terça-feira, 20 de janeiro de 2015

CRÔNICA (RV)

BUNDA
Reginaldo Vasconcelos*


A bunda é a bunda / redunda. (Carlos Drummond de Andrade)


Conta o jornalista Goulart de Andrade que, durante os anos de chumbo, apresentando ele ao vivo uma matéria de TV, foi tirado do ar imediatamente, pelos censores do Governo, por ter pronunciado o inocente e prosaico termo “bunda”. A emissora fez gestões junto aos homens do poder, ou recorreu à Justiça – o que talvez na época fosse menos producente –  de sorte que dias depois o programa do Goulart voltou ao ar. E a primeira palavra que ele então pronunciou ao microfone, logo que sobre ele se acenderam as gambiarras, foi a própria: “BUNDA!”.

Diz ele que o fez de boca cheia, fazendo rebumbar pelas bochechas toda a sonoridade rotunda do vocábulo. E em seguida dissecou-o etimologicamente, como para tornar evidente que não cometera nenhuma grosseria: “Étimo de origem africana, do idioma ‘quimbundo’, que no Brasil colônia designava os indivíduos dos povos ‘bundos’, de marcada esteatopigia, por isso mesmo passando a indicar a região glútea das pessoas”.

Meus conhecimentos de fisiologia são modestos, mas já estive lendo que as volumosas nádegas femininas seriam uma reserva de energia, na forma de gorduras nobres, azeite orgânico de composição delicadíssima. Sim, porque tais óleos se prestariam a suprir as necessidades nutricionais dos embriões, razão pela qual as gestantes costumam ganhar traseiros maiores. Não sei. O que sei é que entre nós a bunda tornou-se o maior ícone da beleza feminina – talvez, na hipótese acima, subliminarmente sugerindo boa saúde e instintivamente recomendando uma melhor maternidade.

É verdade que o mundo da moda tem pregado o contrário, elegendo corpos esquálidos para ambular nas passarelas, buscando no paradigma europeu o modelo da elegância – costume que começa a ser repreendido, por causar nas moças graves distúrbios psíquicos de natureza alimentar. O fato é que não tem jeito: para encantar o homem brasileiro, na prática, a mulher tem que exibir forma de ânfora – ser esbelta como uma estátua grega,  mas trazendo sempre, abaixo da cintura, o voluptuoso bulbo anatômico.

A propósito, presenciei numa de nossas praias, certa vez, uma interessante “guerra de nádegas”, a se desenrolar ante meus olhos, estes olhos que entre muitos outros tornaram-se de repente no objeto da refrega, numa disputa cômica das moças pela mirada masculina mais deslumbrada e mais lasciva.

Naquela barraca de praia em Fortaleza duas atléticas louras  paulistas exibiam sua plástica, esparramadas ao sol, em decúbito ventral, e por isso mesmo, num raio de vinte metros, nenhum banhista que estivesse sobre aquelas areias tinha paz. Os homens inquietos, todos de olhos cúpidos, mal disfarçando a excitação; as mulheres, fuzilando de inveja ou de ciúme.

As nádegas douradas das turistas, untadas de óleo, medradas de pelugem, eram como quatro pêssegos imensos – impossível fugir dessa comparação lugar-comum, porquanto tão perfeita e exata.  Vez por outra cada uma delas fingia examinar, por sobre o ombro, a própria derrière, aproveitando o pretexto para, por sob os óculos de sol, correr a vista na platéia e conferir a adoração que despertava.

Mas quando desfrutavam sozinhas os píncaros da glória narcisista, as duas beldades foram atingidas por uma cruel intervenção no cenário praiano: a chegada de um ruidoso grupo de adolescentes, dentre as quais uma ameaçadora concorrente.

A emulação entre as duas amigas turistas e a nativa que chegava se estabeleceu incontinenti, tanto que a turma se instalou em torno de uma das mesas próximas, sentando-se nas muitas cadeiras dispostas sob a umbela da palhoça, mas aquela mais dotada permaneceu de pé, de costas para o público e para as rivais, instigante, desafiante, inclemente.

Sob o curtíssimo short jeans a jovem guardava duas protuberâncias portentosas, estupendas, lembrando dois soberbos e fogosos garanhões gêmeos que tirassem uma delicada carruagem. A cena requer mesmo essa adjetivação simbólica, minuciosa, superlativa, tautológica.

A mal disfarçada inquietação das paulistas era visível, posto que tentassem exibir um ar blasé. Lançavam incisivos olhares de crítica ao traseiro imenso da moça que chegara, o qual evoluía sobre suas cabeças, à medida que a dona trocava de pernas durante a conversa, ou flexionava o corpo para apanhar a coca-cola sobre a mesa.

As paulistas trocavam secretas palavras entredentes, talvez tecendo críticas à “desprezível criatura” – quem sabe presumindo “óbvias celulites”, certamente prevendo “incontáveis estrias” naquelas adiposidades abundantes.

Qual nada. Como que  adivinhasse a maledicência das rivais, e certamente correspondendo aos óbvios anseios da platéia, cheios de elogios oculares, a moça resolveu despir o short, executando, para tanto, o conhecido ritual.

Primeiro levantou a barra da blusa, depois livrou o botão e desceu o zíper, em seguida colocou os polegares a cada lado das ancas, sob o cós e, dobrando alternadamente os dois joelhos,  fez ir aparecendo pouco a pouco a pela alva, causando suspense, deliciando o imaginário dos homens com aquele espetáculo – um gesto tão intimista e sensual. Pronto. Estava revelado agora: aquilo que parecia perfeito, o era de fato.

Mas, ao contrário do que acontecia com as paulistas, não se tinha ali a oferta escancarada e desabrida de um incisivo “fio dental”, imiscuído no âmago da alma, expandindo o todo em duas metades, omitindo-se de cobrir e de negar. Tampouco a cearense vestia um daqueles sungas de banho em malha compressiva, que encobrem e compactam.

Não. A jovem moça vestia um biquíni em malha fina, como discreta e frouxa cortina de seda, que de um lado velava mais, e do outro, irresponsavelmente, se encolhia para dentro da ravina. A peça era análoga a um biombo japonês, que encobre sem grande devoção, parcialmente, de modo casual, com certa ingenuidade promissora, enquanto que os arrogantes fios dentais mostram e proíbem, qual joalheiro e sua vitrine – generosa ao olhar, mas sempre blindada contra o público.  

E a refrega exibicionista esquentaria, pois logo a seguir  chegou à praia um casal vampe, cuja mulher, uma morena de metro e oitenta, vestindo uma saída de banho em fio arrastão, imediatamente cobriu de sombra as concorrentes.

Todos olharam. Alguns se entreolharam. Descobriu-se então de repente que tudo aquilo que se admirava ali até então não era tão grande de fato; o belo formato dos glúteos sugere volume, mesmo quando o seu tamanho real seja modesto. Agora, sim, adentrara a arena uma bunda enorme. E proporcional, e simétrica, e harmoniosa.

A morena conhecia a fundo o tema da dita “preferência nacional”, e não se fez de rogada. De pronto percebeu o clima do ambiente e não se pejou em humilhar as demais, sem classe nenhuma, sem nenhum prurido de modéstia e de recato, disposta a passar como um trator por sobre as outras. 

Falava alto, dobrava-se para a frente sem flexionar os joelhos, sentava na perna do namorado, servia-lhe na boca o tira-gosto. Ele, cabelos nos ombros, brinco na orelha, escudo do time na camisa, latifundiário da beleza, apenas se aprazia em ostentar o patrimônio. 


*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ  

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