quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

CONTO (RV)

A CALVA
Reginaldo Vasconcelos*



Ele casara cedo, e era feliz. O primeiro filho já vingara quando a primeira crise de nostalgia da vida de solteiro bateu forte. Os mesmos amigos, os mesmos bares, a mesma faculdade, a antigas namoradas ainda cheirando a flores orvalhadas, em pleno frescor da juventude.

Nada contra aquela que casualmente elegera e com quem firmara o compromisso vitalício, e que dele se tornara dependente, agora lhe dando o primeiro herdeiro, a cara dele mesmo – segundo a família propalava – as mãos dos Corrêia, o nariz dos Araújo.  

Mas na cidade vizinha que ele frequentava a serviço ninguém ia saber sobre a família que formara, de modo que, tudo fazia crer, seria possível manter por lá um universo amoroso paralelo, que somente os parceiros mais íntimos poderiam conhecer – pois afinal uma aventura amorosa absolutamente secreta não tem graça.

A moça era linda – e se bela de fato não fosse era sestrosa, de um charme intenso. Tinha um andar bailado e uma boca carnuda cujos beijos sabiam a caju doce. Quando abria um sorriso parecia a aurora rompendo a madrugada, cheia de promessas de indizíveis alegrias e prazeres.

E a vida transcorria normalmente entre os dois polos até que um dia veio a notícia aterradora. A namorada engravidara. Então urgia contar a ela que era casado, e não foi nada fácil – mas que não se preocupasse que ele reconheceria o filho e não lhe deixaria faltar nada – embora não pudesse assumir a relação. Drama, choro, tristeza, crise, fofoca.

Já esperando o segundo filho a jovem consorte oficial soube da outra e sua cria, na outra cidade, que ele ainda quis negar, até saber ser a fonte fidedigna, impossível desmentir. Drama, choro, tristeza, crise, fofoca, tudo se repetindo do lado de cá da vida dele.

Mas a vida seguiu parcialmente normal, embora do lado de lá se tenha instalado uma mágoa indelével e um dívida dolorida, e do lado de cá uma ponta de rancor incurável e uma cobrança moral subliminar que feriu para sempre o relacionamento do casal – pois um espelho quebrado não reflete nunca mais a mesma imagem.

Não é que a esposa tivesse perdido a confiança, como ocorre às vezes no adultério revelado, mas, muito pior, aquela perdera sequer a intenção de confiar. Não havia mais interesse, tudo fazia para o marido como quem presta um favor de má-vontade, enquanto o tempo ia operando em cada um as naturais alterações da maturidade.  Até que o tempo afastou a poeira pretérita dos fatos e ainda um terceiro filho aconteceu, para selar aquela família e consagrar uma paz gelada.

Mas, conforme prometera, ele assumiu o rebento adulterino, uma filha que se fez adolescente, à qual nunca faltou a pensão mensal e o bom presente, nos aniversários, nas quatro festas do ano, visitando-a com frequência, pois prosperara na profissão e as suas condições econômico-financeiras lhe permitiam garantir um bom padrão de vida dos dois lados – lados que jamais se aproximaram.

Um dia a mocinha quis o pai no colégio em que estudava, para uma festa na qual as famílias dos colegas estariam. Ele não podia lhe negar esse capricho, embora temendo o constrangimento de encontrar por lá alguém da parentela, dele ou da esposa, que as duas cidades eram distantes para o segredo amoroso dos meninos, mas muito próximas para o bom nome de um respeitável cidadão.  

Foi, mas com a desculpa da viagem, cuidou de chegar atrasado à quadra de esportes em que o evento acontecia, e ficou de pé nas últimas fileiras de retardatários, muito providencialmente, lobrigando sobre os ombros e entre as cabeças que ficavam à sua frente. Porém a menina, angustiada com a sua ausência, localizou-o de repente, com a acuidade vivaz da adolescência, e lá do centro do grande estádio em festa esgoelou-se: “Gente! Chegou o meu pai!” – apontando na sua direção.

Ele surpreendeu-se e sorriu amarelo para ela, discretamente, ainda imaginando que no meio tantos pais talvez não o identificassem claramente. “Aquele careca ali; aquele é o meu pai!” – a mocinha especificou cheira de orgulho. Ele correu a vista com o canto do olho e constatou que sua calva era a única a reluzir por ali, entre tantas cabeleiras.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
          Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ      

      

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