FÁBULAS
Manchetes Históricas e
Versão Tupiniquim
Vianney Mesquita*
Os escritores superficiais, como as toupeiras,
julgam frequentemente ser profundos, quando estão, no entanto, demasiadamente
perto da superfície. (WILLIAM SHENSTONE, poeta e paisagista inglês. Helesowen –
UK, 18.11.1714 – 11.02.1763).
As fábulas revestem
uma ordem textual literária, narração alegórica, em língua prosa ou em versos,
cujos protagonistas são animais transfigurados em pessoas (in anima nobili), com falas, costumes e outros haveres humanos. Em
geral, são produzidas para crianças e dotadas, no seu término, de fundo moral e
teor instrutivo.
O vocábulo tem étimo
latino e regista narrativa muito extensa e rica, radicada no sânscrito – grupo
de línguas e dialetos indo-áricos antigos do norte da Índia, sendo o védico e o
sânscrito de conteúdo clássico os mais conhecidos, de onde procedem as fábulas
indianas, popularizadas pela tradução árabe do século VIII, e que a tradição
atribui a autores lendários, como Pilpay e Lochman (HOUAISS; VILLAR SALLES. Dicionário... São Paulo: Objetiva,
2005).
Essas produções
remontam, por intermédio de uma versão pélvi (língua iraniana derivada do
antigo persa), a um original sanscrítico – o Pantchatantra (os cinco livros), obra de Vixenu Sharma (indiano
nascido na Caxemira), uma das mais antigas coleções de fábulas do Mundo.
Como se pode verificar
na imensa quantidade de vertentes librárias sob domínio público, de libérrima e
gratuita compulsação – hoje, também, em suportes eletrônicos – o gênero fabular
tem curso na maioria das literaturas mundiais e, em grande parte, abrange
repetições, modificadas, aumentadas, transpostas de lugar, com base na possível
produção de Esopo, fabulista grego (séc. VII e VI a.C.), de existência sublendária,
na expressão dessa vertente, “[...] gago, feio e corcunda, porém, com o
espírito engenhoso e sutil”. (LELLO & LELLO. Lello Universal – Dicionário... Porto: 1983, p. 886).
Esopo é admitido como o criador da fábula, a
quem se adjudicou um conjunto de pequenas estórias, nas quais os bichos (in anima vili) desempenham papéis que
fazem sentido do ponto de vista da moralidade, pois tomam o lugar de seres
humanizados e, assim, destes experienciam os dramas comuns.
De bom alvitre é informar, de pronto, que a
maioria dos produtores de estórias de tal natureza (senão todos) acompanhou o
Pai grego das fábulas, quer em traslados servis, ao jeito de pasticho, ou em
configurações estilísticas, conforme, verbi
gratia, o dito recurso à personificação e a recorrência aos procedimentos
animalescos, ao modo como se passou com o mais celebrado fabulista de todos os
tempos – a superar Esopo em esplendidez e fama – Jean de La Fontaine.
Há muitos deles, de
várias nacionalidades, no panteão da história (uns bem mais), como Caio Júlio
Fedro, macedônio autor de A Serpente
Fabulosa, A Garganta da Serpente
e A Raposa e as Uvas – esta é a mais
conhecida – no entanto, suas peças envolvem enredos que conformam sucessões das
primitivas ideações esopianas, segundo ocorre com muitos outros cultivadores
desse estalão literário, sempre na trilha inaugurada pelo Escravo de Xanto.
Alegoristas famosos,
da grandiosidade de Jean de La Fontaine (móvel principal desses comentários –
também continuador de Esopo), são Hesíodo de Ascra (O Gavião e o Rouxinol), François de Salignac de la Moth – Fenelon
– (Fábulas),
Charles Perrault (O Gato de Botas e A Gata Borralheira), Isaac Benserade (Soneto de Jó, Cleópatra, Balé dos Provérbios
– e outros balés, Fábulas de Esopo em
Quadras).
Aditam-se, ainda,
Manuel Maria Barbosa du Bocage (obra variada em sonetos e outros gêneros),
Filinto Elísio (pseudônimo do padre Manuel Francisco do Nascimento – Obras Completas), João Curvo Semedo
(tradutor de La Fontaine, autor de Observações
Médicas, Tratado da Peste e sua Preparação e Virtudes), João Batista da
Silva Leitão de Almeida Garret (Helena,
Folhas Caídas, Mérope), José Feliciano de Castilho de Barreto e Noronha (A União Ibérica por um Português), Nuno
Álvares Pereira Pato Moniz (A Estância do
Fado, O Nome, Ode Pindárica a Wellington) e tantos outros esópicos, na
Europa, Américas e, decerto (desconhecemos), nos outros três continentes.
É conveniente, também,
referenciar, por ser propício o instante, os Irmãos (germanos e germânicos)
Jacob Ludwig Carl Grimm (Hanau, 04.01.1785; Berlim, 20.09.1863) e Wilhelm Carl
Grimm (Hanau, 24.02.1786; Berlim, 16.12.1859), eméritos narradores de textos
fabulares, de projeção internacional desde suas primeiras produções,
configuradas em A Bela Adormecida no
Bosque, Rapunzel, Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve, O Lobo e as
Sete Crianças, Gato e Rato em Companhia, O Pássaro de Ouro, O Piolho e a Pulga etc.
Entre os brasileiros,
contabiliza-se, sob o espectro da História Literária mundial e no romaneio dos
mais célebres compositores em língua portuguesa, o carioca Joaquim José
Teixeira (Rio de Janeiro, 27.08.1811 – 01.01.1885), cuja criação principal é,
no âmbito fabular, A Coruja Mestra de
Canto, composta em verso de arte menor (pés heptassilábicos – sete
acentos), havendo publicado, também, entre muitos outros escritos, o livro La Fontaine e suas Fábulas. Tem
ressalto, ainda, no nosso País, o Padre José Joaquim Correia de Almeida,
mineiro de Barbacena (1820-1905), que escreveu Puerilidades de um Micróbio, Produções
da Caducidade e Decrepitude
Metromaníaca.
O escritor multifário
e eclético José Bento Monteiro Lobato, entretanto, é o mais conhecido no País,
haja vista seus produtos multíplices, incluindo apólogos. Lobato nasceu em
Taubaté (18.04.1882), num distrito hoje desmembrado desse município paulista e
alçado a sede municipal com o nome de Monteiro Lobato, de menos de cinco mil
habitantes, e foi a óbito em São Paulo, em 4 de julho de 1948. Urupês é seu livro magno, ao contar,
dentre muitas publicações, com Fábulas do
Marquês de Rabicó, O Gato Félix,
Cidades Mortas et reliqua.
Em harmonia com a
própria confinação da História, feito precursor de Jean de La Fontaine
(mencionado no desfecho destas curtas quanto despretensiosas notas) em França e
durante a Renascença, está demarcado na literatura o fato de haver operado
neste ofício Clément Marot (Cahors, 23.11.1493; Turim, 12.09.1544), fabulador
admirável, que fez, também, rondós, baladas e madrigais. Deixou, para
influenciar o Fabulista Champanhês, os trabalhos O Templo de Cupido, O Diálogo, Baladas, Loas e Epigramas.
Mathurin Régnier
(Chartres, 21.12.1573; Rouen, 22.10.1613), outra ascendência escritural do
Cantor de A Lebre e a Tartaruga, foi um
poeta satirista dotado de excelente veio, com vida boêmia, devasso e meio
chegado à licenciosidade. Para a posteridade, legou epístolas e elegias,
havendo, também, trazido consideráveis influxos aos ardis literários do
Metafórico da Champanha.
Experimentamos, neste
passo, a oportunidade salutar de encaminhar o encerramento do texto,
referindo-nos, superficialmente, ao francês Jean de La Fontaine, nascido na
região champanhesa, em Château-Thierry, a 8 de julho de 1621, com óbito em 13
de abril de 1695, em Paris.
La Fontaine é o mais
renomeado herdeiro e continuador da narração esópica no mundo, ao transportar,
por via das citadas influições de Marot e Régnier, as ideias inaugurais do
calibre fabular para o ambiente lítero-poético de todas as regiões, como
extraordinário inventor-narrador de joias personificadas por aves, mamíferos
insetos etc. e densas de recheio moralizador, bem assim de outros produtos de
castas artísticas diversificadas.
Resultados de suas
aproximações, na Ile de France (área metropolitana de Paris), com intelectuais
da dimensão de Nicolas Boileau-Despréaux, Pierre Corneille, Marie de Rabutin
Chantal (Madame de Sevigné), Jean-Baptiste Poquelin (Moliére) e Jean-Baptiste
Racine, foram seus dois primeiros rebentos – o poema Adônis e a comédia Clyméne.
A celebridade,
entretanto, somente se foi proporcionando, à medida que compunha contos e
fábulas, de início, pastichando Giovanni Boccaccio (1313-1375) e Ludovico
Ariosto (1474-1533), e, depois, em narrações de estórias fabulares dirigidas à
família de Luís XIV. Com a fabricação multímoda dos mais variados perfis
genéricos, de que se destaca o caráter licencioso, mas – diz a crítica –
inocente, deitou ferro no auge da fama, com edições de alevantado valor
estético, singular recepção leitora e acolhimento sob os maiores aplausos dos
analistas.
Seu principal, apesar
de repartir com Esopo os dividendos, pois resulta de circunstância imitativa,
foi A Cigarra e a Formiga (no
original, O Gafanhoto...), atribuído
ao Grego e pelo Francês recontado, mote para a conclusão desta crônica, ao nos
reportar a um novo autor fontaine-esopiano, o bem aceito cronista satírico
cearense Assis Martins, frequentador costumário dos media jornalísticos de Fortaleza, cuja graça embasa o remate do
escrito agora relatado.
Da colheita literária
lafontaineana, no contexto de múltiplas edições, estão Os Amores de Psique e Cupido, A Lebre e a Tartaruga, O Lobo e o
Cordeiro, O Leão e o Rato, Fábulas
Escolhidas Postas em Verso e Elegia
às Ninfas do Sena etc. etc.
A divisa temática da magnum opus esopo-lafontaineana descansa
nas razões exprimidas na sequência, por meio de uma tradução de Manuel Maria
Barbosa du Bocage, em verso de arte menor (redondilhos maiores) e livre menção
pelos leitores, a fim de introduzir a anedota-fábula de Assis Martins, com
versos da nossa lavra.
***
Tendo a cigarra em
cantigas/Passado todo o verão/Achou-se em penúria extrema/Na tormentosa
estação.
Não lhe restando
migalha/Que trincasse, a tagarela/Foi valer-se da formiga,/Que morava perto
dela.
Rogou-lhe que lhe
emprestasse,/Pois tinha riqueza e brio,/Algum grão com que manter-se/Té voltar
o aceso estio.
“Amiga”, diz a
cigarra,/-“Prometo, à fé d’animal,/Pagar-vos antes d’agosto/Os juros e o
principal”.
A formiga nunca
empresta,/Nunca dá, por isso junta./”No verão em que lidavas?” /À pedinte ela
perta.
Responde a outra: “Eu
cantava Noite e dia, a toda a hora.”/Oh! Bravo!”, torna a formiga. /Cantavas?
Pois dança agora!”
***
Nosso cronista Assis
Martins sugere a vingança da cigarra por não haver obtido o empréstimo. Louvado
na versão dele em prosa, produzimos esses decassilábicos portugueses e estrofes
de dez versos satíricos, bem assim com proposta indecorosa da formiga, conforme
vem.
Ao
retornar de refeição batuta,
Sábado
quente, três horas da tarde
A
cigarra, em exortação covarde,
Caçoou
da formiga em sua labuta,
Pois
prosseguia, na eterna luta,
Ao
armazenar bens para o futuro
Porque
o devir resta bastante escuro
E não
há ninguém que lhe garanta,
Se o
seu labor eterno não suplanta,
Sem
trabalho livrar-se do esconjuro.
– Tu
devias não ser abestalhada,
Debaixo
de transpiração imensa
E,
no lugar de uma peleja intensa,
Podias,
como eu, – tão bem trajada –
De
viola no saco, maquiada,
Receber
dos rapazes galanteios,
Fazer
nos salões saracoteios,
Assentir
em asserções decorosas,
Recebendo
ramalhos de rosas
Sob
elogios empinar os seios.
–
Estou indo à Europa-Continente
Entoar
e valsar nos bailes chics,
Perambular
em férteis piqueniques,
Em
urbes grandes de vida ridente,
De
movimento lépido e crescente;
Andar
por vinhas, birras e alambiques,
A
degustar porções espirituosas
Extasiar-me
em gozos envolventes
Dos
carrilhões fruir os sons dolentes
E
dos vergéis as plantas olorosas.
–
Pretendo ir à ínclita Lisboa,
Londres,
Madrid, São Petesburgo e Praga;
Porto,
Coimbra, Azeitão e Braga,
(Região
linda; lá minh ‘alma voa,
Aquinhoada
de tamanha loa).
Pretendo
ir à Budapeste nobre
(Onde
imenso donaire se descobre)
A
Bucareste, Atenas, Barcelona
Valença,
Sevilha, Tarragona [...]
Vamos
comigo, formiguinha pobre!
A
Formiga, então, se exasperou,
Por
completo perdeu a esportiva.
E,
em manifestação volitiva,
Mui
revoltadamente retrucou,
Ao
expressar que o tradutor errou
Quando
a catalogou como cigarra,
Que
não tange viola nem guitarra,
Pois,
enfim, era um mero gafanhoto,
Mal-ajambrado,
fedorento e roto
E na
história ficou, porque na marra!
“–
Jamais irei a uma viagem dessas
Em
companhia assim tão sem futuro.
Prefiro
em minha terra dar o duro
Para
da vida honrar as promessas.”
Procurou
saber, no entanto, às pressas
Se
ela não ia à França (não condiz!),
Tampouco a Cálcis,
Atenas e Skyes.
Ao que respondeu
incontinenti:
– “Claro que sim,
pois, evidentemente,
–
“Não tem sentido Europa sem Paris”.
Com
efeito, bem menos agastada,
Desculpou-se
a Formiga à circunstante.
Na
condução desta conversa avante,
Insistiu,
veramente interessada,
Se
Atenas estava programada.
Então,
como Deus é do Mundo o arquê,
Para
a viagem, atenção! Porque –
Sem
tentar fazer qualquer mise-en-scène,
Caso
encontre Esopo e La Fontaine
Podem
ir vocês três pra pequepê.
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