domingo, 18 de março de 2018

ARTIGO - Releitura do livro de Antônio de Araújo (VM)


MEMÓRIAS ESPARSAS
(Releitura)
Vianney Mesquita*


A sorte serve-se, às vezes, dos nossos defeitos para nos elevar. (FRANÇOIS, Duque de La Rochefoucauld – *Paris, 15.09.1613; 17.03.1680).


Certamente não assiste razão a quem cogita na ideia de uma humanidade dispensada de toda a doença, na ideal fruição de saúde.

Contrariamente ao pretendido pela OMS, ao prescrever ausência patológica total e gozo de bem-estar completo, sempre haverá um senão, seja um ai! no corpo ou mesmo um ui! na alma. Normalmente ocorre a afluência dos dois, via de regra multiplicados nos seus influxos negativos, ao residirem, sem nosso “habite-se”, tanto em meio corporal quanto no círculo anímico.

Este ponto é objeto de acuradas reflexões por parte de preclaras autoridades da Ciência Médica e seus esgalhos disciplinares e afins, merecendo ressalto o psiquiatra e pioneiro da Neurologia, facultativo estadunidense Walter Riese [Berlin, 30.06.1890; Richmond (Virgínia), 1976].

Em estudo de 1950 – Princípios de Neurologia – à Luz da História e seu Uso Atual, como assinala aquele expoente, uma perfeita higidez física e mental faria menos rica a raça de hoje, porquanto um imenso campo de atividade lhe seria poupado e recusado.
 
Na intelecção de Riese, uma pessoa idealmente sã jamais nos ensinaria tudo de sua capacidade, até seu ponto maior de resistência, quando as moléstias – corpóreas e psíquicas – acham de acometê-la.

Entre vários exemplos reproduzidos pela História, sob tal aspecto, remeto-me a uma leitura feita na infanto-adolescência (a propalada aborrecência), salvante lapso rememorativo, na Nova Seleta, (foi ali, sim!), organizada por Filgueiras Sampaio, sendo oportuno pinçar o caso de Helen Adams Keller (1880-1968), do qual procederei a relato ligeiro um pouco à frente, cotejando-a com Araújo, cujo Memórias Esparsas termino de reler.

Aqui, mais parecido com um colchete ou até uma chave, mas sem perder o liame com as mencionadas defeituações materiais e da psique, peço a vênia do leitor para fazer um parêntese, a fim de me reportar à memória, cuja falta representa manifestação patológica peculiar, nas mais das vezes, à idade cronológica, sendo algo não muito fácil de entendimento, nomeadamente por parte de leigos, conforme sou.

Nem todas as pessoas, evidentemente, são favorecidas com a propriedade de preservar e trazer à evocação certas situações de consciência passadas e tudo aquilo quanto a elas está associado. Há algum tempo, e.g., a pouco e pouco me vinha o lapso de memória, o conhecidíssimo branco. Já agora, entretanto, ao descender o segundo degrau dos ’70, me aportam muitas e muitas dessas alvuras escurecedoras da lembrança, obstando-me o processamento dos dados.

Em sentença lapidar, de quando em vez repetida, Napoleão Bonaparte exprimiu: cabeça sem memória, cidadela sem guarnição. Entrementes, o escritor alemão, apreciado produtor do livro Titã e Héspero, João Paulo Frederico Richter, exprimiu a memória como o único paraíso de onde não se pode ser expulso.

A vida e a literatura estão, por conseguinte, pontilhadas de remissões a este conceito, e não somente renomeados autores, em todas as línguas literárias, registaram suas lembranças e as legaram à posteridade, pois, mesmo não sendo escritores de ofício, seres dotados desta faculdade, em quantidade considerável, assinalam, à farta, sua existência por intermédio da pontoação de suas recordações, editadas em receptáculo de papel e, hoje, em suportes eletrônicos.

A evocação, contudo – é cediço – constitui circunstância complicada, supondo a manutenção de expressões anteriores, sua reprodução e revivescimento, bem como a própria localização.

A lembrança, decerto, não depende unicamente da mudança de elementos nervosos, no entanto, reclama ligações dinâmicas entre estes. A associação de tais componentes, quanto mais se repetir, tanto mais a lembrança é preservada. De tal sorte, este talvez seja o fenômeno explicativo de serem as evocações mais velhas as derradeiras a aparecer, pela via fenomênica da regressão.

Evidentemente, por ser fora de propósito, não alimento a tenção de ensaiar nesta seara, na qual sou insipiente, pois contraposta aos meus assuntos de exame. Nada obsta observar, entretanto, a necessidade de a imagem recordada se confirmar como algo já conhecido. De tal maneira, impõe-se distingui-la das situações atuais e dos registos fictícios da fantasia, do devaneio. A lembrança explica-se pelo hábito, mas possui vezos diferentes, conforme são as diversidades individuais. Daí se dizer memória visual, motriz, olfativa, auditiva e gustativa – de acordo com o quinteto do sistema sensorial.

Fechada a digressão, volto a Hellen Keller, fecunda escritora dos EEUU, a quem um ataque de escarlatina tolheu a visão e subtraiu a audição, aos 19 meses e, no entanto, sob os cuidados de Anne Sullivan (1866-1936), aprendeu muitas línguas e História Latina, havendo escrito vários livros da mais distinta verve criadora, pintando paisagens e descrevendo sons. Com sua força de fé, revelada na autobiografia A História da minha Vida, disse haver criado seu mundo, pois, “[...] com visão, fiz para mim os dias e as noites, divisando nas nuvens o arco-íris e, para mim, a própria noite se povoou de estrelas”[...].

Transpondo, com efeito, todo esse balanço negativo, Helen Keller demonstrou na doença, imposta como um fado, a possível vertente perpétua de enriquecimento da Natureza. Daí a opinião de Walter Riese, para quem a noção do homem, do qual moléstia e padecimento estejam ausentes, será sempre imperfeita.

Ao proceder a um cotejamento de HK com Antônio de Araújo, autor de Memórias Esparsas – Flagrantes da Vida Real (EDUECE), cuja releitura agora concluí, vejo que ele foi guardado pelo desvelo de sua família. Enriqueceu-lhe o caráter o fato de haver sobrelevado as limitações físicas, pois não teve a ventura de, na realidade do Tio Sam, deparar uma Anne Sullivan a lhe seguir os passos, alumiar-lhe a senda vital e a ele conceder os favores permitidos a Helen Keller, tornada paradigma de superação.

Nem por isso, todavia, deixou de se crer propício à vida, dignitário de sua condição humana, admiravelmente revelada nos exemplos da peleja, resignação e vitória, bem no espírito do pensamento de Walter Riese, consoante é expresso no esforço de açular a memória e ajuntar seus alfarrábios para reuni-los em um volume, denotativo do seu preparo intelectual, na constância da autodidaxia, sem ocorrer sub tegmini fagi da escola formal e com seu ror de limitações.

Autodidata e na solidão de suas faltas corporais, porém, alcançou mais este galardão, o qual, distante de ser um triunfo de Pirro, aflui à opinião rieseana, cuja ideia de homem, sem neste haver doença nem sofrimento, será perpetuamente inexata.

Antônio de Araújo, nesta seleção de muito bem trabalhados escritos, demonstra, à exuberância, a aptidão humana do sobrepujamento, malgrado os desprovimentos orgânicos, na conquista de um de seus anelos desde há muito acalentado, fazendo-o – e isto é o mais relevante – de modo inteligente, tanto no conteúdo como no formato, legando-nos uma peça literária e artística de indiscutível valor, produzida no recôndito de sua boa alma, nos escaninhos de um coração referto de amor.






NOTA DO EDITOR 


Não debite o leitor desavisado ao articulista, nem ao revisor da matéria, erro ortográfico de um, ou negligência do outro, ao encontrar no texto palavras grafadas de maneiras estranháveis. Elas existem, e têm acepção própria. Vianney Mesquita é um profundo conhecedor do idioma pátrio, dono de um vocabulário extenso e de uma larga sinonímia, o que o habilita a expressar suas ideias com grande facilidade, beleza e precisão. A propósito, ele avisa que nesse texto não se vale da partícula “que”, sem qualquer prejuízo de clareza, difícil exercício redacional que ele aprecia executar.



COMENTÁRIO

O que escrever Vianney Mesquita sobre um culto e belo texto como este, que nos brinda a todos? 

A releitura que ele faz de Memórias Esparsasdatilografado (ainda existe a palavra!) apenas com o dedo por Antônio de Araújo, e que ora nos demonstra neste texto dissertativo sobre a obra referida, remete o leitor, mesmo o mais familiarizado com a literatura, a um profundo e reflexivo mergulho ao prazeroso, porém, dificílimo ofício de interpretação textual e lapidação dos termos, com o devido e obrigatório respeito à língua pátria.

Sem o habitual pedantismo dos que se nos mostram como pretensos cultores da língua em seu sentido formal, o autor nos demonstra toda a estese de um escrito esmeradamente produzido, onde cada expressão parece ter sido cuidadosamente esculpida por um clássico e renomeado artesão do vernáculo.

Ao transpor as várias vertentes literárias, cotejando os mais diversos liames que identifica na obra, com os autores clássicos a que faz referência na revisitação de mais um trabalho de vigor da Editora da UECE, Vianney nos faz aguçar a todos – e mesmo a um jejuno como eu – um visceral e incontido desejo de ler o autor e sua produção Memórias Esparsas.

Arnaldo Santos

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