BUNDA
Reginaldo Vasconcelos*
A bunda é a bunda / redunda. (Carlos
Drummond de Andrade)

Diz ele que o fez de boca cheia, fazendo rebumbar pelas bochechas toda a
sonoridade rotunda do vocábulo. E em seguida dissecou-o etimologicamente, como
para tornar evidente que não cometera nenhuma grosseria: “Étimo de origem africana, do idioma ‘quimbundo’, que no Brasil colônia
designava os indivíduos dos povos ‘bundos’, de marcada esteatopigia, por isso
mesmo passando a indicar a região glútea das pessoas”.


A propósito, presenciei numa de nossas praias, certa vez, uma interessante
“guerra de nádegas”, a se desenrolar ante meus olhos, estes olhos que entre muitos
outros tornaram-se de repente no objeto da refrega, numa disputa cômica das
moças pela mirada masculina mais deslumbrada e mais lasciva.
Naquela barraca de praia em Fortaleza duas atléticas louras paulistas exibiam sua plástica, esparramadas
ao sol, em decúbito ventral, e por isso mesmo, num raio de vinte metros, nenhum
banhista que estivesse sobre aquelas areias tinha paz. Os homens inquietos,
todos de olhos cúpidos, mal disfarçando a excitação; as mulheres, fuzilando de
inveja ou de ciúme.

Mas quando desfrutavam sozinhas os píncaros da glória narcisista, as duas
beldades foram atingidas por uma cruel intervenção no cenário praiano: a
chegada de um ruidoso grupo de adolescentes, dentre as quais uma ameaçadora
concorrente.
A emulação entre as duas amigas turistas e a nativa que chegava se estabeleceu incontinenti, tanto que a turma se instalou em torno de uma das mesas próximas,
sentando-se nas muitas cadeiras dispostas sob a umbela da palhoça, mas aquela
mais dotada permaneceu de pé, de costas para o público e para as rivais,
instigante, desafiante, inclemente.
Sob o curtíssimo short jeans a jovem guardava duas protuberâncias
portentosas, estupendas, lembrando dois soberbos e fogosos garanhões gêmeos que
tirassem uma delicada carruagem. A cena requer mesmo essa adjetivação
simbólica, minuciosa, superlativa, tautológica.

As paulistas trocavam secretas palavras entredentes, talvez tecendo
críticas à “desprezível criatura” – quem sabe presumindo “óbvias celulites”,
certamente prevendo “incontáveis estrias” naquelas adiposidades abundantes.
Qual nada. Como que adivinhasse a
maledicência das rivais, e certamente correspondendo aos óbvios anseios da
platéia, cheios de elogios oculares, a moça resolveu despir o short,
executando, para tanto, o conhecido ritual.
Primeiro levantou a barra da blusa, depois livrou o botão e desceu o
zíper, em seguida colocou os polegares a cada lado das ancas, sob o cós e,
dobrando alternadamente os dois joelhos,
fez ir aparecendo pouco a pouco a pela alva, causando suspense, deliciando
o imaginário dos homens com aquele espetáculo – um gesto tão intimista e
sensual. Pronto. Estava revelado agora: aquilo que parecia perfeito, o era de
fato.
Mas, ao contrário do que acontecia com as paulistas, não se tinha ali a
oferta escancarada e desabrida de um incisivo “fio dental”, imiscuído no âmago
da alma, expandindo o todo em duas metades, omitindo-se de cobrir e de negar.
Tampouco a cearense vestia um daqueles sungas de banho em malha compressiva,
que encobrem e compactam.

E a refrega exibicionista esquentaria, pois logo a seguir chegou à praia um casal vampe, cuja mulher,
uma morena de metro e oitenta, vestindo uma saída de banho em fio arrastão,
imediatamente cobriu de sombra as concorrentes.
Todos olharam. Alguns se entreolharam. Descobriu-se então de repente que
tudo aquilo que se admirava ali até então não era tão grande de fato; o belo
formato dos glúteos sugere volume, mesmo quando o seu tamanho real seja
modesto. Agora, sim, adentrara a arena uma bunda enorme. E proporcional, e simétrica,
e harmoniosa.

Falava alto, dobrava-se para a frente sem flexionar os joelhos, sentava na perna do namorado, servia-lhe na boca o tira-gosto. Ele, cabelos nos ombros, brinco na orelha, escudo do time na camisa, latifundiário da beleza, apenas se aprazia em ostentar o patrimônio.
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ
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