terça-feira, 27 de outubro de 2015

ARTIGO - A Prova Polêmica (RMR)

A PROVA POLÊMICA
Rui Martinho Rodrigues*



Dizer que os ácidos reagem com as bases dando sal e água; ou que toda ação desencadeia uma reação de igual intensidade e de sentido contrário não gera polêmica. A moral, porém, não é tão consensual e não deve ser oficializada, obrigando o cidadão a repeti-la, sob pena de ser excluído em exame oficial. Acrescente-se que as leis da Química e da Física tratam de juízos de realidade. Os juízos morais estão insertos no campo dos valores, indissoluvelmente ligados à liberdade de consciência.

A prova do ENEM apresentou questão valorativa.

O gênero é inseparável do sexo. Não existe gênero sem sexo. Este se define em três planos. Há um sexo genético, determinado pelos cromossomos x e y, definido no momento da concepção, que não é uma “construção sociocultural”. Outra dimensão é a somática, identificável pelo desenvolvimento biológico na vida intrauterina, caracterizado primariamente pelos órgãos produtores de gametas ou gônadas, que são os testículos, nos indivíduos masculinos, e ovário, nos sujeitos femininos. Este também, vale repetir, se define antes do nascimento. Não é sociocultural.

Deblaterar contra a dimensão natural dos sexos, por maior que seja o reducionismo histórico e cultural, é engodo ou o equívoco, evidenciado quando o culturalismo exacerbado subitamente se converte ao determinismo biológico, que é um reducionismo de sinal contrário, para fundamentar a tese segundo a qual a orientação sexual é determinada por fatores genéticos. Os dois reducionismos e determinismos, um social outro genético, são incompatíveis entre si. Mas o determinismo social é usado para defender a extinção do dualismo de gênero, configurando um experimentalismo de quem pretende usar a sociedade como cobaia de suas cogitações.

A dimensão cultural ou social do sexo e do gênero é um fenômeno social e cultural, com perdão da redundância. Este terceiro plano da definição de gênero e do sexo pode entrar em contradição com o sexo genético e com somático. Tal contradição, seja ela um determinismo genético, somático, um fenômeno histórico ou um conjunto no qual todos ou alguns destes fatores interagem, não deve ser um tema de Estado. Deve circunscrever-se aos estudos e debates científicos. As práticas sexuais das pessoas não atingem a alteridade, permanecendo no campo da vida íntima. Este é o campo das liberdades individuais, que é o campo da licitude. A licitude compreende aquilo que não é proibido nem obrigado aos cidadãos, sendo deixado à liberdade negocial entre sujeitos maiores, havidos como capazes.

As condutas da espécie em exame são toleradas. Tolerância é coexistência pacífica. Não deve ser confundida com apologia. Não cabe reprimenda nem diploma de honra ao mérito por práticas sexuais, sejam quais forem. O Estado não deve interferir nas questões de foro íntimo. O juízo moral a respeito da sexualidade deve permanecer livre. Não deve haver uma moral oficial. Estatizar a moral oprime a liberdade de consciência. Este não é um juízo de realidade, como aqueles dos exemplos da química e da física. Estamos tratando de juízos de valor.

O Direito e a moral, concebidos como círculos secantes, se distinguem justamente na parte dos juízos de valor e das condutas que não vão além do consenso entre os agentes. Concebidos como círculos concêntricos, o Direito ocupa apenas central do círculo corresponde a moral, deixando margem de liberdade para os cidadão ajuizarem a licitude conforme as suas consciências, salvo quando se viva em um Estado confessional.

A tolerância está no campo da licitude, território da liberdade negocial. Colocar em prova questões de consciência em concursos públicos é estatizar a moral, é coagir a consciência, é confundir a proteção de minorias com oficialização de um juízo de valor, é utilizar o argumento da tolerância como a obrigatoriedade de silenciar a crítica e a livre expressão do pensamento. Em síntese: é censura das consciências, é cerceamento da liberdade de expressão, prejudica pessoas por questões de consciência, oficializando teses polêmicas como se fossem leis científicas inquestionáveis.

A orquestração ideológica modifica o significado das palavras, como na ficção orwelliana em que a novilíngua era usada como arma de dominação, confunde palavras e conceitos. Juízos morais conservadores têm sido apresentado pelos arautos da revolução cultural como preconceito. Mas o prefixo “pre” indica a anteposição do juízo de valor ou de realidade à cognição do fato ou ato avaliado. Quando se formula um juízo de valor sobre fato ou ato do conhecimento de quem julga o temos é conceito, não um preconceito. Conceitos podem ser criticados e repudiados, podendo ser adjetivado, pelos revolucionários, como “reacionário”, “conservador”, “antiquado”, “quadrado” e tantos outros. Confundi-lo com preconceito, porém, é erro crasso ou mistificação.

Todos sabem o que sejam práticas homossexuais. Juízo de valor sobre o que se conhece é conceito, vale repetir, preconceito é juízo formulado sem o conhecimento do objeto da cognição. Juízo de reprovação a quaisquer condutas, quando conhecidas por quem emite o juízo, é conceito. Preconceito pode ser a intolerância contra quem emite tal juízo, porque nem sempre a dita intolerância parte de quem conhece as razões do citado juízo de reprovação.


Fortaleza, 31/10/15



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