quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

CRÔNICA - Gustavo Barroso (RV)


GUSTAVO BARROSO
Reginaldo Vasconcelos*


Por artes de João Batista Jacó, que me indicou a obra, e de Olavo de Lima, que me a emprestou, leio as memórias de Gustavo Barroso, logo após ter concluído este meu segundo tomo. Achava o Jacó algumas conexões entre pontos abordados no meu Volume I, e assuntos desenvolvidos pelo grande escritor cearense. Não somente porque livros de memórias sejam todos, entre si, variações sobre o mesmo tema: as miudezas pueris, as lutas da juventude, os louros da maturidade; a ciência da vida é uma somente.

De fato, para honra e júbilo de minha humilde pessoa, traços semelhantes de caráter provocam-nos alguma paridade na maneira de pensar e de dizer – homens nascidos e obras lavradas com meio século de distância. No entanto, as coincidências históricas vão além, não apenas pelo fato de termos vivido os nossos dias sobre o mesmo torrão.

A primeira cerveja e seu amargor medicinal foi, para ele e para mim, digna de citação. O interesse por cavalos, declarado e decantado, bem como o culto às boas amizades, nos faz ostentar distintivos idênticos. Divergimos quando ele deplora os judeus, afirmando que são “vermes”, e portanto não são gente.

Ouvi uma vez a mesma afirmação com relação aos alemães, da boca do Cônsul Boris, herói da Resistência Francesa, testemunha do holocausto, apontando-me um navio germânico no cais de Fortaleza.

Não sou racista nem xenófobo, mas é fácil situar-me entre a etnia de Cristo e a nacionalidade do anticristo, que só nasceu na Áustria por dissimulação. Aliás, por dissimulação da minha família não porto hoje um sobrenome judeu – Klein, pequeno em holandês – que traduziram para fugir das perseguições antissemíticas do Marquês de Pombal. Gustavo portava o Dodt do seu ariano avô materno.

Coincidimos, no entanto, nas várias atividade gráficas exercidas: as letras, o desenho, a fotografia. Tenho também a mesma vocação náutica e militar, embora haja espancado de mim essas tendência muito cedo, pois no mar e nos quartéis não há mulheres, e eu não vivo sem elas.

Como Gustavo Barroso, tive também a minha fase de aluno exemplar, entre os primeiros da classe, e um período de estudante rebelde, brigão e gazeteiro, tendo sido “bicho tímido” no princípio, alfabetizado por pessoa da família, lançado de repente entre os diabretes de um colégio, sem irmão mais velho que me prestasse proteção.

“Barrosinho” encontrou a solidariedade veterana no colega Antônio Pompeu, enquanto eu, no primeiro dia de aula, fui recebido pelo filho e homônimo do advogado do meu pai, Sílvio Magalhães, menino franzino, mas valente como o causídico genitor: “Se algum aluno maltratar você, é só me dizer que eu arrebento a cara dele”.

Tracemos um paralelo entre personalidades citadas, lá e aqui, a começar pelos velhos professores, Lino da Encarnação, estimado mestre de Gustavo Barroso, e Odilon Braveza, diretor do meu colégio São João, respectivamente desenhados por ele e por mim com extrema semelhança. Depois, o seu grande amigo Antônio Pompeu, bisavô do meu primo Eduardo, este que é hoje o meu maior amigo e confidente.

A seguir, os filhos do Barão de Studart, com os quais ele gostava de brincar, cujos netos desses filhos vieram a ser meus alunos de judô. Por fim, o seu primo apelidado Guabiraba, cujo descendente João Isidoro, já com esse sobrenome de batismo, veio a ser meu companheiro de trabalho nos escritórios do Detran.

Quanto a lugares referidos, comecemos pela Praia do Peixe, a mesma de Iracema, em cujas areias e marés e diques e pontes fomos meninos, ele e eu. Depois, as frescas matas da Paupina, no derredor de Messejana, onde os seus tiveram um sítio, e os meus tiveram outro, quem sabe quão próximos entre si, cujas lagoas e riachos nos banhavam, em cujos caminhos nos perdíamos com os nossos cavalos e os nossos moleques, perseguindo passarinhos e calangros.

No meu tempo de menino, embora tão perto da cidade, a Paupina era ainda quase virgem, sem luz elétrica e com estradas carroçáveis interrompidas no inverno.

Finalmente, a Chácara Baixa Preta no Benfica, pertencente ao pai de Gustavo: posso ter sido proprietário de uma fraçãozinha dela, quando adquiri uma casa situada onde teriam sido os seus terrenos, se nos orientarmos pelo roteiro descrito, a partir da Fundição Cearense, que já perfura mais de século e não se locomove.

Mas  se por acaso o meu imóvel não foi no passado parte daquele, por estar mais à esquerda, aquele se confunde com o sítio Tebaida, que ainda conheci, onde morou por algum tempo a família de minha mãe.

Dito isto, peço vênia ao Professor Soriano Aderaldo, que compilou aquelas memórias e as comenta em pés de página, para deixar a Gustavo Barroso a minha mensagem metafísica:

Costumo ditar textos e gosto que me façam leituras para evitar a sozinhês” da atividade literária. Assim, sorvi os teus livros de memória, condensados em um só, ao volante do meu carro, através dos cenários da tua juventude, pelas vias em que inauguraste a pequena machambomba Pic-Pic, o primeiro automóvel do Estado.

Fi-lo com o vagar da degustação, como se esquipasse no cavalo Menelik, pela Rua Formosa, pela das Flores, pela do Chafariz, pela Ladeira do Gasômetro, junto ao Passeio Público.

Desci às umidades da Sabiaguaba, subi as vielas sinuosas do Baturité, rumo aos frescores do teu Pacoti. Perlustrei as lagoas de Messejana e Porangaba ouvindo os teus textos.

Bordejei o litoral que adoravas, hoje todo urbanizado, desde o Porto das Jangadas do passado até a atual Praia do Futuro, petiscando aqui e ali, a intervalos da leitura, os frutos multicores do nosso verde mar, que tão bem descreves.

Armado de revólver, penetrei com a família na Paupina, transformada em favela infecta e perigosa, em busca das paragens da nossa infância, encontrando em ruínas o sítio em que vivi. Quem sabe, nessa leitura itinerante tenha eu tangenciado também o Sítio Água Boa, de localização imprecisa, que te parecia o Céu na Terra, como foi para mim a Fazenda Bom Lugar.

Foram-se os antigos que  conheceste, ficaste antigo e te foste também. Deixaste, no entanto, para os pósteros o livro-razão dos haveres da tua alma. Fico por aqui mais um bocado, tentando gozar a vida, por mim e por dois amigos que se foram mais cedo, e agora um pouco por ti, que amaste tanto a nossa terra. Espero, enfim, que estejas em paz, ao lado do Pai, redimido com o Filho, Iesus Nazarenus Rex Iudeorum.


(Do livro Traços da Memória, Laços da Província – Volume II – Reginaldo Vasconcelos - Multigraf Editora – 1993)

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