MEMÓRIAS
ESPARSAS
(Releitura)
Vianney
Mesquita*
A sorte serve-se, às vezes, dos nossos defeitos
para nos elevar. (FRANÇOIS, Duque de La Rochefoucauld – *Paris, 15.09.1613;
17.03.1680).
Certamente não assiste razão a quem cogita na
ideia de uma humanidade dispensada de toda a doença, na ideal fruição de saúde.
Contrariamente ao pretendido pela OMS, ao prescrever ausência patológica
total e gozo de bem-estar completo, sempre haverá um senão, seja um ai! no corpo ou mesmo um ui! na alma. Normalmente ocorre a
afluência dos dois, via de regra multiplicados nos seus influxos negativos, ao
residirem, sem nosso “habite-se”, tanto em meio corporal quanto no círculo
anímico.
Este ponto é objeto de acuradas reflexões por
parte de preclaras autoridades da Ciência Médica e seus esgalhos disciplinares
e afins, merecendo ressalto o psiquiatra e pioneiro da Neurologia, facultativo
estadunidense Walter Riese [Berlin, 30.06.1890; Richmond (Virgínia), 1976].
Em estudo de 1950 – Princípios de Neurologia – à Luz da História e seu Uso Atual, como
assinala aquele expoente, uma perfeita higidez física e mental faria menos rica
a raça de hoje, porquanto um imenso campo de atividade lhe seria poupado e
recusado.
Na intelecção de Riese, uma pessoa idealmente
sã jamais nos ensinaria tudo de sua capacidade, até seu ponto maior de
resistência, quando as moléstias – corpóreas e psíquicas – acham de acometê-la.
Entre vários exemplos reproduzidos pela História,
sob tal aspecto, remeto-me a uma leitura feita na infanto-adolescência (a
propalada aborrecência), salvante
lapso rememorativo, na Nova Seleta,
(foi ali, sim!), organizada por Filgueiras Sampaio, sendo oportuno pinçar o
caso de Helen Adams Keller
(1880-1968), do qual procederei a relato ligeiro um pouco à frente, cotejando-a
com Araújo, cujo Memórias Esparsas
termino de reler.
Aqui, mais parecido com um colchete ou até uma
chave, mas sem perder o liame com as mencionadas defeituações materiais e da
psique, peço a vênia do leitor para fazer um parêntese, a fim de me reportar à memória, cuja falta representa
manifestação patológica peculiar, nas mais das vezes, à idade cronológica,
sendo algo não muito fácil de entendimento, nomeadamente por parte de leigos,
conforme sou.
Nem todas as pessoas, evidentemente, são
favorecidas com a propriedade de preservar e trazer à evocação certas situações
de consciência passadas e tudo aquilo quanto a elas está associado. Há algum
tempo, e.g., a pouco e pouco me vinha
o lapso de memória, o conhecidíssimo branco.
Já agora, entretanto, ao descender o segundo degrau dos ’70, me aportam muitas
e muitas dessas alvuras escurecedoras da lembrança, obstando-me o processamento
dos dados.
Em sentença lapidar, de quando em vez
repetida, Napoleão Bonaparte exprimiu: cabeça
sem memória, cidadela sem guarnição. Entrementes, o escritor alemão,
apreciado produtor do livro Titã e
Héspero, João Paulo Frederico Richter,
exprimiu a memória como o único paraíso de onde não se pode ser expulso.
A vida e a literatura estão, por conseguinte,
pontilhadas de remissões a este conceito, e não somente renomeados autores, em
todas as línguas literárias, registaram suas lembranças e as legaram à posteridade,
pois, mesmo não sendo escritores de ofício, seres dotados desta faculdade, em
quantidade considerável, assinalam, à farta, sua existência por intermédio da
pontoação de suas recordações, editadas em receptáculo de papel e, hoje, em
suportes eletrônicos.
A evocação, contudo – é cediço – constitui
circunstância complicada, supondo a manutenção de expressões anteriores, sua
reprodução e revivescimento, bem como a própria localização.
A lembrança, decerto, não depende unicamente
da mudança de elementos nervosos, no entanto, reclama ligações dinâmicas entre
estes. A associação de tais componentes, quanto mais se repetir, tanto mais a
lembrança é preservada. De tal sorte, este talvez seja o fenômeno explicativo
de serem as evocações mais velhas as derradeiras a aparecer, pela via
fenomênica da regressão.
Evidentemente, por ser fora de propósito, não
alimento a tenção de ensaiar nesta seara, na qual sou insipiente, pois
contraposta aos meus assuntos de exame. Nada obsta observar, entretanto, a
necessidade de a imagem recordada se confirmar como algo já conhecido. De tal
maneira, impõe-se distingui-la das situações atuais e dos registos fictícios da
fantasia, do devaneio. A lembrança explica-se pelo hábito, mas possui vezos
diferentes, conforme são as diversidades individuais. Daí se dizer memória
visual, motriz, olfativa, auditiva e gustativa – de acordo com o quinteto do
sistema sensorial.
Fechada a digressão, volto a Hellen Keller, fecunda
escritora dos EEUU, a quem um ataque de escarlatina tolheu a visão e subtraiu a
audição, aos 19 meses e, no entanto, sob os cuidados de Anne Sullivan (1866-1936), aprendeu muitas línguas e História
Latina, havendo escrito vários livros da mais distinta verve criadora, pintando
paisagens e descrevendo sons. Com sua força de fé, revelada na autobiografia A História da minha Vida, disse haver
criado seu mundo, pois, “[...] com visão, fiz para mim os dias e as noites,
divisando nas nuvens o arco-íris e, para mim, a própria noite se povoou de
estrelas”[...].
Transpondo, com efeito, todo esse balanço
negativo, Helen Keller demonstrou na doença, imposta como um fado, a possível
vertente perpétua de enriquecimento da Natureza. Daí a opinião de Walter Riese,
para quem a noção do homem, do qual moléstia e padecimento estejam ausentes,
será sempre imperfeita.
Ao proceder a um cotejamento de HK com Antônio
de Araújo, autor de Memórias Esparsas –
Flagrantes da Vida Real (EDUECE), cuja releitura agora concluí, vejo que ele
foi guardado pelo desvelo de sua família. Enriqueceu-lhe o caráter o fato de
haver sobrelevado as limitações físicas, pois não teve a ventura de, na
realidade do Tio Sam, deparar uma Anne Sullivan a lhe seguir os passos,
alumiar-lhe a senda vital e a ele conceder os favores permitidos a Helen
Keller, tornada paradigma de superação.
Nem por isso, todavia, deixou de se crer
propício à vida, dignitário de sua condição humana, admiravelmente revelada nos
exemplos da peleja, resignação e vitória, bem no espírito do pensamento de
Walter Riese, consoante é expresso no esforço de açular a memória e ajuntar
seus alfarrábios para reuni-los em um volume, denotativo do seu preparo
intelectual, na constância da autodidaxia, sem ocorrer sub tegmini fagi da escola formal e com seu ror de limitações.
Autodidata e na solidão de suas faltas
corporais, porém, alcançou mais este galardão, o qual, distante de ser um
triunfo de Pirro, aflui à opinião rieseana, cuja ideia de homem, sem neste
haver doença nem sofrimento, será perpetuamente inexata.
Antônio de Araújo, nesta seleção de muito bem
trabalhados escritos, demonstra, à exuberância, a aptidão humana do
sobrepujamento, malgrado os desprovimentos orgânicos, na conquista de um de
seus anelos desde há muito acalentado, fazendo-o – e isto é o mais relevante –
de modo inteligente, tanto no conteúdo como no formato, legando-nos uma peça
literária e artística de indiscutível valor, produzida no recôndito de sua boa
alma, nos escaninhos de um coração referto de amor.
NOTA DO EDITOR
NOTA DO EDITOR
Não debite o leitor desavisado ao articulista, nem ao revisor da matéria, erro ortográfico de um, ou negligência do outro, ao encontrar no texto palavras grafadas de maneiras estranháveis. Elas existem, e têm acepção própria. Vianney Mesquita é um profundo conhecedor do idioma pátrio, dono de um vocabulário extenso e de uma larga sinonímia, o que o habilita a expressar suas ideias com grande facilidade, beleza e precisão. A propósito, ele avisa que nesse texto não se vale da partícula “que”, sem qualquer prejuízo de clareza, difícil exercício redacional que ele aprecia executar.
COMENTÁRIO
O que
escrever Vianney Mesquita sobre um culto e belo texto como este, que
nos brinda a todos?
A releitura que
ele faz de Memórias Esparsas, datilografado (ainda
existe a palavra!) apenas com o dedo por Antônio de Araújo, e que ora nos
demonstra neste texto dissertativo sobre a obra referida, remete o leitor,
mesmo o mais familiarizado com a literatura, a um profundo e reflexivo mergulho
ao prazeroso, porém, dificílimo ofício de interpretação textual e lapidação dos
termos, com o devido e obrigatório respeito à língua pátria.
Sem o habitual
pedantismo dos que se nos mostram como pretensos cultores da língua em seu
sentido formal, o autor nos demonstra toda a estese de um escrito esmeradamente
produzido, onde cada expressão parece ter sido cuidadosamente esculpida por um
clássico e renomeado artesão do vernáculo.
Ao transpor as
várias vertentes literárias, cotejando os mais diversos liames que identifica
na obra, com os autores clássicos a que faz referência na revisitação de mais
um trabalho de vigor da Editora da UECE, Vianney nos faz aguçar a todos – e
mesmo a um jejuno como eu – um visceral e incontido desejo de ler o autor e sua
produção Memórias Esparsas.
Arnaldo
Santos
Nenhum comentário:
Postar um comentário