domingo, 8 de março de 2015

ARTIGO (RMR)


TODO DIA ERA DIA DE ÍNDIO
Rui Martinho Rodrigues*



Poetas muita vez revelam um discernimento superior ao de pesquisadores. Um deles, comentando o dia do índio, lembrou, entre nostálgico e melancólico, o tempo em que “todo dia era dia de índio”, antes da conquista das Américas pelo colonizador europeu. Esquecidos de prestigiar o que deve ser prestigiado, valemo-nos da instituição de um dia para manifestar cortesia e honrar o que entendemos deva ser honrado. Temos o dia da criança, das mães, dos pais, do professor, do estudante, do índio, do motorista e tantos outros, inclusive o da mulher.

Certamente estamos reconhecendo alguma negligência para com aqueles a quem dedicamos um dia. Adotamos, no pós-guerra, o costume de verbalizar a consideração que temos para com os nossos conviventes. As gerações da primeira metade do século XX, no Brasil, não adotavam tal prática.

Nossos pais, avós dos mais novos, não diziam com tanta frequência como hoje que amavam as suas companheiras, mas elas eram muito mais amadas do que as de hoje. Estas ouvem declarações de amor a toda hora.

A mulher, exercendo o que a velha e boa sociologia chamava de papel social, no convívio com os filhos era mãe, sem ter um dia das mães. Mas era muito mais considerada pelos filhos. No papel de companheira era muito mais considerada pelos companheiros. No papel de professora era muito mais respeitada pelos alunos. Na condição anônima de senhora ou de senhorita recebia um tratamento muito mais respeitoso.

Hoje não é raro mães serem espancadas e até assassinadas por aqueles que saíram do seu próprio ventre. Os cônjuges se agridem muito mais. Há uma crescente violência nas relações de gênero. Não se trata só de aumento da visibilidade do fenômeno, embora isso também ocorra.

O trabalho extradoméstico foi apresentado como libertação do “pé do fogão” e como “conquista da militância” e das “lutas sociais”, mas resultou mesmo foi do apetite da Revolução Industrial por mão-de-obra; da convocação dos homens para as grandes guerras do século XX, levando a mulher a substituí-los nas fábricas; e da busca de uma segunda renda para a família, objetivando o acesso a uma cesta de consumo cada vez mais diversificada e mais sofisticada, oferecendo comodidade, conforto, segurança e atendendo às nossas vaidades. Estas coisas aconteceram nesta ordem cronológica.

A condição eufemisticamente denominada “rainha do lar”, foi trocada pela obediência ao “apito da chaminé de barro”, conforme o dito da canção popular de Noel Rosa. No lar ela era “rainha do fogão”, na fábrica era subordinada à “chaminé de barro”.

Assim como a promessa de uma sociedade da liberdade, da igualdade e da fraternidade levou a uma revolução – até hoje cantada em verso e em prosa por intelectuais “do bem” – a mui fraternamente guilhotinar seiscentas mil pessoas – assim também a “libertação do fogão” trouxe a superposição de jornadas de trabalho no lar à submissão aos ditames da linha de montagem. Eis as “conquistas” de que grupos de ativismo esforçam-se para assumir a autoria.

Milenarmente as sociedades organizavam-se das mais variadas formas, mas sempre observando o dimorfismo sexual, hoje chamado “dimorfismo de gênero”. Agora vivemos, pela primeira vez na história deste planeta, uma sociedade unissex. Homens e mulheres tendem às mesmas ocupações e a desenvolverem as mesmas habilidades, adotando os mesmos costumes. A igualdade relativa aos direitos adquiriu, para o bem ou para o mal, o significado de idênticos como pessoa.

Complementar à outra parte de uma relação, todavia, é quem apresenta uma característica que falta ao outro lado da interação. Na sociedade unissex todos são idênticos, um não é complementar ao outro. Este quadro é uma novidade histórica. Não se sabe no que vai dar. Até o momento, a transição enfrenta dificuldades, que poderão ser superadas, mas está sendo difícil, como se pode ver pelo incremento do chamado conflito de gênero.

Por isso precisamos de um dia da mulher, precisamos declarar-lhes o nosso amor, afirmar a nossa admiração e o nosso respeito, salvo se tais coisas forem evidentes, se todo dia, no nosso convívio, for dia da mulher, se ao invés de verbalizar estas coisas a nossa conduta seja a concretização delas.


*Rui Martinho Rodrigues
Professor – Advogado
Historiador - Cientista Político
Titular Emérito de sua Cadeira de nº 10

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