sábado, 24 de março de 2018

ARTIGO - Ainda Há Jornalistas em Berlim (RV)



AINDA HÁ
JORNALISTAS
EM BERLIM*
Reginaldo Vasconcelos**



O tempo tem produzido em minha memória impressões de todos os gêneros” – teria dito Rui Barbosa. De fato, não se espera viver para testemunhar passagens tão burlescas da história, de tal modo que muita vez a pessoa nem se espanta de pronto porque o absurdo demora a se fazer perceber e acreditar.

Um advogado de renome vai à tribuna do Supremo Tribunal fazer a sustentação da defesa de uma petição de habeas corpus que impetrou, e, assumindo o mais notório cacoete do próprio paciente (sua glória e sua perdição), faz um discurso de camelô, tão convincente quanto falso.

Alega que o mundo vive uma crise autoritária, quando, exatamente ao contrário, o que a humanidade experimenta no momento é um déficit de genuína autoridade, instalada a anarquia e a atividade de organizações irregulares, em todos os níveis sociais e políticos do Planeta.

Contraditoriamente, o causídico medalhão exemplifica com a prisão recente de um ex-presidente francês, medida absolutamente legal em seu país, onde, inclusive, se inicia o cumprimento das penas logo após a condenação confirmada em tribunal – exatamente aquilo que no mérito contesta ele seja praticado no Brasil.

Dessa forma, em favor da sua tese, o advogado faz uso do principal argumento que se teria contra ela – quando um país que “exportou democracia” dá o exemplo, mandando prender um ex-presidente por mera suspeita de corrupção eleitoral, de forma justa, institucional e republicana.

Acontece que aquilo que ele evidencia estar ocorrendo lá na França – exemplo que caberia ser usado contra ele – é tudo o que ele pretende evitar que aconteça com um ex-presidente brasileiro, este com culpa formada, já condenado em duas instâncias da Justiça.

Por isso se diz que o principal atributo do diabo é a mentira, com a qual ele confunde a boa-fé das almas pias, disfarçando o mal em virtude, se fazendo passar por puro e bom, vítima da injustiça universal, configurando o que diz Caetano Veloso na letra da canção: “Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”.

O demônio espalha a luz de Lúcifer de forma encandecente e obliterante, até que tudo se revele uma grande farsa demoníaca, capaz de levar para o caos dos infernos os cacos das boas intenções desvirtuadas – exatamente como tem acontecido com a massa eleitoral nos últimos episódios da República Brasileira.

No caso, como faria o velho fute, o referido advogado não traz a verdade límpida em seu exemplo, ao afirmar com grande desfaçatez que o tal presidente de França fora eleito por duas vezes, o que sabe não proceder, entregando assim o traiçoeiro rabo cúspide para que alguém o pegasse contestando, e ele então tivesse oportunidade de dizer com galhardia: “Pois o Lula foi!”.

Mas – e aqui vem outra surpresa para siderar as mentes sãs – a Rede Globo de TV de repente se levanta para evidenciar os descalabros da defesa de Lula, articulada da tribuna do Supremo, imiscuindo-se ela no processo para tentar desnudar o rei calhorda, alvejando o seu patrono, desmentindo-o e instando-o a explicar suas inverdades.

O jornalismo da emissora por fim largou de mão o assassinato da vereadora do PSOL, agora babando pelo canto da boca para empurrar Lula para a cadeia, quando até bem pouco tempo se juntava à vindita das esquerdas contra Temer – um anjo decaído para o petismo – e um santo para a direita, redimido na epifania de Saulo na Estrada de Damasco.

Ao mesmo tempo, uma outra grande rede de TV gravou o próprio Lula em sacrificante comício pelo Rio Grande do Sul, a imprecar contra os agropecuaristas gaúchos que o expungiram de diversos municípios, dizendo que estes deveriam tratar os seus trabalhadores tão bem quanto tratam os seus cavalos.

Em seguida, os repórteres entrevistaram um criador de cavalos local asseverando que todos os seus empregados são devidamente registrados sob todos os preceitos das normas laborais, até porque o sucesso do seu negócio tem estreita dependência desses profissionais cavalariços.

O resumo da ópera na conclusão desse episódio é a constatação de que o Supremo Tribunal Federal se põe de cócoras, politicamente contaminado e dividido por ferozes dissenções – e a grande imprensa já não tem estômago para ser imparcial, saindo em defesa da cidadania do País.


Expõe a Nação a grande insegurança jurídica aquele “Augusto Tribunal”, ao claudicar nas suas decisões, ao nutar entre interesses subalternos por ele mesmo admitidos, assacados por uns ministros contra os outros – e quem somos nós para contestar suas invectivas pessoais, de parte a parte asseveradas?

Na verdade, o Supremo Tribunal – ignorando na época as proporções que a corrupção nacional alcançaria no pelourinho da Justiça, e despercebido dos imensos interesses que em futuro sua decisão atingiria – interpretou corretamente que a presunção de inocência se mantém apenas até que a culpa seja formada em Juízo Singular, e seja confirmada por um primeiro tribunal.

Assim, então ainda livre de ingentes pressões políticas, reconheceu o STF a excepcionalidade dos eventuais recursos aos Tribunais Superiores, que somente podem examinar questões de Direito, e não de fato, de modo que em baixíssima porcentagem seus acórdãos têm efeitos infringentes sobre as condenações já decretadas, tal sorte que esses recursos não raro se prestam apenas a promover prescrição e, consequentemente, impunidade.

Resolveu então que, diante disso, o trânsito em julgado a que a Carta Magna se refere já se insinua diante da presunção de culpabilidade ad hominem contra o Réu condenado, que então pode ser objeto de execução provisória da pena, enquanto apela a esforços extraordinários juntos aos Pretórios Soberanos.

Agora, esmagados por forças ocultas inefáveis, os ministros do Supremo se contorcem em malabarismos hermenêuticos, às vezes risíveis, para fundamentar e motivar um resultado que corresponde ao script já consabido e consagrado entre eles.

Ainda bem que nesta aguda quadra da história brasileira resta o chamado “quarto poder da República”, que é a grande imprensa livre, em defesa do estrato consequente do povo – composto pelos cidadãos de bem, que não sorveram o infecto mel da pústula e que não foram inoculados pela cegante paixão ideológica.

Que Deus se apiade de nossas almas!





 *NOTA: O título é uma paródia da célebre frase do conto “O Moleiro de Sans-Souci”, de François Endriex (1759-1833), atribuída a um aldeão alemão ao Imperador Frederico II, monarca do Século XVII, que lhe queria confiscar injustamente a propriedade: “Isso só seria possível se não houvesse juízes em Berlim”.
      


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