quarta-feira, 1 de agosto de 2018

CRÔNICA - "A Senhora Já Entrou Com o Defunto"


[...]“A SENHORA JÁ 
ENTROU COM O DEFUNTO”
Vianney Mesquita*


É bom fazer um gracejo, mas não do gracejar fazer ofício. (THOMAS FULLER, escritor de História e crente grão-britano. Aldwincie, 1608; Londres, 1661).


Realmente farto se expressa o recheio nordestino, particularmente cearense, no que concerne ao registro da espirituosidade da nossa gente, muita vez consignada em suporte de papel, em receptáculos físico-químicos diversos e, agora, na rede mundial de computadores, desde a colonização lusitana até os tempos bicudos de hoje, quando se perpassa quadra realmente custosa de vencer.

No acervo de piadas, maranhões e outras modalidades de graça, nas mais das vezes gravadas na retentiva das pessoas, é dispensado, com a maior naturalidade (é muito curioso este fato!), o conhecimento da autoria da enorme diversidade de chistes, circulando a torto e a direito no decurso de tanto tempo, sem qualquer reclamo autoral.

Sucede, frequentemente, de conter o produto máximas explicativas, em poucas palavras, de regras ou princípios morais, a exemplo dos apotegmas gregos e latinos, bem como de clássicos provenientes de outros países mais antigos, que conduzem, de ordinário, os nomes dos seus autores  Ovídio, Hipócrates, Xenofonte, Lao-Tse, Cícero, Tagore e tantos e muitos – sem que os “inventores” postulem direitos à sua lavra.

Entrementes, noutras conformações produtivas, como a letra de música, a opinião expressa nos meios para difusão coletiva (livros, artigos, sueltos, crônicas etc.), especialmente as produções acadêmicas, concedem, frequentemente, oportunidade para querelas na Justiça, as quais ordinariamente se arrastam pelos vãos e desvãos dos processos e salas de audiência, fenômeno pelo qual não transitam os aforismos e invencionices gaias e, com recorrência, plenificadas de sentido moral, não obstante procederem do engenho popular.

Eis algumas tretas, como

frases de para-choques – Amor sem beijo é café sem queijo; e Beijo de menina contém vitamina;

comparações, como Grosso como lápis de carpinteiro, livro de cartório e porta de igreja; e Besta que só peru de noite;

versos de pés quebrados, sem qualquer rima – Entre a minha casa e a tua/Tem um riacho no meio. /Todo dia eu vou prá lá e dou cada grito!/;

Lá vem a lua saindo/ por detrás da bananeira/ Fizeram minha curta e eu fiquei com os pés de fora;

Estava na beira da praia/ Esperando meu transporte/Passou um menino num jumento, e eu pufo na garupa!;

Enfiei o braço nágua/Fui sair na Barra Funda/Isso é coisa?

Tudo isso comprova a indústria intelectiva, embora, na maioria das circunstâncias, proveniente de sujeitos não escolarizados ou com instrução formal defeituosa e incompleta, consoante sucedeu com Patativa do Assaré, Zé da Luz, Moisés Matias de Moura, Luiz Dantas Quezado e dezenas de extraordinárias figuras nordestinas que se notabilizaram pela expressão artística, a qual, malgrado deseixada da necessária escolarização, fê-los pontificar na história do folk-lore brasileiro, ao seu modo, como poetas e prosadores engraçados, de fino veio gaiato, os quais honram a literatura e a cultura da Terra Brasílica.

O saber popular, então, sobeja configurado na enorme quantidade de contributos insertos nos variados gêneros, dos quais, sem indicação autoral qualquer, as anedotas são as que mais têm curso, no aspecto quantitativo. Trazem, contudo, a vantagem de reduzir, mesmo em pouca estimação, o tormento do povo, relativamente às dificuldades alimentares, embaraços financeiros, recepção de cuidados educacionais de saúde falhos e viciosos por parte do Estado, sobretaxação de impostos e demais óbices impeditivos do deleite de uma vida melhor.

A propósito, afinal, e conforme se diz popularmente, “o pão do pobre só cai com a margarina pra baixo”. Há algo mais inteligente? É, mutatis mutandis, semelhante ao expresso no ensinamento da Parábola dos Talentos, no fragmento 25 -29, de Mateus: ”Porque a todo o que tem será dado em abundância; mas, ao que não tem até aquilo que tem lhe será tirado”.

Com efeito, exaltemos nossos piadistas por seu veio satírico e bem-humorado, remédio inteligente aplicado como refresco para subjugar as ocasiões mais aflitivas, cobrir com pensos as injúrias doloridas do dia a dia, nos encaliçando os órgãos corporais, a fim de estas não magoarem em excesso a pele de cada um, já por demais molestada pelas circunstâncias negativas, em curso desde a aurora ao termo do dia!
***
Um desses “autores” contou-me que morrera um senhor muito benquisto na sua comunidade, com velório marcado para o decorrer da noite e sepultamento pela manhã do dia sequente.

A sala de visitas da sua casa estava lotada, e, em razão de assoberbamento da mulher, então privada de marido (sem filhos), com as disposições relativas ao réquiem, não havia, água, tampouco cafezinho, muito menos uma imaculada Palmacinha, para desamargurar a lembrança do extinto e amatar o semblante carregado daquela situação.

De fato, aquilo reclamava uma solução.

Ocorreu de, num átimo, um dos circunstantes decidir fazer uma vaquinha para materializar tal providência. Já havia conseguido uns bons trocados, quando a viúva divisou a arrumação e, pejada de embaraço, dirigiu-se ao homem da cota, pedindo-lhe mil desculpas, em razão de falta de tempo, de ter de resolver coisas no hospital, nas funerárias etc. etc.

Ao final, então, se dispôs a senhora:

– Quero entrar com a metade da despesa. É mais do que justo!

– Eis que, de pronto, o arrecadador redarguiu:

–Absolutamente, não!  – A Senhora já entrou com o defunto!


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