terça-feira, 15 de dezembro de 2015

CRÔNICA - A Traição Induzida (HE)

A TRAIÇÃO INDUZIDA
Humberto Ellery

Ontem eu li no site O Antagonista, do jornalista Diogo Mainardi, a seguinte bobagem:

Os artigos da CF/88 sobre o impeachment são tão claros quanto a traição de Capitu, no Dom Casmurro de Machado de Assis”.

Das duas, uma: ou o autor da frase não leu o livro, ou, então, o que é pior, leu e não entendeu. Se ele queria comparar a clareza da Constituição Federal de 1988 a alguma traição célebre na literatura, poderia ter se referido à traição de Emma ao Dr. Charles Bovary (Madame Bovary, de Gustave Flaubert), ou à traição de Anna Karenina ao Conde Karenin (com o Conde Vronsk), no belíssimo romance de Liev Tolstói, ou ainda a traição da Sra. de Renal com Julien Sorel, no Vermelho e o Negro  de Stendhal (Henri-Marie Beyle).

O que define a genialidade de Machado, em Dom Casmurro, está justamente em deixar a suposta traição de Capitu a Bentinho como uma enorme e indecifrável dúvida. A imortal Lygia Fagundes Telles (Ciranda de Pedras, As Meninas, as Horas Nuas) estudou, não apenas leu, o Dom Casmurro para orientar o roteiro da filmagem do romance e concluiu: “Eu já não sei mais, na primeira leitura era uma santa, na segunda um monstro, agora não sei mais”.

O crítico José Aderaldo Castelo afirmou: “Dom Casmurro não é um romance do ciúme, mas da dúvida”. A ensaísta norte-americana Helen Caldwell é mais afirmativa: “Capitu não traiu Bentinho”. Aliás esta é a minha opinião.

No último capítulo (CXLVIII) Machado se refere ao v. 1 do cap. 9 do Livro do Eclesiástico que reza: “Não tenhas ciúme da tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”. Na minha opinião, se o Escobar não tivesse se afogado na praia de Botafogo, a traição ocorreria, porque induzir o parceiro ao adultério faz parte da psiqué do corno, e Bentinho queria ser corno. 

É sobre essa compulsão que Jesus Ben Sirach, autor do Livro do Eclesiástico, nos alerta: “não encha o saco do cônjuge com ciúmes”, e o Bentinho era um típico corno potencial. Nelson Rodrigues deixou isso muito claro na sua peça “Perdoa-me por me traíres”: O corno induz o parceiro à traição com suas desconfianças, e a traição, quando consumada, leva o traidor a um grande sofrimento. Chico Buarque roçou levemente esse tema na sua música “Mil Perdões”. 

Para concluir, quero só lembrar que o Bentinho de Capitu chamava-se Bento de Albuquerque SantIago. Com esse nome, Machado faz uma referência explícita ao pérfido Iago, que induziu Othelo, o Mouro de Veneza (Shakespeare), a matar a inocente Desdêmona asfixiada. Bentinho tinha dentro de si seu próprio Iago, e não matou, mas psicologicamente asfixiou a bela e inocente Capitu com “seus olhos oblíquos e dissimulados de uma cigana”.

Mas, a despeito da comparação infeliz do jornalista, os artigos da CF/88 sobre o impeachment são realmente claríssimos. E não induz à sua traição.



NOTA DO EDITOR:


A jornalista cearense Adísia Sá, Membro Honorário da ACLJ, publicou a primeira edição do livro Capitu Conta Capitu, em 1992, pela Multigraf Editora, do confrade Dorian Sampaio Filho.

Nessa obra de ficção, Adísia colhe o imaginário depoimento do personagem feminino machadiano, que então faz a sua própria defesa, para dirimir as dúvidas que a obra original produz sobre a sua honra.

Sobre o livro, que já teve uma segunda edição e foi adaptada para peça de teatro, pronunciou-se, na época do lançamento, a escritora Rachel de Queiroz:

“E de repente Adísia foge às colunas de jornal, ao rádio, à TV e nos oferece um livro singularíssimo  – ‘Capitu Conta Capitu’ e nele, sem medo de enfrentar o mito, passa a mão no Dom Casmurro em pessoa, e lhe acrescenta o contraponto que Machado de Assis deixou de escrever – por malícia, machismo, ou propósito deliberado de criar mais um enigma e deixá-lo indecifrado. Capitu, na versão de Adísia Sá, tenta e me parece que consegue, desmistificar a face oficial da sedutora, a cruel, a mercenária, infiel, adúltera”.

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