A CALVA
Reginaldo Vasconcelos*
Reginaldo Vasconcelos*
Ele casara cedo, e era feliz. O primeiro filho já vingara quando
a primeira crise de nostalgia da vida de solteiro bateu forte. Os mesmos
amigos, os mesmos bares, a mesma faculdade, a antigas namoradas ainda cheirando
a flores orvalhadas, em pleno frescor da juventude.
Nada contra aquela que casualmente elegera e com quem firmara o
compromisso vitalício, e que dele se tornara dependente, agora lhe dando o
primeiro herdeiro, a cara dele mesmo – segundo a família propalava – as mãos
dos Corrêia, o nariz dos Araújo.
Mas na cidade vizinha que ele frequentava a serviço ninguém ia
saber sobre a família que formara, de modo que, tudo fazia crer, seria possível
manter por lá um universo amoroso paralelo, que somente os parceiros mais íntimos
poderiam conhecer – pois afinal uma aventura amorosa absolutamente secreta não tem
graça.
A moça era linda – e se bela de fato não fosse era sestrosa, de um
charme intenso. Tinha um andar bailado e uma boca carnuda cujos beijos sabiam a
caju doce. Quando abria um sorriso parecia a aurora rompendo a madrugada, cheia
de promessas de indizíveis alegrias e prazeres.
E a vida transcorria normalmente entre os dois polos até que um
dia veio a notícia aterradora. A namorada engravidara. Então urgia contar a ela
que era casado, e não foi nada fácil – mas que não se preocupasse que ele
reconheceria o filho e não lhe deixaria faltar nada – embora não pudesse
assumir a relação. Drama, choro, tristeza, crise, fofoca.
Já esperando o segundo
filho a jovem consorte oficial soube da outra e sua cria, na outra cidade, que ele ainda
quis negar, até saber ser a fonte fidedigna, impossível desmentir. Drama,
choro, tristeza, crise, fofoca, tudo se repetindo do lado de cá da vida dele.
Mas a vida seguiu parcialmente normal, embora do lado de lá se
tenha instalado uma mágoa indelével e um dívida dolorida, e do lado de cá uma
ponta de rancor incurável e uma cobrança moral subliminar que feriu para sempre
o relacionamento do casal – pois um espelho quebrado não reflete nunca mais a
mesma imagem.
Não é que a esposa tivesse perdido a confiança, como ocorre às
vezes no adultério revelado, mas, muito pior, aquela perdera sequer a intenção
de confiar. Não havia mais interesse, tudo fazia para o marido como quem presta
um favor de má-vontade, enquanto o tempo ia operando em cada um as naturais alterações da maturidade. Até que o tempo afastou a poeira pretérita dos fatos e
ainda um terceiro filho aconteceu, para selar aquela família e consagrar uma
paz gelada.
Mas, conforme prometera, ele assumiu o rebento adulterino, uma
filha que se fez adolescente, à qual nunca faltou a pensão mensal e o bom presente,
nos aniversários, nas quatro festas do ano, visitando-a com frequência, pois
prosperara na profissão e as suas condições econômico-financeiras lhe permitiam
garantir um bom padrão de vida dos dois lados – lados que jamais se
aproximaram.
Um dia a mocinha quis o pai no colégio em que estudava, para uma
festa na qual as famílias dos colegas estariam. Ele não podia lhe negar esse
capricho, embora temendo o constrangimento de encontrar por lá alguém da
parentela, dele ou da esposa, que as duas cidades eram distantes para o segredo
amoroso dos meninos, mas muito próximas para o bom nome de um respeitável
cidadão.
Foi, mas com a desculpa da viagem, cuidou de chegar atrasado à
quadra de esportes em que o evento acontecia, e ficou de pé nas últimas
fileiras de retardatários, muito providencialmente, lobrigando sobre os ombros
e entre as cabeças que ficavam à sua frente. Porém a menina, angustiada com a
sua ausência, localizou-o de repente, com a acuidade vivaz da adolescência, e
lá do centro do grande estádio em festa esgoelou-se: “Gente! Chegou o meu pai!”
– apontando na sua direção.
Ele surpreendeu-se e sorriu amarelo para ela,
discretamente, ainda imaginando que no meio tantos pais talvez não o
identificassem claramente. “Aquele careca ali; aquele é o meu pai!” – a mocinha
especificou cheira de orgulho. Ele correu a vista com o canto do olho e
constatou que sua calva era a única a reluzir por ali, entre tantas cabeleiras.
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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