ELIXIR 914
[Para o árcade novo José Pacceli Campos*]
Vianney
Mesquita **
Os remédios são mais lentos do que as doenças. (Públio Cornélio TÁCITO – historiador latino.
Nasceu em 56; faleceu em 117).
Consoante informam os dicionários etimológicos
da Língua Portuguesa, o vocábulo elixir –
al-iksir – decorre do árabe, que
o recebeu do grego kserion/ou, e teve registo na Língua Portuguesa em 1726. É
significativo de uma mistura de substâncias aromáticas, geralmente
terapêuticas, mescladas em álcool, glicerina, vinho e outras essências líquidas
e sólidas.
Durante a Idade Média – ciclo ocorrente de 476
a 1492 – eram atribuídas a tais poções propriedades sobrenaturais, conforme
ainda hoje tem curso no entendimento popular, que admite à ingesta dessas
infusões efeitos encantadores, sortilégios e milagres.
No Medievo, como “elixir da longa vida”, era um
cozimento pretensamente medicinal produzido pelos alquimistas, com vistas a
fazer rejuvenescer e assegurar uma dilatada existência das pessoas. Tal
aspiração – impende expressar - via de regra, não se confirmava, haja vista a
curta expectativa vital registada naquele período, comparativamente aos dias
correntes (a esperança de vida chegando a 74 anos), quando atuam a Medicina e
seus ramalhos científicos, com a cura de graves patologias e até extinção de
enfermidades altamente letais, segundo ocorrem de ser, entre outras, a
tuberculose, a SIDA e a maioria das cardiopatias. Impõe-se exprimir, ainda, o
fato de que, se a estatística não contabilizasse as mortes por acidentes de
veículos – em particular, de motocicletas – e os homicídios de todas as
naturezas, a conjectura da idade humana no Brasil poderia chegar aos 80 anos.
Na Modernidade, então, com o advento de
doenças alçadamente mortais, embora não se haja perdido por completo o tom
ingênuo dos receptores de informações dos meios para difusão coletiva, tampouco
desaparecido, em particular, na primeira metade do século XX, o teor falaz das
publicidades dos remédios, os elixires passaram a ser fabricados no âmbito dos
laboratórios farmacêuticos, e por pessoas com austera formação acadêmica.
Sua manufatura se opera, pois, sob condução de
regramentos legais, hoje bastante rígidos, conquanto, no nosso País,
costumeiramente desobedecidos (como sucede com os genéricos), conferindo a esses fármacos, por parte da população,
maior conteúdo de verdade e mais crédito em relação aos seus propalados
caracteres de redução de enfermidades e processamento de curas.
Antes da descoberta da penicilina e da
maximização dos seus resultados, no restante dos’20, com desdobramentos até o decênio
1951–1960, máxime nos 15 anos ininterruptos do Governo de Getúlio Dorneles
Vargas (1930–1945), teve intenso curso no Brasil o mal da sífilis, causado pela
bactéria Treponema pallidum, divisada
em 1905, segundo a História e a literatura
de domínio público, doença infecciosa com lesões da pele e mucosas, de
crescimento vagaroso, em geral, transmitida em três fases – primária,
secundária e terciária – ocorrente por contato sexual e, mais raramente, por
via de transmissão, pela mãe, ao feto.
Malgrado, entretanto, o achado do humilde cogumelo (mofo) haja ocorrido em
1928, a descoberta passou bastante tempo sob observação em laboratórios e
lugares de prova, até que seus efetivos e práticos resultados foram publicados –
isto é, a invenção da penicilina e seus efeitos curativos em várias doenças infecciosas
– disso decorrendo a conferência, para os autores, do Prêmio Nobel à frente mencionado.
A denominação da doença de lues (o mesmo que
sífilis) procede do poema Sífilis ou o
Mal Gálico, tendo o seu autor – o médico de Verona Girolamo Fracastoro – se
inspirado na personagem Syphillus, das
Metamorphoses, de Ovídio (Públio Ovídio Nasão).
Muitos estudiosos, em todos os tempos, analisaram
o assunto, especialmente, em princípio, Todd e Bell, no século XVIII, seguidos,
logo após, por Hernandez e, em 1905, pelo alemão Fritz Schaudinn, que
identificou o Treponema pallidum.
Também, evidentemente, são muitos os ensaios a respeito do assunto
desenvolvidos no Brasil, especialmente em estudos stricto sensu nos programas de pós-graduação das universidades e
centros de demanda científica, como é ocorrente na Faculdade de Medicina da
Universidade Federal do Ceará.
Enfermidades várias – umas letíferas e
epidêmicas – assolaram o Brasil na centúria imediatamente passada, de que são
exemplares a comentada sífilis, malária, febre amarela, bouba lisina,
tuberculose, sarampo e catapora, arrostadas com vigor pelo então Departamento
Nacional de Saúde Pública e depois pelo Ministério da Educação e Saúde (após
Ministério da Saúde, desmembrado), especialmente no período varguista, por meio
de órgãos como o Departamento Nacional de Endemias Rurais, o qual tomou várias
denominações à proporção do tempo, correspondente, nos dias atuais, mutatis mutandis, à Fundação Nacional de
Saúde.
Essas são evocações pessoais consistentes, pois
meu pai – Vicente Pinto de Mesquita (1915–1993) – era funcionário do Ministério
da (Educação e) Saúde e, de Palmácia, onde morávamos até julho de 1960, viajava
a cavalo (burro) por toda a Serra de Baturité e por outros rincões do Ceará, chefiando
uma turma de guardas sanitários em combate a várias dessas moléstias
contagiantes, cuja história bem retive na lembrança.
Eis que, desde 2015, a Treponema Pallidum
– Sífilis – perturba novamente o
Brasil, como doença pestilenta, novamente epidêmica ao extremo (2017), de sorte
que o MS procura debelá-la com vigor, a ela e a outras que revivesceram. Antes,
a tuberculose, no meu tempo de menino, conhecida por tísica, era combatida com
o fungo penicillium notatum, descoberto pelo pesquisador escocês
Alexander Fleming (1881–1955), detentor do Prêmio Nobel de Medicina e
Fisiologia de 1945, em conjunto com os médicos tedesco Ernst Boris Chain (1906–1979)
e australiano Howard Walter Florey (1898–1868).
Impõe-se informar, por oportuno, que, com o
desenvolvimento das ciências médicas e farmacêuticas, nomeadamente do contexto
das academias e institutos de busca científica, a tuberculose deixou de ser
tratada com penicilina.
Embora desprovido de base bem assente em
informações comprovadas, pois não detenho confirmação inventariada em nenhuma vertente
formal de busca, suponho, entretanto, a julgar pela sua denominação, haver
aparecido no ano de 1914 uma solução a que se deu o nome de ELIXIR 914, ainda hoje em uso,
principalmente, no auge da atual pestilência sifilizante no Brasil, naquele
tempo sob os auspícios da empresa Galvão e Companhia – Depositários Gerais (São
Paulo), conforme está assentado no romaneio do citado remédio, originário do
Laboratório Simões (Rio de Janeiro). Tal suposto, no entanto, impende referir,
pode deixar de prosperar, porquanto é passível de ser falseado.
Por outro lado, diviso (no
ocoiceblog.blogspot.com) a ideia de que o número corresponde a cada versão de
elixir que aflorava, pois, consoante informa aquela fonte – não sei com qual
nível de fidedignidade – em 1918, já houvera aparecido o Elixir 609, ao passo
que o 914 veio à luz em 1922, de sorte que entre o 609 e 914 (= de 610 a 913), teriam
transitado pelo comércio 313 versões de elixir no Brasil. Tudo isso, porém,
carece de certificação.
O Elixir
914 é uma beberagem constante de um conjunto de extratos fitoterápicos da
flora nacional, associado ao iodeto de potássio (KI103), que confere ao produto
ação depurativa, expectorante e tônica. Consoante sua bula, não haveria de ser
administrado a quem fosse intolerante ao iodo, bem assim àquele que portasse
tuberculose e afecções do fígado e dos rins. Conquanto fosse sacaroso, não era vedado
seu ingerimento por pessoas com histórico do
Diabetes Mellitus, porém se chamava atenção para o máximo cuidado na
obediência às determinações e aconselhamentos médicos.
Convém informar também que, na atualidade,
pelo fato de o açúcar haver se tornado realmente abjeto em desfavor da saúde,
os medicamentos da linha do Elixir 914
contam em sua conformação químico-farmacêutica com edulcorantes artificiais.
É de especial recomendação contra o comentado Treponema
Pallidum, porquanto a sífilis provoca abortos, doença-de-chagas,
invalidez, reumatismos e eczema.
Em um reclame
(informe publicitário – terminologia de emprego à época) publicado no Almanaque Pelo Mundo, de 1924
(Ministério da Educação e Saúde), há um desenho de dois rapazes: um
desesperado, portando um revólver, enquanto o outro denota uma tentativa
obstinada de fazê-lo desistir da tresloucada ação autocida: “Não faça isso!”
Entre outras passagens do texto publicitário,
pincei o fragmento expresso na sequência (www.almanaque.info.aborto.3.htm):
O
ELIXIR não é só um grande Depurativo como energético preparado contra a Syphilis
porque contém Hermophenyl o qual destroe os micróbios do sangue. É o unico sal
que deve ser usado por via gástrica e pela acção bactericida e porque não ataca
o estomago nem os dentes, não produz erupções, ao contrario, sêcca e faz
desaparecer as feridas. Não contém arsenico nem iodureto, sendo inofensivo ás
creanças [...].
E mais o excerto seguinte:
O que
o doente sente com o uso do ELIXIR 914: Appetite, regularidade dos intestinos,
melhorando os que sofrem de prisão de ventre. Desapparecimento de todas as
manifestações syphiliticas especialmente do Rheumatismo e afecções do Olhos.
Finalmente, a saúde em pouco tempo.
Depois, adverte:
NÃO SE CASE SEM PRIMEIRO TOMAR 6 VIDROS DE
ELIXIR 914 [...]
***
Agora que escoliei acerca de tema sério e
verdadeiro, sou obrigado a solicitar a permissão do leitor para reportar-me a
uma estória burlesca (verdadeira) que ouvi há muito tempo, sendo a sífile e o Elixir 914 os motos da pilhéria, numa mistura temática, a qual –
posso reconhecer – talvez seja deseixada de razão. Daí as escusas solicitadas.
No final do ano de 1952, um cidadão lá de
Palmácia (conterrâneo), com 59 anos de idade, estava com uma mouquice bastante
acentuada e crescente, continente de evacuação e incontinente de micção, com
reumatismo e toda sorte de macacoas.
De tanto sua família insistir, ele foi a
Maranguape se consultar com o médico generalista Dr. Almir dos Santos Pinto
(depois político e senador da República), tendo sido a consulta realizada no
mesmo dia, pois os achaques de seu corpo se proporcionaram por demais, fato que
o deixava entediado e fazia preocupados seus componentes familiares,
principalmente sua mulher, a quem desposara em 1913, no citado Município (onde
nasceu Capistrano de Abreu), ao qual pertenceu Palmácia até 1957.
O Facultativo (Lavras da Mangabeira-CE,15.02.1913;
11.11.1991) examinou-o detidamente e, em pouco tempo, foi bastante claro,
dizendo, em voz bem alta, então, ao paciente de ensurdecência avançada:
– A única doença que o senhor tem é sífilis. O SENHOR TEM MUITO É SÍFILIS!
– PRECISA
TOMAR ELIXIR 914!
Eis que, enquanto o Dr. Almir Pinto descartava
as luvas no banheiro, o homem, espoletado, foi-se embora, sem que o médico
visse. Pagou 60 mil réis da consulta e desabou para Palmácia no ônibus do Uchoa.
Lá se encheu de cachaça Palmacinha na
bodega do “Seu” Anastácio (da Dona Bibi) e, às quedas, voltou para sua casa, nos
Caboclos, sítio onde morava.
Todos ficaram atrapalhados com seu inusitado
comportamento, pois raramente bebia algo espirituoso, quando muito um conhaque
de alcatrão São João da Barra: água-que-passarinho-não-bebe...
jamais!
No outro dia, com ressaca imensa, trancou a
cara e não falou com ninguém. Na manhã seguinte, por muita insistência de seu
filho mais velho, o Jonas, ao perguntar o que o médico lhe havia dito, ele
respondeu:
– Estou me arrumando para ir-me embora pra Boa
Viagem!
– O Dr. Almir disse que eu tenho muito é chifre, desde 1914! (Contraíra matrimônio em 1913,
aos 20 anos).
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