sexta-feira, 5 de outubro de 2018

ARTIGO - Decifrando a Violência (RMR)


DECIFRANDO A VIOLÊNCIA
Rui Martinho Rodrigues*



A criminalidade, tanto na modalidade violenta como de punhos de renda, alcançou níveis intoleráveis. O debate sobre a tragédia que isso representa é oportuno, por mais repetido que seja. É preciso decifrar o mecanismo que gera o fenômeno. Conflitos resultam de pretensão resistida. Ambas as atitudes podem resultar do interesse material, do campo dos valores, ou da paixão.


Os caminhos pelos quais se soluciona a colisão entre a reivindicação e o obstáculo por ela encontrado são: renúncia de uma das partes; transação, entendida como renúncia, parcial e mútua, negociada; mediação, na forma de entendimento entre as partes, obtido com ajuda de terceiros; arbitragem, compreendida como solução decidida por terceiros e aceita por ambos os lados; e judicialização do conflito. Quando tudo isso não funciona, resta a autotutela, que é a solução imposta por uma das partes, valendo-se de seus próprios meios.


A renúncia e a transação podem resultar do reconhecimento: da pretensão ou da resistência do outro como legítima; da tolerância magnânima; do pragmatismo de quem reconhece a conveniência de uma solução mais vantajosa que um conflito; ou da submissão inconformada, mas que se reconhece impotente. Aceita o direito do outro ou faz concessão, no todo ou em parte, quem respeita a lei, os costumes e os coloca acima dos próprios interesses materiais e das paixões ou respeita os valores do outro.

Temos uma sociedade violenta. Não reconhecemos a legitimidade da pretensão ou da resistência do outro e não temos longanimidade. Não optamos pela renúncia ou a transação considerando a conveniência dos resultados práticos, como a paz.

Conflitos se instalam e se agravam na ausência de mediação e arbitragem. Houve um tempo em que, diante de uma situação potencialmente conflitante, fazia-se a advertência: “vou dizer a tua mãe!”. Na escola, um menino podia comunicar ao professor. Já não temos mediadores nem árbitros em nosso meio social. As partes não têm a quem apelar na parentela, na vizinhança e até nas instituições, principalmente nas escolas. Resta a intervenção do Estado, depois que os pais e professores ficaram intimidados diante de uma possível intervenção do Conselho Tutelar.

O nosso ordenamento jurídico confia mais na burocracia do Estado do que nos pais. Assim chegamos ao policial e ao juiz. O primeiro não tem autoridade para arbitrar conflitos, limitando-se a conter as práticas agressivas ou a intervir depois que a violência é praticada. O juiz só age quando provocado, e em muitos casos a população não busca a tutela jurisdicional, por nela desacreditar.

É compreensível: a justiça anda a passo de lesma reumática, conforme já se disse, assoberbada pelo excesso de demandas, retardada pela burocracia de um direito processual que eterniza os processos, e pela incúria dos recursos humanos do aparato judicial, cuja elevada qualificação técnica não tem resultado em prestação jurisdicional célere e minimamente previsível, a começar pelo Pretório Excelso.



A pós-moralidade, de que falou Giles Lipovetsky (1944 – vivo), não inspira renúncia magnânima, nem transação baseada no respeito ao direito ou valor do outro. Aprendemos a desqualificar os conceitos dos quais discordamos como “preconceito” e a odiar a resistência aos nossos desígnios, atribuindo a ela o ódio que sentimos e praticamos.

Resta a autotutela, encorajada pela impunidade, em meio à proliferação de conflitos multiplicados pela mudança cultural rápida e profunda; pela fragilidade dos laços sociais; pela perda de prestígio dos mediadores e árbitros tradicionais; pela anomia da era pós-moral. Os sessenta e três mil homicídios em apenas um ano resultam disso.


Políticas de segurança, ao lado de outras políticas públicas, poderão produzir algum resultado, mas a tendência para a violência continuará forte, enquanto perdurar a situação descrita. Leis que, ao invés de legitimar o costume, procuram introduzir transformações históricas, copiando práticas alienígenas, só agudizam o problema. O conflito nasce das expectativas contrariadas nas relações humanas. A mudança cultural profunda e rápida só promove a frustração das expectativas aludidas.



NOTA EDITORIAL ILUSTRATIVA


A PAZ

(...) Tomemos como exemplo o pomo clássico, e imaginemos que, de dois indivíduos, cada um tenha para si uma maçã. Enquanto cada um deles se conformar com essa igualdade teremos então estabelecida a melhor paz.

Mas pode ocorrer que um dos dois sujeitos do exemplo, por uma daquelas compulsões animais supracitadas, passe a desejar ter para si mais do que tem, e então tente conquistar a maçã alheia. Nessa nova hipótese, a primeira fase do processo conflituoso entra em curso. Haverá, por conseguinte, um opressor e um oprimido, que medirão forças, fazendo eclodir a violência.

É forçoso deduzir que o mais forte vença a luta e adquira a segunda maçã para o seu prol, ou parte dela, e como de regra ocorre, pela lógica da guerra, essa aquisição do vencedor se legitima.

Tem ainda acontecido que o vencedor da contenda resolva aproveitar para si maça e meia tão-somente, e então, até para estabelecer mais fácil controle do oponente, abandone a ele a outra metade. Se, reconhecendo a derrota, o perdedor aceitar como prêmio de consolação a ração menor, eis a paz romana.

Dar-se-á também alguma vez que um dos dois proprietários das maçãs íntegras, dono de espírito humanitário mais evoluído, admita que o outro merece maçã e meia, quem sabe por lhe reconhecer o mérito de ter cultivado a macieira, e por isso espontaneamente lhe conceda um quinhão maior da fruta, tendo em vista, inclusive, que meia maçã, nesta hipótese, o satisfaça. Novamente, no exemplo presente, a paz cristã.

Essa simbólica maçã representa aqui os bens da vida – a liderança, o comando, o poder, o patrimônio, a renda, o amante, o cargo, o título – e os conflitos que ela suscita (seja na forma de guerrilha, combate sangrento ou guerra fria), podem surgir no casamento, no condomínio, na família, na escola, nos negócios, na empresa, na política, entre os países.


Excerto do livro EutimiaO Segredo da Felicidade Essencial (VASCONCELOS, Reginaldo. RDS Editora. Fortaleza-Ce, 2013, p. 76-77).



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