quarta-feira, 7 de março de 2018

CONTO - Perfume (GJ)



PERFUME
Geraldo Jesuino*



– Será que Bento volta, meu Deus?

Da janela da casinha sustentada na ladeira do morro, olhos cravados na linha do azul que separa o céu do mar.

– Não tarda e a noite se assenta. O mar é severo com quem se perde nele, inda mais nessas horas de escuridão.

Nunca confia direito na experiência do pescador que espera com ansiedade. Daquele Bento que é, de muito, conhecido e respeitado pelo que sabe de pesca e, principalmente, pela maneira jeitosa de conviver com o mar. Sabe que deve reverência e atenção, mas trata o oceano como companheiro de vida e de jornada. Não agride e nem desdenha do poder do seu amigo, e jamais esquece o agradecimento nem o afago com o remo ou a mão deslizando na superfície da água.

A aflição de todos os dias a acompanha. Já faz tempo que mora ali, mas não se acostuma ao modo inquieto e fútil da sua comunidade, que se espreme entre o morro andrajoso e a cidade, lá embaixo, com sua pompa de ostentação e mesquinhez. Quase não sai de casa, apenas cuida do que tem e luta para aliviar, do jeito que pode, a vida difícil do seu homem.

Julga-se protegida por São Pedro, seu santo de devoção, bastião nas searas divinas, além de Nossa Senhora da Conceição Aparecida. O Santo pedra reina soberano ao lado da Santa Mãe, sobre a mesinha com toalha de croché.

As tantas voltas da fé se aferram no terço de contas escuras que envolve uma vela, sempre acesa.



– O mar é dono de tudo o que existe nele; é indesafiável. Não há peixe, por maior que seja, que resista as suas correntes; não há embarcação de tanto calado que não se transforme em brinquedo quando embalado pela fúria das ondas em revolução. O mar é o imperador das profundezas. E os homens, tão pequeninos, insistem em cortá-lo, retirar-lhe os peixes, desalinhar suas ondas e enfrentar a sua força, confiados na graça de Deus e de São Pedro. Só mesmo eles conseguem amparar tal atrevimento. Mesmo assim, de vez em quando, um é eleito para pagar o tributo e abrandar a mágoa do mar quando enfurecido. Aí, não tem salvação. As águas abraçam o escolhido e tiram dele o sopro de Deus. Não adianta se é arisco no trato da navegação e nem certeiro na arte da pesca, ou, até mesmo, se tem barco forte e atrevido. Nada adianta. O mar o devora e raras são as vezes que devolve o corpo para as encomendas e lágrimas dos seus. O gigante cumpre a sua missão a qualquer hora, mas se é noite, ai, ai. Aí é que não deixa o cristão se defender. Desvaria a cabeça dele, encanta a embarcação e embaralha o destino; se acaba tudo...

A noite já se aninha. As estrelas começam a encontrar os seus lugares no escuro mais distante. É hora de descansar, mas o mar não descansa.

Ali, embaixo, a cidade começa a adornar-se com seus enfeites noturnos. Como vaga-lumes os carros desenham o ritmo nervoso e rápido das ruas.  Num piscar de olhos, a noite se estabelece e a cidade fica acuada, espremida no meio da escuridão.

Ela quase nem nota. Seus olhos, cada vez mais apurados, esquadrinham o negrume imenso do mar; catam pequenas estrelas e imaginam o caminho da lua. As águas negras parecem tão quietas, tão dóceis, mas ela sabe que não é assim.

Seus dedos continuam, sem descanso, o ritual de acariciamento das contas do rosário.

– Deus do céu, protege o Bento! Ele é homem bom, trabalhador e, do jeito dele, temente ao Senhor. É um rude pescador, mas é dedicado...

E segue cantilenando suas preces. A panela chia na cozinha. Ela se apressa em atender às exigências do fogo. Hora de arrumar o jantar. Bento deve chegar com fome. Deve chegar...  Ele vai chegar, não é, São Pedro?... – Seu coração de aperta.

– Quase nunca ele tarda até essas horas. Só quando vai para o estádio ver seu time jogar. Aí chega mais tarde um tiquinho. Nada demais; mas nos dias de trabalho nunca passa das sete, e já são mais de oito e meia. Cadê Bento, meu Deus?

Ajeita a mesa, reserva para ele uma muda de roupa limpa e cheirosa, acerta a colcha da cama, pulveriza, com um orgulho quase inebriante, um pouco do seu perfume no quartinho.

– Ele gosta! Foi ele que lhe deu de presente no aniversário.

– Seu corpo vibra feliz e esperançoso.

Examina tudo, confere cada coisa, anda à toa, procura o que fazer... Volta ao santuário, perto da janela. Vasculha, sem descanso, o pretume do mundo. Coração disparado, lágrimas ameaçando. Dez horas.

– Deus do céu!

Nada resta a fazer senão rezar. Descer para ir atrás dele, numa hora dessas, não pode. Ele não quer. Diz que é perigoso e não aceita a cabroeira da praia olhando para a mulher dele. O rosto dela momentaneamente se acende com uma faísca de vaidade.

O relógio, no entanto, se encarrega de quebrar o encanto: onze e meia.

Agora as lágrimas não são mais prenúncios. Os lábios titubeiam as frases da reza. Os joelhos doem, mas ela insiste na sua contrição diante do padroeiro.

–Vai valer a pena. São Pedro cuidou de Jesus, Jesus o abençoou e o protegeu. Há de proteger o meu homem, que também é Pedro. Há de protegê-lo...

Três e meia da madrugada.

“Ó São Pedro, pedra viva da Igreja fundada por Jesus Cristo, Vós que fostes chamado pelo Senhor para ser pescador de homens e mulheres, vós que dissestes: ‘Senhor, a quem iremos? Pois só Tu tens palavras de vida eterna’, vinde em meu auxílio...”.

– Deus de misericórdia, traz meu homem de volta, são e em paz...

Os olhos tremem, o cansaço vence, o cochilo acode.

– Ei, mulher, acorda!

Os olhos se acendem, o corpo estremece e se atiça. Seu homem está em casa. Nunca é tarde.

Bento deposita na mesa o peixe que trouxera pendurado, em uma embira. Ela se atira ao seu encontro.

– Graças a Deus, meu filho, você está bem. Voltou pra mim, com a graça de São Pedro...

– Deixa de besteira, mulher! Vai dormir!

O carinho que ela esperava não lhe alcançou o corpo, mas seu olfato percebeu um odor forte de aguardente e outro, conhecido, chegado a flores, delicado, igual ao que ganhou dele, no aniversário...

Recolheu-se a uma alegria só dela, escondida e com gosto de soluço. Agradeceu a Deus e a São Pedro e foi cuidar daquele peixe já com jeito esquisito

Nota: Ilustração a cargo do autor do conto.






COMENTÁRIOS:

Maravilha de conto: Pedro velho enrolão, mulher amantíssima e autor industrioso, do primeiro estrato, em gênero tão difícil.

Parabéns, GJ.

Ah se ele escrevesse mais...!

Vianney Mesquita


................................................................


Um brilhante conto do confrade Jesuino. Recheado de amor, ansiedade, fé, e de uma boa dose de sofrimento. Na legítima linguagem dos contos, o texto nos passa a exata dimensão da vida de um pescador à mercê dos poderes do Poseidon, provavelmente numa legítima jangada cearense.


Paulo Ximenes


2 comentários:

  1. Maravilha de conto: Pedro velho enrolão, mulher amantíssima e autor industrioso, do primeira estrato, em gênero tão difícil.
    Parabéns, GJ.

    Ah se ele escrevesse mais ...!

    Vianney Mesquita

    ResponderExcluir
  2. Um brilhante conto do confrade Gesuíno. Recheado de amor, ansiedade, fé, e de uma boa dose de sofrimento. Na legítima linguagem dos contos, o texto nos passa a exata dimensão da vida de um pescador à mercê dos poderes do Posseidon, provavelmente numa legítima jangada cearense.

    ResponderExcluir