
homossexuais. Juízo de valor sobre o que se conhece é conceito, vale repetir,
preconceito é juízo formulado sem o conhecimento do objeto da cognição. Juízo
de reprovação a quaisquer condutas, quando conhecidas por quem emite o juízo, é
conceito. Preconceito pode ser a intolerância contra quem emite tal juízo,
porque nem sempre a dita intolerância parte de quem conhece as razões do citado
juízo de reprovação.
Fortaleza, 31/10/15
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