A REVANCHE DO SAGRADO
Rui Martinho Rodrigues*
O Iluminismo desqualificava o sagrado. Uma razão unívoca, apta a
oferecer todas as explicações, demonstrável até a saciedade era o arrimo da
proposta de subsunção de tudo a uma lógica que aqui chamaremos analogicamente
de “omnívora”.
Os sucessos das ciências da natureza, exibindo previsões precisas,
antecipando datas de eclipses e passagens de cometas, embasando gigantesco
desenvolvimento tecnológico, encorajou o otimismo e a arrogância cientificista do
iluminismo.
As ciências da cultura chegaram a copiar a física. Auguste Comte
(1798 – 1857) é o exemplo clássico desta tendência. Paradoxalmente, porém, o
pensador positivista, adiando a concretização do estado positivo (etapa
evolutiva na qual chegaríamos do domínio pleno da razão “omnívora”), recuou e
transformou o positivismo na religião da humanidade.
Comte era pacifista, internacionalista e ateu, mas fundou uma
religião cujos cultos começavam com um hino de guerra que também era o hino
nacional da França. A razão por ele defendida tão ardorosamente estava prenhe
de contradições, apesar de não invocar a “senhora de costumes cognoscitivos
fáceis”, como Lucio Colletti (1924 – 2001) denominava a dialética.
A pós-modernidade trouxe o que Leszec Kolakowski (1927 – 2009)
reconheceu como a revanche do sagrado sobre o profano ou, para outros, pós-secularização. A clareza das ideias requer a explicitação do sentido em que
empregamos as palavras. Falar do sagrado, profano, secularização é falar de
religião e do que dela se distingue. Thomas O’dea (1915 1974), ateu, foi feliz
ao expressar o que seja religião, indo além da etimologia latina (religare), situando o fenômeno religioso
como uma busca por superação da finitude, da radicalidade e da totalidade. A
pós-secularização deriva do reconhecimento das limitações da razão que se
supunha “omnívora”, capaz de devorar todos os problemas e explicar tudo.
Revelou-se, assim, a mera instrumentalidade da razão que Galileu
(1564 – 1642) descreveu como esforço de explicação das relações entre coisas,
sem nenhuma reflexão sobre o estatuto ôntico das mesmas, sem pretensão à ontologia,
sem propor o dever ser, sem perquirir sobre o sentido dos fenômenos, tratando
de juízos de fato, não de valor.
O desprezo pelo sagrado já não reina absoluto. Narrativas havidas
como científicas estão cheias de proposições da esfera do dever ser, campo no
qual o conhecimento não tem a consistência das ciências da natureza, não é
capaz de fazer vaticínios tão precisos quanto os da Física. Utopias
apresentadas como ciência foram reprovadas no exame da história entendida como
fato, embora tenham resiliência no âmbito da História, que é o campo de estudo
e da reflexão sobre os fatos.
A revanche do sagrado e o abalo das narrativas das ciências da cultura
reintroduziram a temática religiosa na política. O acesso aos bens e serviços
que imunizaram o proletariado contra o canto de sereia revolucionário. Os
arautos da reengenharia da sociedade e do homem não esmorecem diante dos
próprios fracassos.
Embora lhes falte uma ciência exata, querem empreender uma reengenharia.
Desprezam a volição do homem que pretendem transformar. Desclassificam toda
resistência que encontram como ignorância ou maldade. A substituição do
proletariado como massa de manobra se fez pela convocação dos que sofrem
discriminações odiosas e dos que sentem mais agudamente o mal-estar em face dos
limites impostos pela vida civilizada, conforme o famoso opúsculo de Freud
(1856 – 1939). A luta revolucionária migrou para o campo da cultura.
Buscando aparentar virtude, seguindo o conselho de Maquiavel (1469
– 1527) e a prática dos fariseus, a reengenharia social e antropológica
desfralda bandeiras de defesa das minorias. Não vacila em agredir os conceitos
da moral conservadora, desqualificando-os como preconceito, ignorância, fobia e
fascismo, sem abrir mão, paradoxalmente, do relativismo cognitivo e axiológico
e querendo implantar uma censura.
Atribuir ódio ao outro é a tendência de quem se enche de ódio em
face da resistência ao projeto de dominação oculto sob o manto da solidariedade
e da liberdade. O sofisma consiste em transferir o ônus da solidariedade para o
Estado, cujo financiamento é atribuído a terceiros e propor a quimérica
igualdade de ser, para o que precisa suprimir a liberdade de expressão e de
agir.
Entre os gregos havia a deusa da Bem-Aventurança ou da Mentira,
para os seus críticos, que oferecia desfrute sem esforço. Hoje a deusa da
mentira propõe o mesmo, desqualificando a superação das dificuldades existenciais
pela via do esforço como injustiça. A revanche do sagrado se ergue contra o
neofarisaísmo e desperta ódio.
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