DECIFRANDO A VIOLÊNCIA
Rui Martinho Rodrigues*
A criminalidade, tanto na modalidade violenta como de punhos de
renda, alcançou níveis intoleráveis. O debate sobre a tragédia que isso
representa é oportuno, por mais repetido que seja. É preciso decifrar o
mecanismo que gera o fenômeno. Conflitos resultam de pretensão resistida. Ambas
as atitudes podem resultar do interesse material, do campo dos valores, ou da
paixão.
Os caminhos pelos quais se soluciona a colisão entre a reivindicação
e o obstáculo por ela encontrado são: renúncia de uma das partes; transação,
entendida como renúncia, parcial e mútua, negociada; mediação, na forma de
entendimento entre as partes, obtido com ajuda de terceiros; arbitragem,
compreendida como solução decidida por terceiros e aceita por ambos os lados; e
judicialização do conflito. Quando tudo isso não funciona, resta a autotutela,
que é a solução imposta por uma das partes, valendo-se de seus próprios meios.
A renúncia e a transação podem resultar do reconhecimento: da
pretensão ou da resistência do outro como legítima; da tolerância magnânima; do
pragmatismo de quem reconhece a conveniência de uma solução mais vantajosa que
um conflito; ou da submissão inconformada, mas que se reconhece impotente.
Aceita o direito do outro ou faz concessão, no todo ou em parte, quem respeita
a lei, os costumes e os coloca acima dos próprios interesses materiais e das
paixões ou respeita os valores do outro.
Temos uma sociedade violenta. Não reconhecemos a legitimidade da pretensão
ou da resistência do outro e não temos longanimidade. Não optamos pela renúncia
ou a transação considerando a conveniência dos resultados práticos, como a paz.
Conflitos se instalam e se agravam na ausência de mediação e
arbitragem. Houve um tempo em que, diante de uma situação potencialmente
conflitante, fazia-se a advertência: “vou dizer a tua mãe!”. Na escola, um
menino podia comunicar ao professor. Já não temos mediadores nem árbitros em
nosso meio social. As partes não têm a quem apelar na parentela, na vizinhança
e até nas instituições, principalmente nas escolas. Resta a intervenção do
Estado, depois que os pais e professores ficaram intimidados diante de uma
possível intervenção do Conselho Tutelar.
O nosso ordenamento jurídico confia mais na burocracia do Estado do
que nos pais. Assim chegamos ao policial e ao juiz. O primeiro não tem
autoridade para arbitrar conflitos, limitando-se a conter as práticas
agressivas ou a intervir depois que a violência é praticada. O juiz só age
quando provocado, e em muitos casos a população não busca a tutela
jurisdicional, por nela desacreditar.
É compreensível: a justiça anda a passo de lesma reumática,
conforme já se disse, assoberbada pelo excesso de demandas, retardada pela
burocracia de um direito processual que eterniza os processos, e pela incúria
dos recursos humanos do aparato judicial, cuja elevada qualificação técnica não
tem resultado em prestação jurisdicional célere e minimamente previsível, a
começar pelo Pretório Excelso.
A pós-moralidade, de que falou Giles Lipovetsky (1944 – vivo), não
inspira renúncia magnânima, nem transação baseada no respeito ao direito ou
valor do outro. Aprendemos a desqualificar os conceitos dos quais discordamos
como “preconceito” e a odiar a resistência aos nossos desígnios, atribuindo a
ela o ódio que sentimos e praticamos.
Resta a autotutela, encorajada pela impunidade, em meio à
proliferação de conflitos multiplicados pela mudança cultural rápida e
profunda; pela fragilidade dos laços sociais; pela perda de prestígio dos mediadores
e árbitros tradicionais; pela anomia da era pós-moral. Os sessenta e três mil
homicídios em apenas um ano resultam disso.
Políticas de segurança, ao lado de outras políticas públicas,
poderão produzir algum resultado, mas a tendência para a violência continuará
forte, enquanto perdurar a situação descrita. Leis que, ao invés de legitimar o
costume, procuram introduzir transformações históricas, copiando práticas
alienígenas, só agudizam o problema. O conflito nasce das expectativas
contrariadas nas relações humanas. A mudança cultural profunda e rápida só
promove a frustração das expectativas aludidas.
NOTA EDITORIAL ILUSTRATIVA
A PAZ
(...) Tomemos como exemplo o pomo
clássico, e imaginemos que, de dois indivíduos, cada um tenha para si uma maçã.
Enquanto cada um deles se conformar com essa igualdade teremos então estabelecida
a melhor paz.
Mas pode ocorrer que um dos dois
sujeitos do exemplo, por uma daquelas compulsões animais supracitadas, passe a
desejar ter para si mais do que tem, e então tente conquistar a maçã alheia.
Nessa nova hipótese, a primeira fase do processo conflituoso entra em curso.
Haverá, por conseguinte, um opressor e um oprimido, que medirão forças, fazendo
eclodir a violência.
É forçoso deduzir que o mais
forte vença a luta e adquira a segunda maçã para o seu prol, ou parte dela, e
como de regra ocorre, pela lógica da guerra, essa aquisição do vencedor se
legitima.
Tem ainda acontecido que o
vencedor da contenda resolva aproveitar para si maça e meia tão-somente, e
então, até para estabelecer mais fácil controle do oponente, abandone a ele a outra
metade. Se, reconhecendo a derrota, o perdedor aceitar como prêmio de
consolação a ração menor, eis a paz romana.
Dar-se-á também alguma vez que um
dos dois proprietários das maçãs íntegras, dono de espírito humanitário mais
evoluído, admita que o outro merece maçã e meia, quem sabe por lhe reconhecer o
mérito de ter cultivado a macieira, e por isso espontaneamente lhe conceda um
quinhão maior da fruta, tendo em vista, inclusive, que meia maçã, nesta
hipótese, o satisfaça. Novamente, no exemplo presente, a paz cristã.
Essa simbólica maçã representa
aqui os bens da vida – a liderança, o comando, o poder, o patrimônio, a renda,
o amante, o cargo, o título – e os conflitos que ela suscita (seja na forma de
guerrilha, combate sangrento ou guerra fria), podem surgir no casamento, no
condomínio, na família, na escola, nos negócios, na empresa, na política, entre
os países.
Excerto
do livro Eutimia – O Segredo da Felicidade Essencial (VASCONCELOS,
Reginaldo. RDS Editora. Fortaleza-Ce, 2013, p. 76-77).
Nenhum comentário:
Postar um comentário