AINDA HÁ
JORNALISTAS
EM BERLIM*
Reginaldo Vasconcelos**
“O tempo tem produzido em minha memória
impressões de todos os gêneros” – teria dito Rui Barbosa. De fato, não se espera
viver para testemunhar passagens tão burlescas da história, de tal modo que
muita vez a pessoa nem se espanta de pronto porque o absurdo demora a se fazer
perceber e acreditar.
Um
advogado de renome vai à tribuna do Supremo Tribunal fazer a sustentação da
defesa de uma petição de habeas corpus
que impetrou, e, assumindo o mais notório cacoete do próprio paciente (sua
glória e sua perdição), faz um discurso de camelô, tão convincente quanto falso.
Alega
que o mundo vive uma crise autoritária, quando, exatamente ao contrário, o que
a humanidade experimenta no momento é um déficit de genuína autoridade,
instalada a anarquia e a atividade de organizações irregulares, em todos os
níveis sociais e políticos do Planeta.
Contraditoriamente,
o causídico medalhão exemplifica com a prisão recente de um ex-presidente
francês, medida absolutamente legal em seu país, onde, inclusive, se inicia o
cumprimento das penas logo após a condenação confirmada em tribunal –
exatamente aquilo que no mérito contesta ele seja praticado no Brasil.
Dessa
forma, em favor da sua tese, o advogado faz uso do principal argumento que se
teria contra ela – quando um país que “exportou democracia” dá o exemplo,
mandando prender um ex-presidente por mera suspeita de corrupção eleitoral, de
forma justa, institucional e republicana.
Acontece
que aquilo que ele evidencia estar ocorrendo lá na França – exemplo que caberia
ser usado contra ele – é tudo o que ele pretende evitar que aconteça com um
ex-presidente brasileiro, este com culpa formada, já condenado em duas
instâncias da Justiça.
Por
isso se diz que o principal atributo do diabo é a mentira, com a qual ele
confunde a boa-fé das almas pias, disfarçando o mal em virtude, se fazendo
passar por puro e bom, vítima da injustiça universal, configurando o que diz
Caetano Veloso na letra da canção: “Você
diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir”.
O
demônio espalha a luz de Lúcifer de forma encandecente e obliterante, até que
tudo se revele uma grande farsa demoníaca, capaz de levar para o caos dos
infernos os cacos das boas intenções desvirtuadas – exatamente como tem
acontecido com a massa eleitoral nos últimos episódios da República Brasileira.
No
caso, como faria o velho fute, o
referido advogado não traz a verdade límpida em seu exemplo, ao afirmar com
grande desfaçatez que o tal presidente de França fora eleito por duas vezes, o
que sabe não proceder, entregando assim o traiçoeiro rabo cúspide para que
alguém o pegasse contestando, e ele então tivesse oportunidade de dizer com
galhardia: “Pois o Lula foi!”.
Mas
– e aqui vem outra surpresa para siderar as mentes sãs – a Rede Globo de TV de
repente se levanta para evidenciar os descalabros da defesa de Lula, articulada
da tribuna do Supremo, imiscuindo-se ela no processo para tentar desnudar o rei
calhorda, alvejando o seu patrono, desmentindo-o e instando-o a explicar suas
inverdades.
O
jornalismo da emissora por fim largou de mão o assassinato da vereadora do
PSOL, agora babando pelo canto da boca para empurrar Lula para a cadeia, quando
até bem pouco tempo se juntava à vindita das esquerdas contra Temer – um anjo
decaído para o petismo – e um santo para a direita, redimido na epifania
de Saulo na Estrada de Damasco.
Ao
mesmo tempo, uma outra grande rede de TV gravou o próprio Lula em sacrificante comício
pelo Rio Grande do Sul, a imprecar contra os agropecuaristas gaúchos que o
expungiram de diversos municípios, dizendo que estes deveriam tratar os seus trabalhadores
tão bem quanto tratam os seus cavalos.
Em
seguida, os repórteres entrevistaram um criador de cavalos local asseverando
que todos os seus empregados são devidamente registrados sob todos os preceitos
das normas laborais, até porque o sucesso do seu negócio tem estreita
dependência desses profissionais cavalariços.
O
resumo da ópera na conclusão desse episódio é a constatação de que o Supremo
Tribunal Federal se põe de cócoras, politicamente contaminado e dividido por ferozes
dissenções – e a grande imprensa já não tem estômago para ser imparcial, saindo
em defesa da cidadania do País.
Expõe
a Nação a grande insegurança jurídica aquele “Augusto Tribunal”, ao claudicar nas
suas decisões, ao nutar entre interesses subalternos por ele mesmo admitidos, assacados
por uns ministros contra os outros – e quem somos nós para contestar suas
invectivas pessoais, de parte a parte asseveradas?
Na
verdade, o Supremo Tribunal – ignorando na época as proporções que a corrupção nacional
alcançaria no pelourinho da Justiça, e despercebido dos imensos interesses que
em futuro sua decisão atingiria – interpretou corretamente que a presunção de
inocência se mantém apenas até que a culpa seja formada em Juízo Singular, e seja
confirmada por um primeiro tribunal.
Assim,
então ainda livre de ingentes pressões políticas, reconheceu o STF a excepcionalidade
dos eventuais recursos aos Tribunais Superiores, que somente podem examinar questões
de Direito, e não de fato, de modo que em baixíssima porcentagem seus acórdãos têm
efeitos infringentes sobre as condenações já decretadas, tal sorte que esses recursos
não raro se prestam apenas a promover prescrição e, consequentemente,
impunidade.
Resolveu
então que, diante disso, o trânsito em julgado a que a Carta Magna se refere já
se insinua diante da presunção de culpabilidade ad hominem contra o Réu condenado, que então pode ser objeto de
execução provisória da pena, enquanto apela a esforços extraordinários juntos
aos Pretórios Soberanos.
Agora,
esmagados por forças ocultas inefáveis, os ministros do Supremo se contorcem em
malabarismos hermenêuticos, às vezes risíveis, para fundamentar e motivar um
resultado que corresponde ao script já
consabido e consagrado entre eles.
Ainda
bem que nesta aguda quadra da história brasileira resta o chamado “quarto
poder da República”, que é a grande imprensa livre, em defesa do estrato
consequente do povo – composto pelos cidadãos de bem, que não sorveram o infecto
mel da pústula e que não foram inoculados pela cegante paixão ideológica.
Que
Deus se apiade de nossas almas!
*NOTA: O título é uma paródia da célebre frase do conto “O Moleiro de Sans-Souci”, de François Endriex (1759-1833), atribuída a um aldeão alemão ao Imperador Frederico II, monarca do Século XVII, que lhe queria confiscar injustamente a propriedade: “Isso só seria possível se não houvesse juízes em Berlim”.
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