segunda-feira, 19 de março de 2018

ARTIGO - Uma Vítima Especial (RMR)



UMA VÍTIMA ESPECIAL
Rui Martinho Rodrigues*


Uma vítima de crime brutal, entre milhares, sacudiu o País. Era mulher, lésbica, negra e pobre. Também era militante, e isso abalou a Nação. Até o STF introduziu o fato na pauta, saindo de suas funções para fazer uma manifestação política, quando ministros se pronunciaram, afirmando justo repúdio em face do acontecimento. Autoridades de todos os “calibres” vieram a público reverberar contra os assassinos.

Logo as redes sociais encheram-se de comentários. Uns expressam revolta pela barbaridade, associando o crime à PM; protestando contra o genocídio dos pobres e afrodescendentes; contra as políticas repressivas supostamente dirigidas aos moradores da periferia; contra a repressão ao tráfico de entorpecentes (para defender a legalização das drogas não precisaria atacar os órgãos de segurança); clamando por políticas sociais e até imputando o crime aos governantes. 

Outros ressaltam que o destaque dado ao crime contrasta com a indiferença diante das dezenas de vítimas de homicídios. Fotografias de mulheres negras e pobres, que tiveram suas vidas ceifadas sem que autoridades, imprensa e militantes dessem atenção ao fato, estão circulando. São retratos de mulheres da PM do Rio de Janeiro assassinadas tão cruelmente quanto a vereadora.

É gravíssimo que uma pessoa seja assassinada por ser ativista política; por ser mulher, pobre, lésbica ou pela cor da pele. Mas a diferença gritante dada ao caso só se explica pelo ativismo, não por virtude cívica, pois o trucidamento de pessoas com as mesmas características, mas sem a militância, tornou-se tragicamente banal. Mas seria mesmo pelo ativismo? A vítima era uma pessoa pública de grande notoriedade. Criminosos habitam nas sombras. Matar pessoas notórias atrai as luzes, chama atenção, contraria a lógica da bandidagem.

Seria o crime um desafio aberto à intervenção federal no Rio de Janeiro? Neste caso, por que a vítima seria uma vereadora contrária à intervenção? Por que não seria alguém ligado à política do governo? Autoridades e políticos geralmente são poupados pela bandidagem, seja para não atrair as luzes, que por sua vez atraem investigações, seja porque eles entendem que o embate de agente público com delinquente não é pessoal.

A morte de policiais e demais autoridades se dá nos confrontos, situação encarada como “acidente de trabalho”, que não deixa mágoas, porque cada um estava no seu papel. A morte de autoridades ocorre quando um dos lados quebra a lógica do submundo. A juíza assassinada em Niterói namorava um soldado integrante de uma facção rival daquela que ela condenou ou estava em vias de condenar, trabalhando até altas horas no fórum para isso.

A vereadora era eleita no território dominado por facção criminosa, satanizava a polícia, atribuía a condição de vítima aos bandidos em cujo território era eleita. A “banda podre” da polícia pode ter praticado o crime. Mas uma facção rival ou uma milícia também podem ser responsáveis.

Repudiar o crime é certo. Investigar e punir os autores é obrigação das autoridades. A paz social depende do monopólio da violência e do controle do território pelo Estado. Satanizar o trabalho de contenção do crime; praticar culto à personalidade da vereadora que se elegia no território dominado por facção criminosa é um grave erro. Alegar para isso a cor da pele e a condição de mulher, quando outras mulheres negras e pobres são assassinadas sem que haja a menor repercussão é má-fé ou ingenuidade.


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