quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

ARTIGO (VM)

REMINISCÊNCIAS E UM LUGAR PARA O SONETO NECRÓPOLE
Vianney Mesquita*


Qual o esconderijo onde a morte não consegue entrar? (SÊNECA) (1)


Exceto engodo de memória, corria 1961 e eu, na antiga Escola Industrial de Fortaleza, hoje IFCE, cursava a disciplina Língua Portuguesa, cuja regente era a mui estimada e competentíssima professora Adelba Montenegro de Carvalho, pessoa culta e da distinta sociedade daquela ainda tão provinciana Fortaleza.

Por esse tempo, na ambiência de uma biblioteca com acervo (2) de primeira qualidade mantida pela Escola, avezara-me a leituras que se afastassem do ramerrame das produções mais simples, de mero alcance popular, com vistas a granjear lista maior de palavras, expressões e edificações frasais, a fim (quem sabe, ingenuamente) de me achegar aos clássicos, mormente em razão das saudáveis disputas entre os seis ou sete mais destacados escolares da classe, comigo incluso, que primávamos pela proximidade da perfeição quando do descometimento das tarefas a nós destinadas.

Posso contabilizar, entre eles, Cícero de Jesus Durval e Silva, Antônio Edson do Nascimento, José Adail dos Santos (falecido) Francisco Santos de Oliveira, José Linhares do Nascimento (falecido) e Francisco Meneses de Mendonça, dos quais (os vivos) de há muito não tenho qualquer notícia.

Renderam-me, a mim e aos demais litigantes – no melhor senso que esta palavra pode alcançar – excepcionais dividendos, resultantes desses investimentos culturais francos e não calculados, rosa-dos-ventos da nossa trilha em demanda do saber, ótimo de se guardar e empregar, porém, de trabalhosa obtenção. Expressem-no aqueles favorecidos pelo hábito diuturno de estudar.

Tanto em relação à língua-prosa quanto metrificada, diligenciava no tentame de compor textos mais ricos, com vocabulário diversificado e ideias bem meditadas, com o fito de oferecer a quem lesse a oportunidade de deparar algo diverso do estilo trivial e elocução terra-a-terra, conforme lecionava a Professora Adelba e consoante comentei recentemente com a escritora palmaciana Iolanda Campelo Andrade a respeito de suas produções literárias.

A Mestra, no entanto, desaprovava, incontinenti, nossas amplificações expressionais e transportes verbais que beiravam a gramatiquice, muitas vezes descambando para o preciosismo, pois composições de decodificação difícil até por parte de leitores mais aprestados intelectualmente.

Em razão, todavia, das limitações informacionais peculiares ao nosso intervalo etário – por exemplo, eu contava apenas catorze anos – com certa raridade, mesmo assim passando pelos cortes procedidos pela Professora, lográvamos um escrito regular, apreciável, limpo de defeitos gramaticais e falhas de estilo, na verdade, diferentes daquelas expressões compositivas que fazem situar seus autores na conhecida vala comum. 


BENTO TEIXEIRA PINTO

Difícil era, senão impossível, atentar para as prescrições professorais no concernente ao interdito da imitação, do chamado pasticho, a reprodução servil do estilo de outrem, como, por exemplo, há-de o cultor da história de nossas letras assentir nas trasladações literárias procedidas pelo portuense Bento Teixeira Pinto (Porto, 1561-Lisboa, 1618) com sua mal-ajambrada Prosopopeia (1601), conquanto tenha sido, cronologicamente, o primeiro poeta “brasileiro”, lusitano radicado no Brasil, ao se excetuar São José de Anchieta, que também não era nosso nacional, mas canarino-espanhol (São Cristóvão da Lagoa - Tenerife – Canárias, 19.3.1554; Reritiba, hoje Anchieta-ES, 9.6.1597).

Desculpem as digressões, mas é adequado informar o fato de que alguns historiógrafos literários nacionais, como, entre outros, José Veríssimo, Ronald de Carvalho, José Guilherme Merchior e Afrânio Coutinho tacham Bento Teixeira Pinto de imitador de Ovídio, nas Metamorfoses, e Camões, n’Os Lusíadas, além de esse poema pretensamente épico fazer acentuadas referências apologéticas a Jorge Coelho de Albuquerque, Governador de Pernambuco, ao tempo de sua produção (MESQUITA, Vianney. Fermento na Massa do Texto. Sobral: Edições UVA, 2001).

No que concerne aos raros textos em língua-prosa da época mencionada, de estágios (3) literários por mim experimentados, nenhum restou preservado, embora uns poucos hajam sido publicados em folhas de periodicidade irregular circulante da EIF, locus dessas memórias, como Vencer e O Concludente, cujos arquivos, certamente, não mais existem (preciso até verificar isso na Biblioteca), porquanto estava ainda bastante longe da Era Digital, tampouco se conservava o hábito saudável de reter originais manuscritos.

Foi, portanto, da Avenida Treze de Maio, 2081, ainda sem qualquer arborização nas alamedas, pavimentada com pedras toscas e onde ainda descansa por demais modificado o edifício do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia - IFCE, que saiu a peça à frente, mantida decorada e de salto (4), onde é notório o teor imitativo – de Araújo Porto Alegre, Camões, e Augusto dos Anjos, principalmente  com mero preenchimento do estalão provençal sonet, razão por que lhe não pretendo conferir qualquer axiologia literária, pois eivada de defeitos, daqueles particulares a quem é visitante de qualquer tema.

De outra parte, convenhamos, ao se preterir a noção de o escrito não ser da colheita de produtor maduro, passado na casca do alho da Literatura, o soneto Morbidez, composto em outubro de 1961 (?), não é tão ruim assim!  - como em 17.02.2014 me escreveu Sânzio de Azevedo por via de correio eletrônico. Ao solicitar a opinião do celebrado Mestre, de quem sou admirador número um, ele indigitou na composição vários defeitos, como, v.g., os quartetos não rimados, a esquisita concordância de sonhos com neurônios (malgrado os portugueses consoem levando em conta a fonética, ocorrente assim com mãe e também) e um suarabácti (5), registado em raquidiano, o que voltarei a comentar.

Reproduzo, pois o Morbidez.

Tomam-me por inteiro as mialgias/ Na arteriosclerose das matérias./E o bater pressuroso das artérias/ Pareço escutar todos os dias.
Seguir calado, acalentando sonhos/ Já não resisto de tal modo insano/ Extravasa-se o fluido raquidiano/ S’esvaem a cada dia meus neurônios.
É a cefaleia ultradolorosa!/ Que agride, me açoita e me anquilosa.../Como se me fendesse um parietal.
O bisturi meu cérebro não cinde/ Porque o doutor da epífise imprescinde.../Pois que findou: partiu-se a pineal.

Vianney Mesquita

O celebrado e eclético escritor de A Terra antes do Homem divisou, de súbito, a parecença com o estilo do Vate paraibano da Vila do Espírito Santo, hajam vistas o vocabulário presunçosamente cientificista praticado no Morbidez, em pretensa comparação ao modo de tornear do artista de Vandalismo.

O Professor Doutor Rafael Sânzio de Azevedo, porém, me fez suspirar aliviado, quando referiu não recorrer, quando concerta seus metros, ao expediente do suarabácti, mas exprimiu para mim a ideia de que o não tem por erro, pois aproveitado por poetas de renomeada, a começar pelo maior de todos no Brasil [na sua opinião e na minha, coincidentes com igual pensamento de Olavo Bilac e Mário Raul de Morais Andrade  (6)] Gonçalves Dias.

Contudo os olhos de ignóbil ponto:/Um tapuia, um guerreiro adventício.

E outros grandes poetas:

Entre blasfêmias e obscenos cantos. (Luís Nicolau Fagundes Varela). ritmo e cadência no teu passo. (Antônio Frederico de Castro Alves).

E um moderno, Mário de Miranda Quintana:

Andam por tudo signos diversos.


NECRÓPOLE

O outro soneto, o anunciado no título deste artigo, é desconhecido de Sânzio de Azevedo, e também foi devidamente guardado na retentiva, de cor e salteado, e é, seguramente, de 1961, composto no sistema ABBC, ABBC, AAB e AAB, para mim, bem melhor, sem ser perfeito – é claro – do que Morbidez.

Aqui, sem o saber, naturalmente, parece que acertei, no escuro, porque nada sabia de versificação, elaborando as estâncias apenas à demanda de preencher os gradeados aos modos de Camões (Episódio de Inês de Castro), José Basílio da Gama(n’O Uraguai), Araújo Porto Alegre (Colombo), Padre Antônio Tomás (Contraste) e de um que meu conterrâneo José Fernandes Sampaio, durante larguíssimos anos, me fez pensar fosse de sua lavra, e só bem mais tarde descobri ser de outro patrício, meu patrono na cadeira número 27 da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo, Professor José Rebouças Macambira (Palmácia, 17 de novembro de 1917 – Fortaleza, 17 de janeiro de 1992), celebrado linguista e douto poliglota. Cuido de Lábios Virginais, inserto no livro Musas de Aquém e de Além, publicado em 1981. Segue-se mencionada peça.

Ao rouco e surdo canto do cipreste,/ A turma inerte se não mais levanta./ E triste e morta em silêncio canta/ A morbidez terrível dum gemido.

À tez marmórea que a cidade veste, /Além o crocitar doutros cantores/Contrasta dalegria dos atores/ Do vivo libertino e destemido.

Num cemitério, nada assoma ou medra/Tudo é a indiferença duma pedra/ A muda língua a for dos absortos.

E todos vós que houverdes seus amores/ E para vós são como mis horrores,/ Vinde, também, para o festim dos mortos.
(Vianney Mesquita)



Neste poema de dez ictos – acentos que recaem sobre a sílaba de um pé - é possível o leitor lobrigar o uso de expedientes figurais, como síndeto, elisão, hipérbole, metáfora, bem assim colocações clíticas pouco comuns na prosa e ordinárias na poesia, como na apossínclise em “a turba inerte se não mais levanta”, e.g. (segundo verso), inversões dos locais ordinários dos termos e outros meios de conferir obediência ao metro e conceder mais esthese à composição; e, toca dizer, o mais relevante, sem eu conhecer, no tempo de produzido, as prescrições expressas pelos manuais, como um a que tive acesso, todavia sem sequer conseguir lê-lo, o Tratado de Versificação (1905), da autoria de Sebastião Cícero dos Guimarães Passos (1867-1909) e Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918), pois não possuía as informações solicitadas para alcançar seu entendimento. De tal modo, o haver logrado terminar a composição decorreu da comparação com os clássicos dos primeiros momentos da Arte da Literatura nacional, como os precitados escritores.


VERSÃO PROSADA DO SONETO

A feitura deste decassilábico teve por locus o campo santo municipal da Sede municipal de Palmácia-CE, entre a Vila Campos e o Pinga, onde há um cipreste comum – Cupressus sempervirens – variedade de árvore conífera de folhas bastante delgadas, da família das Cupressaceae, bem receptiva ao sopro dos ventos. Veja, pois, o leitor o cotejamento.


Primeiro Quarteto

Ao passo, portanto, que a brisa sacode os ramalhos do cipreste do cemitério, produz um silvo meio rouco do roçar dos esgalhos, entrecortado de assovios. Evidentemente, os que estão aí sepultos não mais podem se alevantar. Então, calados, tristes – porque mortos – silentes permanecem, sob a languidez do sibilo provocado pela brisa na árvore.


Segundo Quarteto

Ao aspecto cinzento e triste (tez marmórea) que encobre a morada dos mortos se ajuntam os corta-mortalhas (Tito alba), voejando com seus grasnados soturnos e assustadores, e os urubus (Coragyps atratus), sentindo o rasto da matéria decomposta, em flagrante oposição à alegria da vida experimentada lá fora, nutrida com destemor e muitas vezes descomedimento.
Primeiro Trístico

Numa cidade onde os moradores ficam imutavelmente na horizontal, na expressão de Billy Blanco em A Banca do Distinto, absolutamente nada se mostra, nenhuma coisa progride, pois reina a apatia de seres inanimados, a quietude é que dá o sem-tom de quem já foi arrebatado para a dimensão etérea, quer para o tormento eterno, a necessária purgação ou mesmo para a Glorificação Celestial, ou seja, a muda língua a for (7) dos absortos.


Segundo Trístico

Então, o autor convida a todos aqueles que têm amores (houverdes está no verso aplicado no sentido de possuirdes), os quais para essas pessoas são como horrores, a virem, também, morar no cemitério, como a assentir na ideia do poeta neoclassicista lusitano, Manuel Maria de Barbosa l’Hedois du Bocage (*Setúbal, 15.09.1765; Lisboa, 21-12-1805), para quem Ah, não me roubou tudo a negra Sorte!/Inda tenho este abrigo, inda me resta/O pranto, a queixa, a solidão e a Morte.

Pois é, estimado leitor, o fato de eu não haver guardado alfarrábios, anotações garatujadas, e de não as ter memorizado para usança posterior, como fiz agora, impede-me de reciclá-las e oferecê-las aos atuais consulentes noutras versões bem mais alumiadas pela clareza dos novos tempos, ao se contar com as grandes fulgurações das descobertas no terreno das novas tecnologias e com a expansão e as melhorias dos programas de cultura, ciência, tecnologia e artes.

Inês, todavia, é morta há tempos.

Verba volant; scripta manent!  

(1) A fonte de onde extraí o pensamento – NINA, A. Della -Dicionário da Sabedoria, São Paulo: Fittipaldi, 1985 – não informa de qual Sêneca é a frase, se de Lúcio Aneu Sêneca, o Filósofo, ou de seu pai, Marco Aneu Sêneca, o Retórico.
(2) Talvez não seja ocioso informar que a palavra é de som aberto – é – e que tem como diminutivo o vocábulo acérvulo.
(3) A bem da elocução, é inconveniente empregar estágio para retratar tempo, época, quadra, como se vê amiudamente. Estágio tem essa aplicação aqui procedida, como tempo para tirocínio e treinamento de alguns ofícios, como de escritor, professor, advogado, médico, jornalista, por exemplo.
(4) Costuma-se falar “de cor e salteado”, mas pode ser empregada a expressão, semelhante, “decorado e de salto, para diversificar e não persistir a mesmice.
(5) Suarabácti é, consoante Salles Villar e Houaiss (2008), “... espécie de epêntese que consiste em se desfazer um grupo consonantal por meio de intercalação de uma vogal, como ocorreu com a palavra barata, originária do antigo brata (latim blatta) ou com braúnabaraúna; anaptixe. Etim. Sânscrito svarabhakti.Gram. Separação por meio de vogal”.
(6) Bom é lembrar o fato de que há outro Mário – o Mário Kepler Sobreira de Andrade ou Mário de Andrade do Norte, engenheiro-agrônomo e poeta fortalezense, autor de Versos de Noite Próxima (05.07.1910; 05.02.1944).
(7) Dicção pouco empregada na prosa e mais no metro, a for significa “conforme o costume”, “à moda de”, “à maneira de”. 


*Vianney Mesquita 
 Docente da UFC 
Acadêmico Titular da Academia Cearense da Língua Portuguesa  
Acadêmico Emérito-titular da Academia Cearense de Literatura e Jornalismo 
Escritor e Jornalista  

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