terça-feira, 27 de janeiro de 2015

CRÔNICA (ICA)


PARTIDA MELANCÓLICA
Iolanda Campelo Andrade*


Não me questionem se minhas atitudes mudarem. Os ponteiros do relógio avisam que é hora de partir desse lugar chamado ingenuidade exacerbada. (ANDREZA FILIZZOLA).


Não era qualquer mala, mas uma de madeira. Era nova, funda, revestida de papel quadriculado, em amarelo e marrom, pintada com verniz copal, com alça de alumínio. Lembro-me muito bem! O máximo que eu podia possuir.

Nela, Mamãe arrumava minhas roupas: vestidos, blusas, saias... Ah! Mais uma dúzia de calcinhas novas e três sutiãs, em folha, também.

Entre minhas roupas, a farda escolar. Esquisita! Saia cinza, abaixo dos joelhos. Tinha pregas-macho bem fundas, na frente. A blusa era branca, de mangas curtas e costas cerzidas. Sim, senhor (a), cerzidas mesmo! Remendadas, para melhor dizer; consertos feitos pela Mamãe, à altura dos ombros. Do lado esquerdo da blusa, um bolso com o emblema do colégio, por sinal estabelecimento público – Colégio Municipal Filgueiras Lima. Nos ombros, o distintivo – estrelinhas de cerâmica – indicativas do meu ano escolar: Primeiro Normal.

Visto aí que não era uniforme novo, mas sobrante de uma prima que havia estudado nesse mesmo lugar, para onde eu estava sendo “forçada” a ir estudar; não que não apreciasse o estudo, pelo contrário, o problema era a partida, a melancólica partida que eu teria de fazer.

De volta à mala... Dentro dela, ainda, um lençol, toalha, uma caixa de sabonetes, escovas de dentes e de cabelos, creme dental, perfume, desodorante, xampu e um tubinho de condicionador capilar, de marca – recordo-me dos detalhes ... Tudo preparado.

Por cima das roupas, já para fechar a mala, o caderno dos meus sonhos! Linda brochura, coisa luxuosa para mim. Na capa dura, o desenho de uma adolescente beijando uma flor. Ao lado do caderno, o estojo com uma dúzia de canetas de boa qualidade, uma régua, três excelentes canetas esferográficas em cores distintas, uma borracha, um lápis e um apontador, tudo num invólucro de plástico, com fecho ecler. Esse o meu tesouro.

Mamãe fechou a mala. Já era tardinha e o Sol já se punha. Meu último dia na Serra...

Passei a noite em pesadelos, entre dormir e acordar, pensando na minha vida nova. Conciliei pouco o sono e despertei com leve toque no ombro e uma voz:  Acorde, minha filha, se ajeitar pra gente ir. O Sol já havia aparecido. Era Papai que, sem querer, ia me levar a mares nunca dantes navegados... E, por sinal, mares bravios alencarianos! E eu sofria!

Tinha que partir... Não desapontaria meus pais. Arrumei-me, despedi-me da Mamãe e da Vovó Senhora e saí. Meus irmãos ainda dormiam.

O ônibus da viação que faz a linha de Palmácia estava à minha espera. Imponente. Era o carrasco a conduzir-me ao cadafalso! O que aprontei para merecer tamanha sina? Que arte fiz para receber essa maldade? Papai ia comigo. Segui, triste, a viagem, mas procurei não demonstrar. Afinal, havia de concluir meus estudos.

E minha Serra ficava para trás... Minha casa, a família, os amigos, minha escola, a praça onde tanto brinquei, o sítio, a perene fonte, a bica dos Caboclos, as cachoeiras, o poço dos Cachorros, os montes... O Santo Cruzeiro...  A pedra do Bacamarte – altiva, assistindo à minha tristeza...  Meu amor, meu primeiro amor... E eu ia despedindo-me de tudo, pela janela, escondendo as lágrimas para não preocupar Papai. Cada pedra era uma saudade! Toda árvore uma recordação. Até mais ver, Palmácia, até a volta!

Chegamos ao destino. Estávamos em Fortaleza, na casa de pessoas da família que me acolheriam. Todos na sala: minha prima, seu marido, seu filho, alguns amigos e minha tia. Era domingo e bebericavam.

Papai entregou-me a mala e o segui. Ao transpor a porta, enganchei os pés no tapete e caí. A mala nova desabou também e se abriu na queda. As roupas se espalharam pela sala, o vidro de perfume se quebrou...

E com aquele episódio, fiquei passada de vergonha!

Foi esta a primeira decepção experimentada na Cidade grande. E eu tinha apenas 15 anos...

*Iolanda Andrade é socióloga, 
docente, prosadora e poetisa, 
natural de Palmácia-CE.

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