domingo, 20 de dezembro de 2015

ARTIGO - O Ídodo Morto (JE)


O ídolo morto
José Escarlate**
(Enviado por Wilson Ibiapina*)

Final de 1959. Nesse tempo, eu buscava seguir os passos do meu ídolo, o repórter Luciano Carneiro, da revista “O Cruzeiro”, um cearense formado em Direito que se dedicava inteiramente ao jornalismo. Para conseguir maior sucesso, passou a compor suas reportagens com texto e fotos, o que lhe dava uma dimensão muito maior. Além de piloto, Luciano, versátil, tirou brevê de paraquedista na Coréia, para onde fora mandado como correspondente de guerra da revista. Daí pra frente, seu horizonte se alargou.

Teimoso e persistente, Luciano era um homem que adorava desafios, por mais difíceis e perigosos que fossem. Cada missão considerada impossível Luciano Carneiro era o primeiro a se apresentar como candidato. Verdadeiro cobaia. Com a guerra da Coréia, cruel e sangrenta com milhares de mortos, ele mostrou seu destemor e sua bravura, buscando fazer sempre o melhor. Quase o impossível. Lá, como já disse, ele se tornou paraquedista para chegar mais perto do front. 

Por ironia do destino, de volta ao Brasil depois de algumas missões arriscadas, um dia Luciano foi pautado pela revista O Cruzeiro para fazer um trabalho mais ameno, bastante diferente de tudo aquilo que havia sido o seu dia-a-dia até então. Era algo bem longe do perigo. Caberia a ele realizar a cobertura completa, com textos e fotos, do primeiro Baile de Debutantes que se realizaria em Brasília, ainda em fase de construção. Luciano só fora escalado porque a revista não conseguira encontrar o Luiz Carlos Barreto, o “Barretão”, que também se dedicava a fazer material com texto e foto, e que era especialista nesse tipo de cobertura.

Isso, às vésperas do Natal, que ele programara passar com a família, a esposa Glória Carneiro, grávida do segundo filho e dos muitos amigos, em sua casa no Rio. Viajou no sábado, dia 19 de dezembro de 1959, num “Viscount” da VASP, aeronave moderníssima e segura, igual a que era utilizada pelo presidente Juscelino Kubitschek. Partiu feliz, antevendo a alegria que seria a festa natalina em casa, junto da esposa, dos filhos e dos muitos amigos que conquistou. Luciano não escondia de ninguém sua alegria. O sonho do seu Natal. A cobertura foi feita, com texto já alinhavado e fotos impressas, só faltando revelar e preparar as legendas.

No domingo e na segunda fez algumas entrevistas complementares para dar um colorido maior à matéria. Na terça-feira, 22 de dezembro de 1959, dia de retornar à base, no Rio. Luciano embarcou alegre no “Viscount” da VASP, iniciando seu regresso para casa. Viagem tranquila, vôo sereno, céu de brigadeiro, missão mais uma vez cumprida. Na sua bolsa de viagem, o farto material fotográfico do primeiro Baile de Debutantes da futura capital brasileira.

O texto, já alinhavado, seria preparado por Luciano, como sempre, na própria redação da revista, juntamente com o título escolhido por ele para a matéria, além das legendas das fotos identificando os personagens.

A bordo, o comissário anunciava o velho refrão, tão aguardado por todos: “Senhores passageiros, estamos iniciando nosso procedimento de descida para pouso no aeroporto do Rio de Janeiro, onde termina esta viagem”.

E, a um minuto da aterrissagem, a tragédia. O “Viscount” de passageiros e uma aeronave “Fokker” de treinamento da Força Aérea Brasileira se chocaram em pleno ar, nos céus da baía de Guanabara, nas imediações do bairro de Ramos, matando Luciano Carneiro e os outros 31 ocupantes da aeronave da VASP.

Entre os destroços, foram recolhidos pelas lanchas da Polícia Marítima, do Corpo de Bombeiros e da Marinha de Guerra além dos corpos super mutilados, pertences dos passageiros, malas e, milagrosamente, as duas câmeras fotográficas de Luciano Carneiro que estavam dentro de sua bolsa impermeável de material. Segundo os jornais da época, tudo estaria quebrado e os filmes molhados, aparentemente velados.

A direção da revista O Cruzeiro se mobilizou para resgatar o material pertencente ao seu repórter. Tentou o Ministro da Justiça visando conseguir da polícia essa liberação. Depois de muitas idas e vindas, o presidente Juscelino Kubitschek foi colocado no circuito, quando finalmente veio a ordem para a entrega de todo o material recolhido no mar à direção da revista. Foi uma batalha, de ordens e contra ordens, que se estendeu por 48 horas.

O milagre, contudo, ainda estava a caminho. Ao chegar ao excelente laboratório fotográfico da revista O Cruzeiro, que fora montado pelo francês Jean Manzon, os filmes foram cuidadosamente processados, quando se verificou que nem tudo estava perdido. Dezenas de fotos foram recuperadas, inclusive uma em que Luciano figurava como personagem, na derradeira reportagem de sua vida. Todo esse material foi paginado pela revista. Por conta de suas incursões em várias guerras, Luciano tinha o hábito de envolver todo o seu material de trabalho – câmeras e filmes – em sacolas plásticas, visando protegê-lo.

Na sua homenagem ao grande jornalista Luciano Carneiro, seu velho amigo e conterrâneo, a imortal escritora Rachel de Queiroz, em artigo nas páginas da revista O Cruzeiro, salientava que a morte jamais entrara nos planos de Luciano: “Ele só se comportava em termos de vida. Viver perigosamente sim, isso ele entendia e amava. Mas a morte não entrava nos seus cálculos, pois o que gente como ele tem de maravilhoso é exatamente essa insolência de vida, essa ignorância deliberada da morte, como que uma segurança de imortalidade”. Rachel de Queiroz, mais adiante, salienta que “acidente fatal vem como uma traição. Os melancólicos, os pessimistas como nós, esses que estão sempre mais ou menos preparados para a morte, nem são muito merecedores de vida”.


“Mas não criaturas como Luciano Carneiro” – finaliza. Luciano era o meu norte. Ele era o modelo que eu desejaria seguir em vida. E, paralelamente, comecei a fazer também fotos, tentando aprender os segredos das câmeras. E, quando me deixavam, fazia igualmente os textos.


**José Escarlate
Jornalista Veterano em Brasília



O  jornalista José Escarlate, meu amigo, trabalhou anos na imprensa carioca. Hoje, mora em Brasília, onde trabalhou também na Agência Brasil. Escarlate está escrevendo o livro Páginas Viradas, onde dedica espaço ao jornalista cearense Luciano Carneiro, que morreu numa véspera de Natal e em quem Escarlate se mirava.

Wilson Ibiapina.


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