O QUE DISSE O
GENERAL MOURÃO
E O QUE ELE QUIS DIZER
Reginaldo Vasconcelos*
Normalmente,
em períodos de eleições, para os candidatos vale a regra de que “o que não é preciso dizer, é
preciso não dizer”, porque, havendo qualquer brecha interpretativa maldosa na
declaração feita, os adversários a descontextualizarão e a grande mídia cuidará
de espetacularizar os desdobramentos.
Mas,
no caso da chapa verde-oliva à Presidência da República, encabeçada pelo
Capitão Bolsonaro, essa premissa clássica não vigora, pois a repercussão de
suas bravatas mais incitam que desanimam os seus sequazes – e mais desconcertam
os seus adversários e detratores.
O
General Antônio Mourão, para analisar o caráter da Nação Brasileira, tomou como
base a índole de cada um dos três povos que a formaram, disparando um petardo
muito bem assestado sobre os grupos defensores das ditas “minorias sociais”, nos
quais sua chapa à Presidência certamente não tem votos.
Todavia,
como ele mesmo frisou ao ser cobrado, o que ele disse tem uma boa interpretação
científica. Costumo dizer que a melhor leitura da nossa realidade étnica não
envolve dívidas morais, nem ressentimentos raciais, até porque todas as pessoas
de famílias brasileiras antigas, que são a maioria, têm que se considerar fruto
do cadinho étnico que formou a brasilidade.
Na
minha opinião, a partir do ano de 1.500, três povos foram convocados pela
História para fundar uma nova nação, e cada um deles participou da tarefa de
acordo com o estágio evolucionário em que então se encontrava – nenhum deles
vivendo, naquele momento, uma apoteose civilizatória gloriosa.
Os
lusitanos, os “patinhos feios” das monarquias da Europa, pobres e historicamente
massacrados por seguidas revoluções e guerras civis, acossados ainda por
mouros, árabes, espanhóis.
O
único recurso que lhes restava era aventurar-se mar afora – tendo por fim que
defender de franceses e holandeses suas colônias de além-mar, e depois transferir
toda a Corte e seus áulicos ao Brasil, fugindo da invasão napoleônica.
Os
africanos, por seu turno, vivendo naquele continente sáfaro e conflagrado, em
que, como até hoje acontece, suas tribos se digladiavam com frequência, naquele
tempo escravizando e vendendo as populações vencidas para as novas possessões dos
europeus encravadas nas Américas.
Os
autóctones brasileiros, por sua vez, isolados na floresta tropical, ainda
estavam na Idade da Pedra. Vivian nus, eram ágrafos, mal dominavam o fogo, não conheciam a
roda, não dispunham do ferro, muito menos dos metais preciosos que os andinos
já garimpavam, fundiam e moldavam.
Sua
propalada “indolência” a que se referiu o General, que é registrada por
antropólogos renomados, não era um estigma genético, mas consequência cultural
do seu ambiente, já que eram coletores e caçadores dentro de uma selva dadivosa.
Muito
pouco cultivavam, não dispunham do cloreto de sódio, não conservavam nem estocavam
alimentos, de modo que morgavam na oca a maior parte do tempo, para levantarem-se da rede esporadicamente, somente quando sentiam fome.
Mourão,
por outra, atribui ao colonizador ibérico o complexo de vira-lata com que Nelson
Rodrigues nos tachou – que não o fez para nos diminuir, mas, ao contrário, para nos conscientizar e nos exorcizar
da notória baixa-estima portuguesa – tão grave que aquele país nem considera que esteja inserido na Europa.
Já
a “malandragem” que Antônio Mourão imputou aos africanos se refere à alegria e à esperteza que os negros manifestam – sem relação semântica com desonestidade
ou com preguiça. Está na jovialidade do futebol catimbado, na malemolência do
samba, na ginga da capoeira, na alegria do carnaval.
Está
na picardia de um Moreira da Silva e de uma Elza Soares; na vivacidade de um
Jair Rodrigues e de um Carlinhos Brown; nos dribles desconcertantes de um
Garrincha ou de um Neymar; na alegria e na molecagem da Juju Todynho e do Nego do Borel, ainda por exemplo – atributos que realmente não herdamos dos índios,
nem vieram com os brancos daquela triste Península Ibérica do passado.
A
palavra “malandro” já designou um tipo social urbano que havia no Rio de
Janeiro durante a primeira metade do Século XX, com prevalência de negros, que
se vestia, se portava e falava de maneira singular, e que era discriminado pelo
seu exotismo e perseguido pela velha polícia de costumes.
Esse
tipo característico foi registrado pelos intelectuais da década de 20, João do
Rio e Lima Barreto, bem como tratado por Mário de Andrade e por Sergio Buarque
de Holanda, que o via como ícone do “homem cordial”. E foi essa subcultura urbana
brasileira que inspirou Walt Disney a criar o papagaio Zé Carioca, personagem
simpática e bom caráter.
Na nossa música popular o termo já foi despido
de qualquer desdouro, quando Bezerra da Silva compõe o samba “Malandro é
Malandro, Mané É Mané”, e quando Cazuza lança a canção “Malandragem” – “Eu
só peço a Deus, um pouco de malandragem”.
O fato é que a parte mais relevante da cultura
brasileira veio da África – seja na música, seja na dança, na culinária e na fé
religiosa, sincretizada com crenças e ritos trazidos da Europa pelo catolicismo
e pela cristandade em geral, de modo que ser malandro não é vergonhoso, e ser
afrodescendente não é um labéu. E essa é a maneira escorreita e antirracista de
interpretar o General.
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