VIDA DE ANGÚSTIAS
Vianney Mesquita*
A rima é o coração que sai cantando em verso. (JOSÉ OITICICA – linguista, ramaturgo e poeta
parnasiano brasileiro. Oliveira-MG, 22.07.1882; Rio de Janeiro, 08.07.1957).
Ao
abominar as paupérrimas rimas denunciadas, com revolta latente, pelo
intelectual coestaduano Prof. Dr. Rui Martinho Rodrigues, em matéria publicada
ontem (12.03.2018) neste medium
eletrônico (Comédia, Sátira ou Tragédia?),
passo a proceder a ligeiro relato a respeito de um dos recursos de concordância
sonora, no âmbito da versificação em língua portuguesa.
Dos
muitos que há na taxinomia inserta nos compêndios de versificação – conforme
resulta o Tratado de Versificação (1930), de Olavo Bilac e Guimarães Passos, reporto-me
ao modelo de consonância poética, denominado rima encadeada, obtida pela
vinculação melodiosa do término de um verso ao interior do pé seguinte, a fim
de conceder bem mais estese à poesia, principalmente se múltiplos restarem
esses elegantes expedientes, hoje em dia, pouco (quase nunca) divisados na
produção dos “menestréis” da contemporaneidade.
Clássico
exemplo desta casta de conciliação de sons está na letra de Flores D’Alma, do lusitano Thomás
Ribeiro (1831-1901), inserido em Dom
Jaime, no qual se aviva a beleza composicional. Apreciemos.
As flores d’alma que se alteiam BELAS,
puras, SINGELAS, orvalhadas, vivas,
têm mais aroma e são mais FORMOSAS
que as pobres ROSAS de um jardim cativas.
Sol benfazejo lhes aquece a RAMA,
lúcida CHAMA, sem o ardor que mata;
banham-se as hastes, retratando as FRONTES,
límpidas FONTES em ramais de prata. [...].
Sobra, ainda, mais apreciável se o
compositor impuser mais encadeadas nas estrofes, como neste exercício, em que
todos os versos do soneto Vida de
Angústias – tanto nas quadras como nos trísticos – preenchem esse gradeado.
Sobejam,
porém, um interesse e quiçá uma desvantagem, declarada na sequência, e que, no
fim, no entanto, significa algo positivo, configurado no enriquecimento do
vocabulário do leitor, caso ele desconheça as unidades de ideias empregadas,
pois a necessidade o transporta ao dicionário.
Mencionado
proveito está no encanto das estrofes, rimadas no fim do vocábulo anterior, no
meio e no final do termo sequente, dotando o poema de uma magia inusitada,
porquanto em todas as catorze estâncias do mencionado soneto decassilábico
português ocorre essa triplicidade de correspondências sônicas.
Sucede,
todavia – e aí reside a aparente inconveniência - o fato de a profusão de
palavras consoadas impelir o autor à recorrência de expressões pouco
conhecidas, porém de registo e bom curso no código camoniano, quase obrigando o
consulente a visitar as obras lexicográficas, fato positivo, pois, conforme
expresso há pouco, aumenta o aparelhamento vocabular do consultante, fato a
amortecer a suposta desvantagem.
Decerto,
antes de reproduzir Vida de Angústias,
sem qualquer intento de desconsiderar as habilidades decodificadoras dos
visitantes deste escrito, bem assim do conjunto poético propriamente dito, impende
demonstrar o teor da dita peça em língua-prosa, oferecendo as significações de
assertos e dicções menos empregados nas manifestações da linguagem comum.
A
sugestão é de que leiam cada texto em prosa e o comparem com as estâncias
totalmente encadeadas.
O personagem inventado pelo autor, em viagem
paciente e solitária, como um tolo, vai a um local escondido. Então, ao chegar
a esse ambiente, se prende a esse destino (fadário) sob os variados (multifários)
sofrimentos de um doente.
Na
sequência, expressa que diminui (mermo; mermar é verbo = reduzo) sua mortalha (sudário)
representativa de sofrimento, a consequência primeira do empecilho, do
atrapalho (estafermo); ele é dispermo, isto é, com líquidos genitais masculinos
alterados, motivo por que não toma partido nem do sexo, conservando o corpo
modificado em volume e pressão nas condições de temperatura constante.
Ele é uma estrela-do-mar, um equinodermo
sofrendo (entra aqui uma como licença
poética para aplicar a palavra “equinodermo”). Por um instante, ao rir, se vai
sua dor.
No fecho, diz que o riso é um unguento, uma
pomada para a dor da alma cansada (lassa, lassada), bem como funciona como uma
saída (portada) do lamentável caso; é um medicamento lenitivo (lenimento) para
lutar, numa lida tão amargurada.
Vida de Angústias
Em mister paciente e solitário,
Feito um otário, sigo a lugar ermo;
E, neste termo, prendo-me ao fadário
Do multifário sofrer de um enfermo.
Eu mermo (diminuo) o meu sudário,
O corolário primaz do estafermo,
Pois sou dispermo, em sexo apartidário,
Recipiendário de corpo isotermo.
Equinodermo sob sofrimento;
Por um momento, ao rir, se esvai, passada,
Pois transitada a dor de tal tormento.
Esse unguento para a alma lassada
É uma portada ao lamentoso evento,
Um lenimento à lida amargurada.
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