A TRAIÇÃO INDUZIDA
Humberto
Ellery
“Os artigos da CF/88 sobre o
impeachment são tão claros quanto a traição de Capitu, no Dom Casmurro
de Machado de Assis”.
Das duas, uma: ou o autor
da frase não leu o livro, ou, então, o que é pior, leu e não entendeu. Se ele
queria comparar a clareza da Constituição Federal de 1988 a alguma traição
célebre na literatura, poderia ter se referido à traição de Emma ao Dr. Charles
Bovary (Madame Bovary, de Gustave Flaubert), ou à traição de Anna Karenina ao
Conde Karenin (com o Conde Vronsk), no belíssimo romance de Liev Tolstói, ou
ainda a traição da Sra. de Renal com Julien Sorel, no Vermelho e o Negro
de Stendhal (Henri-Marie Beyle).
O que define a genialidade
de Machado, em Dom Casmurro, está justamente em deixar a suposta traição de
Capitu a Bentinho como uma enorme e indecifrável dúvida. A imortal Lygia Fagundes Telles (Ciranda de Pedras, As Meninas, as Horas Nuas)
estudou, não apenas leu, o Dom Casmurro para orientar o roteiro da filmagem do
romance e concluiu: “Eu já não sei mais, na primeira leitura era uma santa, na
segunda um monstro, agora não sei mais”.
O crítico José
Aderaldo Castelo afirmou: “Dom Casmurro
não é um romance do ciúme, mas da dúvida”. A ensaísta norte-americana Helen
Caldwell é mais afirmativa: “Capitu não traiu Bentinho”. Aliás esta é a minha
opinião.
No último capítulo (CXLVIII)
Machado se refere ao v. 1 do cap. 9 do Livro do Eclesiástico que reza: “Não tenhas ciúme da tua mulher para que ela
não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti”. Na minha
opinião, se o Escobar não tivesse se afogado na praia de Botafogo, a traição
ocorreria, porque induzir o parceiro ao adultério faz parte da psiqué do
corno, e Bentinho queria ser corno.
É sobre essa compulsão que Jesus Ben
Sirach, autor do Livro do Eclesiástico, nos alerta: “não encha o saco do cônjuge com ciúmes”, e o Bentinho era um típico
corno potencial. Nelson Rodrigues deixou isso muito claro na sua peça “Perdoa-me
por me traíres”: O corno induz o parceiro à traição com suas desconfianças, e a
traição, quando consumada, leva o traidor a um grande sofrimento. Chico Buarque roçou
levemente esse tema na sua música “Mil Perdões”.
Para concluir, quero só
lembrar que o Bentinho de Capitu chamava-se Bento de Albuquerque SantIago. Com
esse nome, Machado faz uma referência explícita ao pérfido Iago, que induziu
Othelo, o Mouro de Veneza (Shakespeare), a matar a inocente Desdêmona
asfixiada. Bentinho tinha dentro de si seu próprio Iago, e não matou, mas
psicologicamente asfixiou a bela e inocente Capitu com “seus olhos oblíquos e dissimulados de uma
cigana”.
Mas, a despeito da comparação infeliz do jornalista, os artigos da CF/88 sobre o impeachment são realmente claríssimos. E não induz à sua traição.
NOTA DO EDITOR:
A jornalista
cearense Adísia Sá, Membro Honorário da ACLJ, publicou a primeira edição do
livro Capitu Conta Capitu, em 1992, pela Multigraf Editora, do confrade Dorian
Sampaio Filho.
Nessa obra de
ficção, Adísia colhe o imaginário depoimento do personagem feminino machadiano,
que então faz a sua própria defesa, para dirimir as dúvidas que a obra original
produz sobre a sua honra.
Sobre o livro,
que já teve uma segunda edição e foi adaptada para peça de teatro,
pronunciou-se, na época do lançamento, a escritora Rachel de Queiroz:
“E de repente Adísia foge às colunas de jornal, ao rádio, à TV e nos
oferece um livro singularíssimo – ‘Capitu
Conta Capitu’ e nele, sem medo de enfrentar o mito, passa a mão no Dom Casmurro
em pessoa, e lhe acrescenta o contraponto que Machado de Assis deixou de
escrever – por malícia, machismo, ou propósito deliberado de criar mais um
enigma e deixá-lo indecifrado. Capitu, na versão de Adísia Sá, tenta e me
parece que consegue, desmistificar a face oficial da sedutora, a cruel, a
mercenária, infiel, adúltera”.
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