domingo, 11 de agosto de 2019

CRÔNICA - Meu Pai (RV)


MEU PAI
Reginaldo Vasconcelos*


Lembro bem o tempo em que meu pai não era um homem, mas um semideus. Não viria dele a mínima fraqueza. Sua figura catalisava toda a força, toda a pujança, toda a deidade do Olimpo.

Minha jovem mãe punha-se comigo à margem da grande estrada escarlate, até que nela o ônibus, e dele meu pai, numa sequente expectativa.

O ônibus soava a buzina ainda distante, um som crescente que rasgava o silêncio, como a locomotiva da anti-saudade. Parava diante de nós, quente e fumegante. Meu pai era tão alto que seus cabelos crespos e tingidos de poeira ruiva pareciam tocar o céu.

Morávamos numa casa de fazenda, fraldada nas manhãs e nas tardes frescas, no meio de um sertão onde grassavam pega-pintos e melões caetanos. Meu pai trazia na bagagem todos os ares da cidade, além de frutas maduras, revistas coloridas e histórias para muito contar.

Vestia sempre “calças de briga” em brim curinga, e de seus bolsos saiam papeis misteriosos, todos riscados com sua letra. Naqueles bolsos também morava àquela época – hoje sei disso – o sacrifício do dinheiro ralo.

Belo, anelados em um de seus dedos ouro e rubi, ao toque de sua mão, pensava eu, tudo sarava, tudo resolvia. Bravo, capitaneava a morte das vacas, a apanha das oiticicas, a doença dos filhos dos caboclos.

Cirilo era preto e grande, mãos e pés gigantes, de palmilhar caminhos a vender pães com uma cesta nas costas. Sua antítese era o Paroara, este mínimo e branco, vendendo ovos empoleirado num jumento.
     
Uma filha do Cirilo adoeceu; muito grave o estado da negrinha. Permaneceu em nossa casa dois ou três dias, gemendo sua dor diuturnamente. Meu pai conseguiu transporta-la de avião em busca da cidade grande e do tratamento, mas ela ainda morreu. Deram-se vários casos, e meu pai empenhou-se em todos, sem, porém, parecer comover-se com um só deles.

Eu às vezes dormia nos pelos de seu peito, onde não havia males nem medos, e havia paz. Ali o sono mais pesado e o sonho mais solvo, sem susto e sem sobressalto.

Um dia o ônibus voltou com a gente: Juremal, Peixe Gordo, São Bernardo das Éguas Russas, Montemor da América... 

Tribuna do Ceará - Maio de 1981 


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