quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

ARTIGO (RV)

HOMO INSIPIENS*
Reginaldo Vasconcelos*

Pessoalmente, não sou a favor de que se faça arte ficcional sobre os ícones místicos, de quaisquer religiões. Independentemente do gênero ou suporte, tema ou enredo, biográfico ou humorístico, entendo que os santos e as entidades espirituais em geral são propriedade dos fiéis que os adoram e os cultuam.

A memória dos antepassados de qualquer um está protegida por lei, pelo menos no Brasil, no caso de calúnia ou de dano moral reflexo aos descendentes; assim também para as hipóteses de profanação e vilipêndio, como violação de templos, ataque a cultos e desrespeito a gente morta, também há previsão penal, de modo que a iconoclastia verbal e gráfica contra o sentimento religioso e contra figuras beatíficas, envolvendo ultraje e escárnio, não seria ato lícito.

Então, notícias sobre os credos e os crentes, bem como documentários históricos sobre a vida dos seus personagens votivos, estão no âmbito da liberdade de expressão. Porém, criar narrativas moralmente desabonadoras, ou fazer graça picaresca com os objetos de culto alheio, a meu sentir, excede esses limites – e eu digo isso desde a polêmica sobre o filme Je Vous Salue, Marie, do cineasta Jean-Luc Godard, lançado em 1985.

Assim, se artistas, políticos e homens públicos em geral não podem reclamar ataques à sua honra quando deles se fazem especulações jornalísticas, paródias cômicas, e se lhes desenham charges e caricaturas, entretanto os grandes avatares de religiões e seitas, pertencentes à indefesa casta espiritual dos santos e dos mortos venerados, deveriam ser poupados da  livre verve dos opífices e escribas.

De fato, a liberdade de expressão do artista tem limite na suscetibilidade moral dos indivíduos graves e dos grupos rituais. Essa foi inclusive a opinião corajosa vertida pelo cartunista brasileiro Laerte, ouvido sobre o caso Charlie Hebdo, o qual, embora vestido de mulher, se posicionou ontem com hombridade excepcional – sem deixar de lamentar as irreparáveis perdas humanas que o episódio ocasionou.

É obvio que nada no mundo justifica agressões físicas, atentados covardes, chacinas, assassinatos, quando as razões originais se degradam inteiramente diante da reação desproporcional dos ofendidos, quando meios sangrentos e desumanos são adotados por alguém, em nome da própria moral e da religiosidade de seu grupo.

Bastaria aos fundamentalistas muçulmanos protestar publicamente contra as tiras bem-humoradas sobre o Profeta Maomé, recorrer à Justiça, fazer campanhas para sabotar a circulação da revista ou jornal entre os que se considerassem atingidos. Nada, além disso, lhes seria lícito fazer. O mais, juridicamente, é “exercício arbitrários das próprias razões”, ou, popularmente, o vezo de querer fazer justiça com as usas próprias mãos.

Todo o episódio é profundamente lamentável, até porque pode encorajar outras ações semelhantes contra outros jornalistas, o que, de fato, de forma difusa, por intimidação, tende a limitar em futuro a liberdade de expressão. Ademais, grandes talentos do cartum, que inspiram desenhistas do mundo todo, tiveram a vida abreviada, o que representa um imenso prejuízo a essa linguagem jornalística do desenho e do humorismo.

Urge pois que medidas  imediatas e muito severas  sejam adotadas pelo concerto das nações, não só para punir, mas para coibir o terrorismo, de modo a evitar novos atentados, o que certamente vai acirrar o racismo e a xenofobia contra os povos islamistas, grande foco dessas ações desassisadas. Já se observam restrições contra eles no mundo todo, desde o ataque às Torres Gêmeas, efeito que agora ainda mais se agravará. É lamentável, mas imperioso. Enfim, tudo o que se poderia desejar e pedir a Deus – Jeová, Adonai, Alá, Javé, Tupã – é uma dotação extra de sabedoria aos que nos classificamos homo sapiens. 

* Homo insipiens - Do latim, "homem insensato".


  
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ  

Nenhum comentário:

Postar um comentário