GUSTAVO BARROSO
Reginaldo
Vasconcelos*
Por
artes de João Batista Jacó, que me indicou a obra, e de Olavo de Lima, que me a
emprestou, leio as memórias de Gustavo Barroso, logo após ter concluído este
meu segundo tomo. Achava o Jacó algumas conexões entre pontos abordados no meu Volume I, e assuntos desenvolvidos pelo grande escritor cearense. Não somente
porque livros de memórias sejam todos, entre si, variações sobre o mesmo tema:
as miudezas pueris, as lutas da juventude, os louros da maturidade; a ciência
da vida é uma somente.
De
fato, para honra e júbilo de minha humilde pessoa, traços semelhantes de
caráter provocam-nos alguma paridade na maneira de pensar e de dizer – homens
nascidos e obras lavradas com meio século de distância. No entanto, as
coincidências históricas vão além, não apenas pelo fato de termos vivido os
nossos dias sobre o mesmo torrão.
A
primeira cerveja e seu amargor medicinal foi, para ele e para mim, digna de
citação. O interesse por cavalos, declarado e decantado, bem como o culto às
boas amizades, nos faz ostentar distintivos idênticos. Divergimos quando ele
deplora os judeus, afirmando que são “vermes”, e portanto não são gente.
Ouvi
uma vez a mesma afirmação com relação aos alemães, da boca do Cônsul Boris, herói
da Resistência Francesa, testemunha do holocausto, apontando-me um navio
germânico no cais de Fortaleza.
Não
sou racista nem xenófobo, mas é fácil situar-me entre a etnia de Cristo e a
nacionalidade do anticristo, que só nasceu na Áustria por dissimulação. Aliás,
por dissimulação da minha família não porto hoje um sobrenome judeu – Klein, pequeno
em holandês – que traduziram para fugir das perseguições antissemíticas do
Marquês de Pombal. Gustavo portava o Dodt do seu ariano avô materno.
Coincidimos,
no entanto, nas várias atividade gráficas exercidas: as letras, o desenho, a
fotografia. Tenho também a mesma vocação náutica e militar, embora haja
espancado de mim essas tendência muito cedo, pois no mar e nos quartéis não há mulheres,
e eu não vivo sem elas.
Como
Gustavo Barroso, tive também a minha fase de aluno exemplar, entre os primeiros
da classe, e um período de estudante rebelde, brigão e gazeteiro, tendo sido “bicho
tímido” no princípio, alfabetizado por pessoa da família, lançado de repente
entre os diabretes de um colégio, sem irmão mais velho que me prestasse
proteção.
“Barrosinho”
encontrou a solidariedade veterana no colega Antônio Pompeu, enquanto eu, no
primeiro dia de aula, fui recebido pelo filho e homônimo do advogado do meu
pai, Sílvio Magalhães, menino franzino, mas valente como o causídico genitor: “Se
algum aluno maltratar você, é só me dizer que eu arrebento a cara dele”.
Tracemos
um paralelo entre personalidades citadas, lá e aqui, a começar pelos velhos
professores, Lino da Encarnação, estimado mestre de Gustavo Barroso, e Odilon
Braveza, diretor do meu colégio São João, respectivamente desenhados por ele e
por mim com extrema semelhança. Depois, o seu grande amigo Antônio Pompeu, bisavô
do meu primo Eduardo, este que é hoje o meu maior amigo e confidente.
A
seguir, os filhos do Barão de Studart, com os quais ele gostava de brincar,
cujos netos desses filhos vieram a ser meus alunos de judô. Por fim, o seu
primo apelidado Guabiraba, cujo descendente João Isidoro, já com esse sobrenome
de batismo, veio a ser meu companheiro de trabalho nos escritórios do Detran.
Quanto
a lugares referidos, comecemos pela Praia do Peixe, a mesma de Iracema, em
cujas areias e marés e diques e pontes fomos meninos, ele e eu. Depois, as
frescas matas da Paupina, no derredor de Messejana, onde os seus tiveram um
sítio, e os meus tiveram outro, quem sabe quão próximos entre si, cujas lagoas
e riachos nos banhavam, em cujos caminhos nos perdíamos com os nossos cavalos e
os nossos moleques, perseguindo passarinhos e calangros.
No
meu tempo de menino, embora tão perto da cidade, a Paupina era ainda quase
virgem, sem luz elétrica e com estradas carroçáveis interrompidas no inverno.
Finalmente,
a Chácara Baixa Preta no Benfica, pertencente ao pai de Gustavo: posso ter sido
proprietário de uma fraçãozinha dela, quando adquiri uma casa situada onde
teriam sido os seus terrenos, se nos orientarmos pelo roteiro descrito, a
partir da Fundição Cearense, que já perfura mais de século e não se locomove.
Mas se por acaso o meu imóvel não foi no passado
parte daquele, por estar mais à esquerda, aquele se confunde com o sítio
Tebaida, que ainda conheci, onde morou por algum tempo a família de minha mãe.
Dito
isto, peço vênia ao Professor Soriano Aderaldo, que compilou aquelas memórias e
as comenta em pés de página, para deixar a Gustavo Barroso a minha mensagem
metafísica:
Costumo ditar textos e gosto
que me façam leituras para evitar a “sozinhês” da atividade literária. Assim, sorvi os teus livros de memória, condensados em um só, ao volante do meu carro,
através dos cenários da tua juventude, pelas vias em que inauguraste a pequena
machambomba Pic-Pic, o primeiro automóvel do Estado.
Fi-lo com o vagar da
degustação, como se esquipasse no cavalo Menelik, pela Rua Formosa, pela das
Flores, pela do Chafariz, pela Ladeira do Gasômetro, junto ao Passeio Público.
Desci às umidades da
Sabiaguaba, subi as vielas sinuosas do Baturité, rumo aos frescores do teu
Pacoti. Perlustrei as lagoas de Messejana e Porangaba ouvindo os teus textos.
Bordejei o litoral que adoravas,
hoje todo urbanizado, desde o Porto das Jangadas do passado até a atual Praia
do Futuro, petiscando aqui e ali, a intervalos da leitura, os frutos multicores
do nosso verde mar, que tão bem descreves.
Armado de revólver, penetrei
com a família na Paupina, transformada em favela infecta e perigosa, em busca
das paragens da nossa infância, encontrando em ruínas o sítio em que vivi. Quem
sabe, nessa leitura itinerante tenha eu tangenciado também o Sítio Água Boa, de
localização imprecisa, que te parecia o Céu na Terra, como foi para mim a Fazenda
Bom Lugar.
Foram-se os antigos que conheceste, ficaste antigo e te foste também.
Deixaste, no entanto, para os pósteros o livro-razão dos haveres da tua alma.
Fico por aqui mais um bocado, tentando gozar a vida, por mim e por dois amigos
que se foram mais cedo, e agora um pouco por ti, que amaste tanto a nossa
terra. Espero, enfim, que estejas em paz, ao lado do Pai, redimido com o Filho,
Iesus Nazarenus Rex Iudeorum.
(Do
livro Traços da Memória, Laços da Província – Volume II – Reginaldo Vasconcelos
- Multigraf Editora – 1993)
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