sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

CRÔNICA (RV)

CHOVEU
Reginaldo Vasconcelos*

Choveu. Ainda respinga. O Céu está bonito. Cearense, as nuvens de chumbo não me pesam, mas me acometem a alma de levíssimas esperanças. Os odores de umidade ozonizada, que dominam o ar em dia de chuva, provocam no meu povo uma alegria irresistível, orgânica, instintiva – mesmo naqueles que não vivam da lavoura.

Não vivo da lavoura, mas a lavoura vive em mim. Em dias assim, invade o meu ser o cheiro bom do bamburral em flor, chamando a roçadeira dos caboclos para o cultivo do bendito feijão, do milho abençoado, da ditosa macaxeira.

Então, ao roncar do trovão, dos confortos urbanos do lar moderno transporto-me no éter para os campos ancestrais que os antigos amanhavam para produzir o alimento, em que ordenhavam as vacas, em que namoravam as ninfas brejeiras, quando jovens, e mais tarde fecundavam as matriarcas, sentindo o hálito do curral ao lado da casa e ouvindo o canto dos capotes empoleirados no terreiro.

Não se vive somente da matéria fática, da presença concreta, da atualidade material. Vive-se muito do formato, do etéreo, do entorno. É do antigo e do distante que se confeita o coração, edulcorado de lembranças e desejos. É de coisas assim que se nutre a poesia, substrato da beleza.

Vou à praia. Chove ainda. As meninas estão lá, tantas e tão lindas, em suas malhas generosas, cada uma entregando o corpo à natureza, ao sol, ao céu, às salmouras salubres do oceano. Levo as minhas – as companheiras sempiternas, as amigas, as filhas, as sobrinhas, as crianças, minha modesta contribuição àquela paisagem humana e estética da vazante.

O amigo que passava pela orla senta conosco sob o abrigo, para que os mais grados assuntos da convivência se desfiem. O tempo para, como se a ampulheta no Universo houvesse vertido toda a sua areia por ali. Fala-se de música, vou à Itália no voar dos sentimentos. De lá volto à infância, de quando o tio italiano aparecia para beber vermute com meu pai, aldilá no pensamento. 

A chuva cede. Tomo a quinta caipirinha. Microgomos de limão me explodem na boca, entre grânulos de açúcar que estilhaçam, tudo rimando ricamente com o sabor da cachaça, que aquece o espírito e acaricia o paladar. A tarde cai, o mar avança, tomo o caminho de volta com a família. Viver é navegar no dia-a-dia. 

  
*Reginaldo Vasconcelos
Advogado e Jornalista
Titular da Cadeira de nº 20 da ACLJ     

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