[...]“A SENHORA JÁ
ENTROU COM O DEFUNTO”
Vianney Mesquita*
É bom fazer um gracejo, mas não do gracejar
fazer ofício.
(THOMAS FULLER, escritor de História e crente grão-britano. Aldwincie, 1608;
Londres, 1661).
Realmente
farto se expressa o recheio nordestino, particularmente cearense, no que
concerne ao registro da espirituosidade da nossa gente, muita vez consignada em
suporte de papel, em receptáculos físico-químicos diversos e, agora, na rede
mundial de computadores, desde a colonização lusitana até os tempos bicudos de
hoje, quando se perpassa quadra realmente custosa de vencer.
No
acervo de piadas, maranhões e outras modalidades de graça, nas mais das vezes
gravadas na retentiva das pessoas, é dispensado, com a maior naturalidade (é
muito curioso este fato!), o conhecimento da autoria da enorme diversidade de
chistes, circulando a torto e a direito no decurso de tanto tempo, sem qualquer
reclamo autoral.
Sucede,
frequentemente, de conter o produto máximas explicativas, em poucas palavras,
de regras ou princípios morais, a exemplo dos apotegmas gregos e latinos, bem
como de clássicos provenientes de outros países mais antigos, que conduzem, de
ordinário, os nomes dos seus autores – Ovídio, Hipócrates, Xenofonte, Lao-Tse, Cícero,
Tagore e tantos e muitos – sem que os “inventores” postulem direitos à sua
lavra.
Entrementes,
noutras conformações produtivas, como a letra de música, a opinião expressa nos
meios para difusão coletiva (livros, artigos, sueltos, crônicas etc.),
especialmente as produções acadêmicas, concedem, frequentemente, oportunidade
para querelas na Justiça, as quais ordinariamente se arrastam pelos vãos e
desvãos dos processos e salas de audiência, fenômeno pelo qual não transitam os
aforismos e invencionices gaias e, com recorrência, plenificadas de sentido
moral, não obstante procederem do engenho popular.
Eis
algumas tretas, como
frases
de para-choques – Amor sem beijo é café
sem queijo; e Beijo de menina contém
vitamina;
comparações,
como Grosso como lápis de carpinteiro,
livro de cartório e porta de igreja; e Besta
que só peru de noite;
versos
de pés quebrados, sem qualquer rima –
Entre a minha casa e a tua/Tem um riacho no meio. /Todo dia eu vou prá lá e dou
cada grito!/;
Lá vem a lua saindo/ por detrás da bananeira/
Fizeram minha curta e eu fiquei com os pés de fora;
Estava na beira da praia/ Esperando meu
transporte/Passou um menino num jumento, e eu pufo na garupa!;
Enfiei o braço nágua/Fui sair na Barra Funda/Isso
é coisa?
Tudo
isso comprova a indústria intelectiva, embora, na maioria das circunstâncias,
proveniente de sujeitos não escolarizados ou com instrução formal defeituosa e
incompleta, consoante sucedeu com Patativa do Assaré, Zé da Luz, Moisés Matias
de Moura, Luiz Dantas Quezado e dezenas de extraordinárias figuras nordestinas
que se notabilizaram pela expressão artística, a qual, malgrado deseixada da
necessária escolarização, fê-los pontificar na história do folk-lore brasileiro, ao seu modo, como poetas e prosadores
engraçados, de fino veio gaiato, os quais honram a literatura e a cultura da
Terra Brasílica.
O
saber popular, então, sobeja configurado na enorme quantidade de contributos
insertos nos variados gêneros, dos quais, sem indicação autoral qualquer, as
anedotas são as que mais têm curso, no aspecto quantitativo. Trazem, contudo, a
vantagem de reduzir, mesmo em pouca estimação, o tormento do povo,
relativamente às dificuldades alimentares, embaraços financeiros, recepção de
cuidados educacionais de saúde falhos e viciosos por parte do Estado,
sobretaxação de impostos e demais óbices impeditivos do deleite de uma vida
melhor.
A
propósito, afinal, e conforme se diz popularmente, “o pão do pobre só cai com a
margarina pra baixo”. Há algo mais inteligente? É, mutatis mutandis, semelhante ao expresso no ensinamento da
Parábola dos Talentos, no fragmento 25 -29, de Mateus: ”Porque a todo o que tem
será dado em abundância; mas, ao que não tem até aquilo que tem lhe será
tirado”.
Com
efeito, exaltemos nossos piadistas por seu veio satírico e bem-humorado,
remédio inteligente aplicado como refresco para subjugar as ocasiões mais
aflitivas, cobrir com pensos as injúrias doloridas do dia a dia, nos
encaliçando os órgãos corporais, a fim de estas não magoarem em excesso a pele de
cada um, já por demais molestada pelas circunstâncias negativas, em curso desde
a aurora ao termo do dia!
***
Um
desses “autores” contou-me que morrera um senhor muito benquisto na sua
comunidade, com velório marcado para o decorrer da noite e sepultamento pela
manhã do dia sequente.
A
sala de visitas da sua casa estava lotada, e, em razão de assoberbamento da
mulher, então privada de marido (sem filhos), com as disposições relativas ao réquiem, não havia, água, tampouco cafezinho,
muito menos uma imaculada Palmacinha, para
desamargurar a lembrança do extinto e amatar o semblante carregado daquela
situação.
De
fato, aquilo reclamava uma solução.
Ocorreu
de, num átimo, um dos circunstantes decidir fazer uma vaquinha para materializar tal providência. Já havia conseguido uns
bons trocados, quando a viúva divisou a arrumação e, pejada de embaraço,
dirigiu-se ao homem da cota, pedindo-lhe mil desculpas, em razão de falta de
tempo, de ter de resolver coisas no hospital, nas funerárias etc. etc.
Ao
final, então, se dispôs a senhora:
–
Quero entrar com a metade da despesa. É mais do que justo!
–
Eis que, de pronto, o arrecadador redarguiu:
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