OS SENTIDOS
DA INCONFORMIDADE
Rui Martinho Rodrigues*
A inconformidade está em alta. O seu significado é a nossa Esfinge
de Tebas. Juízo de valor pode ser um dos significados da ausência de acordo,
insubmissão, divergência, resistência e rebeldia, que são possíveis sinônimos
de inconformidade, segundo os dicionários.
Tais sentimentos e atitudes podem resultar de um juízo de valor ou
de um juízo de realidade. A ética da convicção está mais ligada ao aspecto
valorativo e a ética da responsabilidade que ao juízo de fato. A primeira é
mais representativa da subjetividade e mais permeável ao voluntarismo; a
segunda tem caráter objetivo, é mais inclinada ao reconhecimento da reserva do
possível.
As fronteiras entre a inconformidade e a indignação, a ira que se
pretende santa, o ódio e a hipocrisia ou a demagogia repousam sob terreno
movediço. A indignação do outro é sempre a expressão de ódio ou hipocrisia. A
própria inconformidade tende a apresentar-se como revolta, em face da injustiça
e da violação de valores.
A ética da convicção, que subjaz ao discurso e ao comportamento
indignados, é contrária ao relativismo axiológico e cognitivo da
pós-modernidade.
Paradoxalmente, adeptos do dito relativismo, ainda que sob a
camuflagem do perspectivismo, manifestam com sofreguidão a ira santa dos
inconformados. A repulsa radical pode não promover a superação do que condena,
mas pode ser útil ao proselitismo político, captação de votos e destruição a
reputações.
O relativismo retira a base lógica do juízo de valor. Não há ética
sólida sob o relativismo. Resta o juízo de realidade para legitimar a
inconformidade, salvo se adotarem como arrimo algo como o jusnaturalismo, que invoca
referências como o cosmocentrismo, o teocentrismo ou uma razão unívoca,
universal e aistórica. A revanche do sagrado chegou ao discurso político sob
influência confessional.
As convicções dificultam a solução de problemas, porque não são
negociáveis nem tolerantes e desprezam os fatos. Mas o espírito confessional
não está presente apenas nos meios eclesiásticos. As religiões adjetivadas como
civis, políticas ou (pseudo)seculares são tão ou mais intolerantes e tendentes
a demonizar o outro, porque têm o DNA das utopias. Os utopistas, porém, não dizem
como conviverão com a oposição. Só a utopia celestial confessa que enviará os
dissidentes para o inferno.
O juízo de realidade exige capacidade de análise, requer
conhecimento, equilíbrio e não emite certidão de virtude cívica. Não admira que
seja hostilizado pelo relativismo pós-moderno. Mas isso requer outra reflexão sobre
a incomunicabilidade dos paradigmas ou imunização cognitiva.
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