PERFUME
Geraldo Jesuino*
– Será que Bento volta, meu
Deus?
Da janela da casinha
sustentada na ladeira do morro, olhos cravados na linha do azul que separa o
céu do mar.
– Não tarda e a noite se
assenta. O mar é severo com quem se perde nele, inda mais nessas horas de
escuridão.
Nunca confia direito na
experiência do pescador que espera com ansiedade. Daquele Bento que é, de
muito, conhecido e respeitado pelo que sabe de pesca e, principalmente, pela
maneira jeitosa de conviver com o mar. Sabe que deve reverência e atenção, mas
trata o oceano como companheiro de vida e de jornada. Não agride e nem desdenha
do poder do seu amigo, e jamais esquece o agradecimento nem o afago com o remo
ou a mão deslizando na superfície da água.
A aflição de todos os dias a
acompanha. Já faz tempo que mora ali, mas não se acostuma ao modo inquieto e
fútil da sua comunidade, que se espreme entre o morro andrajoso e a cidade, lá
embaixo, com sua pompa de ostentação e mesquinhez. Quase não sai de casa, apenas
cuida do que tem e luta para aliviar, do jeito que pode, a vida difícil do seu
homem.
Julga-se protegida por São
Pedro, seu santo de devoção, bastião nas searas divinas, além de Nossa Senhora
da Conceição Aparecida. O Santo pedra reina soberano ao lado da Santa Mãe,
sobre a mesinha com toalha de croché.
As tantas voltas da fé se
aferram no terço de contas escuras que envolve uma vela, sempre acesa.
– O mar é dono de tudo o que
existe nele; é indesafiável. Não há peixe, por maior que seja, que resista as
suas correntes; não há embarcação de tanto calado que não se transforme em
brinquedo quando embalado pela fúria das ondas em revolução. O mar é o
imperador das profundezas. E os homens, tão pequeninos, insistem em cortá-lo,
retirar-lhe os peixes, desalinhar suas ondas e enfrentar a sua força, confiados
na graça de Deus e de São Pedro. Só mesmo eles conseguem amparar tal
atrevimento. Mesmo assim, de vez em quando, um é eleito para pagar o tributo e
abrandar a mágoa do mar quando enfurecido. Aí, não tem salvação. As águas
abraçam o escolhido e tiram dele o sopro de Deus. Não adianta se é arisco no
trato da navegação e nem certeiro na arte da pesca, ou, até mesmo, se tem barco
forte e atrevido. Nada adianta. O mar o devora e raras são as vezes que devolve
o corpo para as encomendas e lágrimas dos seus. O gigante cumpre a sua missão a
qualquer hora, mas se é noite, ai, ai. Aí é que não deixa o cristão se
defender. Desvaria a cabeça dele, encanta a embarcação e embaralha o destino;
se acaba tudo...
A noite já se aninha. As
estrelas começam a encontrar os seus lugares no escuro mais distante. É hora de
descansar, mas o mar não descansa.
Ali, embaixo, a cidade começa
a adornar-se com seus enfeites noturnos. Como vaga-lumes os carros desenham o
ritmo nervoso e rápido das ruas. Num
piscar de olhos, a noite se estabelece e a cidade fica acuada, espremida no
meio da escuridão.
Ela quase nem nota. Seus
olhos, cada vez mais apurados, esquadrinham o negrume imenso do mar; catam
pequenas estrelas e imaginam o caminho da lua. As águas negras parecem tão
quietas, tão dóceis, mas ela sabe que não é assim.
Seus dedos continuam, sem
descanso, o ritual de acariciamento das contas do rosário.
– Deus do céu, protege o
Bento! Ele é homem bom, trabalhador e, do jeito dele, temente ao Senhor. É um
rude pescador, mas é dedicado...
E segue cantilenando suas preces. A panela chia na cozinha. Ela se apressa
em atender às exigências do fogo. Hora de arrumar o jantar. Bento deve chegar
com fome. Deve chegar... Ele vai chegar,
não é, São Pedro?... – Seu coração de aperta.
– Quase nunca ele tarda até
essas horas. Só quando vai para o estádio ver seu time jogar. Aí chega mais
tarde um tiquinho. Nada demais; mas nos dias de trabalho nunca passa das sete,
e já são mais de oito e meia. Cadê Bento, meu Deus?
Ajeita a mesa, reserva para
ele uma muda de roupa limpa e cheirosa, acerta a colcha da cama, pulveriza, com
um orgulho quase inebriante, um pouco do seu perfume no quartinho.
– Ele gosta! Foi ele que lhe
deu de presente no aniversário.
– Seu corpo vibra feliz e
esperançoso.
Examina tudo, confere cada
coisa, anda à toa, procura o que fazer... Volta ao santuário, perto da janela.
Vasculha, sem descanso, o pretume do mundo. Coração disparado, lágrimas
ameaçando. Dez horas.
– Deus do céu!
Nada resta a fazer senão
rezar. Descer para ir atrás dele, numa hora dessas, não pode. Ele não quer. Diz
que é perigoso e não aceita a cabroeira da praia olhando para a mulher dele. O
rosto dela momentaneamente se acende com uma faísca de vaidade.
O relógio, no entanto, se
encarrega de quebrar o encanto: onze e meia.
Agora as lágrimas não são mais
prenúncios. Os lábios titubeiam as frases da reza. Os joelhos doem, mas ela
insiste na sua contrição diante do padroeiro.
–Vai valer a pena. São Pedro
cuidou de Jesus, Jesus o abençoou e o protegeu. Há de proteger o meu homem, que
também é Pedro. Há de protegê-lo...
Três e meia da madrugada.
“Ó São Pedro, pedra viva da
Igreja fundada por Jesus Cristo, Vós que fostes chamado pelo Senhor para ser
pescador de homens e mulheres, vós que dissestes: ‘Senhor, a quem iremos? Pois
só Tu tens palavras de vida eterna’, vinde em meu auxílio...”.
– Deus de misericórdia, traz
meu homem de volta, são e em paz...
Os olhos tremem, o cansaço
vence, o cochilo acode.
– Ei, mulher, acorda!
Os olhos se acendem, o corpo
estremece e se atiça. Seu homem está em casa. Nunca é tarde.
Bento deposita na mesa o peixe
que trouxera pendurado, em uma embira. Ela se atira ao seu encontro.
– Graças a Deus, meu filho,
você está bem. Voltou pra mim, com a graça de São Pedro...
– Deixa de besteira, mulher!
Vai dormir!
O carinho que ela esperava não
lhe alcançou o corpo, mas seu olfato percebeu um odor forte de aguardente e
outro, conhecido, chegado a flores, delicado, igual ao que ganhou dele, no
aniversário...
Recolheu-se a uma alegria só
dela, escondida e com gosto de soluço. Agradeceu a Deus e a São Pedro e foi
cuidar daquele peixe já com jeito esquisito.
Nota: Ilustração a cargo do autor do conto.
COMENTÁRIOS:
Maravilha
de conto: Pedro velho enrolão, mulher amantíssima e autor industrioso, do
primeiro estrato, em gênero tão difícil.
Parabéns,
GJ.
Ah se ele escrevesse mais...!
Vianney Mesquita
................................................................
Um brilhante conto do confrade Jesuino.
Recheado de amor, ansiedade, fé, e de uma boa dose de sofrimento. Na legítima
linguagem dos contos, o texto nos passa a exata dimensão da vida de um pescador
à mercê dos poderes do Poseidon, provavelmente numa legítima jangada cearense.
Paulo Ximenes
Maravilha de conto: Pedro velho enrolão, mulher amantíssima e autor industrioso, do primeira estrato, em gênero tão difícil.
ResponderExcluirParabéns, GJ.
Ah se ele escrevesse mais ...!
Vianney Mesquita
Um brilhante conto do confrade Gesuíno. Recheado de amor, ansiedade, fé, e de uma boa dose de sofrimento. Na legítima linguagem dos contos, o texto nos passa a exata dimensão da vida de um pescador à mercê dos poderes do Posseidon, provavelmente numa legítima jangada cearense.
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