O PRISIONEIRO
Reginaldo Vasconcelos*
Um
daqueles jovens africanos que assistem no São Sebastião em Fortaleza, nas
bancas de frutas ou nos tem-de-tudo populares, me convenceu a comprar uma
ratoeira de alçapão, aquelas que em vez de matar o bicho o aprisionam. Mais encantado
pelo engenhoso mecanismo, e pela simpatia do vendedor, adquiri o objeto.
Armei
no quintal e passaram-se meses sem que tivesse resultado, ainda que de vez em
quando eu fosse lá renovar a isca. Já tinha até brincado com o simpático senegalês,
que o artefato que me vendera era ótimo para pegar freguês, mas não pegava
rato.
Eis
que certa manhã me deram notícia de um infeliz presidiário que caíra na
armadilha, certamente um exemplar do que os especialista chamam “ratos turistas”,
aqueles não residentes que se tornam itinerantes, aventurando-se por amplo
território a procura de comida.
O
animal não ciciava como normalmente os ratos fazem – voz que na fábula infantil
encantou a Dona Baratinha. Este gritava, rosnava, grunhia. Ao me aproximar ele me
encarava, exibindo os incisivos e vociferando contra mim. E então eis-me diante
de um dilema sem tamanho: fazer o quê com aquele prisioneiro revoltado?
Compreendi
então a grandeza moral do Dr. Guillotin, médico francês que, não conseguindo
convencer Luiz XVI a abolir a pena de morte, inventou a guilhotina, para “beneficiar”
os condenados – e do anônimo que fez a primeira ratoeira de mola, a qual
promove a morte súbita do animal, o chamado “abate humanitário”.
Deploro
quem invade a propriedade alheia, seja gente, seja bicho, praga social ou praga
doméstica, como neste último caso. Ratos deveriam obter abrigo e alimentos com
o suor do próprio rosto, como fazem o preá e a cotia, ao invés de invadir os
quintais e os armazéns das pessoas para obter o passadio – pensava eu assim
para justificar, perante a minha consciência, o prenunciado suplício daquele
penitente roedor.
Houve
sugestões familiares odiosas de que fosse ele imolado em chamas, ou afogado, ou
mesmo empalado com um ferrete, enquanto estava preso e indefeso – mas nada
disso me pareceu forma digna de sacrificar um inimigo, embora preso, ainda
impoluto – configurando, juridicamente falando, a qualificadora do “modo cruel”, ou, no jargão jornalístico, “requintes de perversidade”.
No
meu longo passado já cacei animais em campo aberto, e já me dispus a atirar em
bandido, situação em que a presa tem sempre uma chance natural de esconder-se, de fugir, ou mesmo de reagir, o que é diferente de abater quem já está preso.
Quanto
mais um bravo como aquele – e o cangaceiro Lampião poupou a vida de um soldado
que, capturado e amarrado, manteve-se altivo e não se rendeu à covardia:
– Capitão, você vai me matar porque me pegou à traição. Senão eu morreria lutando.
– Solta o cabra! Um homem desse não se mata fora
do campo da honra.
Então
eu me lembrei de uma velha crônica de Carlos Drummond de Andrade, “Caso de
Canário”, em que o genro foi escalado pelo sogro para sacrificar um estimado
passarinho da família, que sofria de mal incurável e irreversível. Novo na
casa, o rapaz viveu um drama semelhante ao meu, mas afinal se decidiu.
Ele usou éter para adormecer a avezinha,
para depois lhe torcer o pescoço, mas, ao fazê-lo – segundo o happy end que Drummond deu à história – o passarinho abriu os olhos e lhe beliscou os dedos, de repente redivivo, fazendo crer que ele só precisava de uma substância cordial que lhe estimulasse o coração, ou de uma manobra de quiropraxia que lhe liberasse vértebras cervicais ou desobstruísse uma via orgânica.
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