O
ídolo morto
José Escarlate**
(Enviado por Wilson Ibiapina*)
Final de 1959. Nesse tempo, eu buscava seguir os passos do meu
ídolo, o repórter Luciano Carneiro, da revista “O Cruzeiro”, um cearense
formado em Direito que se dedicava inteiramente ao jornalismo. Para conseguir
maior sucesso, passou a compor suas reportagens com texto e fotos, o que lhe
dava uma dimensão muito maior. Além de piloto, Luciano, versátil, tirou brevê de paraquedista na Coréia, para onde fora mandado como correspondente de guerra
da revista. Daí pra frente, seu horizonte se alargou.
Teimoso e persistente, Luciano era um homem que adorava desafios, por
mais difíceis e perigosos que fossem. Cada missão considerada impossível
Luciano Carneiro era o primeiro a se apresentar como candidato. Verdadeiro
cobaia. Com a guerra da Coréia, cruel e sangrenta com milhares de mortos, ele
mostrou seu destemor e sua bravura, buscando fazer sempre o melhor. Quase o
impossível. Lá, como já disse, ele se tornou paraquedista para chegar mais
perto do front.
Por ironia do destino, de volta ao Brasil depois de algumas missões
arriscadas, um dia Luciano foi pautado pela revista O Cruzeiro para fazer um
trabalho mais ameno, bastante diferente de tudo aquilo que havia sido o seu
dia-a-dia até então. Era algo bem longe do perigo. Caberia a ele realizar a
cobertura completa, com textos e fotos, do primeiro Baile de Debutantes que se
realizaria em Brasília, ainda em fase de construção. Luciano só fora escalado
porque a revista não conseguira encontrar o Luiz Carlos Barreto, o “Barretão”,
que também se dedicava a fazer material com texto e foto, e que era
especialista nesse tipo de cobertura.
Isso, às vésperas do Natal, que ele programara passar com a família, a
esposa Glória Carneiro, grávida do segundo filho e dos muitos amigos, em sua
casa no Rio. Viajou no sábado, dia 19 de dezembro de 1959, num “Viscount” da
VASP, aeronave moderníssima e segura, igual a que era utilizada pelo presidente
Juscelino Kubitschek. Partiu feliz, antevendo a alegria que seria a festa
natalina em casa, junto da esposa, dos filhos e dos muitos amigos que
conquistou. Luciano não escondia de ninguém sua alegria. O sonho do seu Natal.
A cobertura foi feita, com texto já alinhavado e fotos impressas, só faltando
revelar e preparar as legendas.
No domingo e na segunda fez algumas entrevistas complementares para dar
um colorido maior à matéria. Na terça-feira, 22 de dezembro de 1959, dia de
retornar à base, no Rio. Luciano embarcou alegre no “Viscount” da VASP,
iniciando seu regresso para casa. Viagem tranquila, vôo sereno, céu de
brigadeiro, missão mais uma vez cumprida. Na sua bolsa de viagem, o farto
material fotográfico do primeiro Baile de Debutantes da futura capital
brasileira.
O texto, já alinhavado, seria preparado por Luciano, como sempre, na
própria redação da revista, juntamente com o título escolhido por ele para a
matéria, além das legendas das fotos identificando os personagens.
A bordo, o comissário anunciava o velho refrão, tão aguardado por todos: “Senhores passageiros, estamos iniciando nosso procedimento de descida para pouso no aeroporto do Rio de Janeiro, onde termina esta viagem”.
E, a um minuto da aterrissagem, a tragédia. O “Viscount” de passageiros e uma aeronave “Fokker” de treinamento da Força Aérea Brasileira se chocaram em pleno ar, nos céus da baía de Guanabara, nas imediações do bairro de Ramos, matando Luciano Carneiro e os outros 31 ocupantes da aeronave da VASP.
Entre os destroços, foram recolhidos pelas lanchas da Polícia Marítima,
do Corpo de Bombeiros e da Marinha de Guerra além dos corpos super mutilados,
pertences dos passageiros, malas e, milagrosamente, as duas câmeras
fotográficas de Luciano Carneiro que estavam dentro de sua bolsa impermeável de
material. Segundo os jornais da época, tudo estaria quebrado e os filmes
molhados, aparentemente velados.
A direção da revista O Cruzeiro se mobilizou para resgatar o material
pertencente ao seu repórter. Tentou o Ministro da Justiça visando conseguir da
polícia essa liberação. Depois de muitas idas e vindas, o presidente Juscelino
Kubitschek foi colocado no circuito, quando finalmente veio a ordem para a
entrega de todo o material recolhido no mar à direção da revista. Foi uma
batalha, de ordens e contra ordens, que se estendeu por 48 horas.
O milagre, contudo, ainda estava a caminho. Ao chegar ao excelente laboratório fotográfico da revista O Cruzeiro, que fora
montado pelo francês Jean Manzon, os filmes foram cuidadosamente processados,
quando se verificou que nem tudo estava perdido. Dezenas de fotos foram
recuperadas, inclusive uma em que Luciano figurava como personagem, na
derradeira reportagem de sua vida. Todo esse material foi paginado pela
revista. Por conta de suas incursões em várias guerras, Luciano tinha o hábito
de envolver todo o seu material de trabalho – câmeras e filmes – em sacolas
plásticas, visando protegê-lo.
Na sua homenagem ao grande jornalista Luciano Carneiro, seu velho amigo
e conterrâneo, a imortal escritora Rachel de Queiroz, em artigo nas páginas da
revista O Cruzeiro, salientava que a morte jamais entrara nos planos de
Luciano: “Ele só se comportava em termos de vida. Viver perigosamente sim, isso
ele entendia e amava. Mas a morte não entrava nos seus cálculos, pois o que
gente como ele tem de maravilhoso é exatamente essa insolência de vida, essa
ignorância deliberada da morte, como que uma segurança de imortalidade”. Rachel
de Queiroz, mais adiante, salienta que “acidente fatal vem como uma traição. Os
melancólicos, os pessimistas como nós, esses que estão sempre mais ou menos
preparados para a morte, nem são muito merecedores de vida”.
“Mas não criaturas como Luciano Carneiro” – finaliza. Luciano era o meu norte. Ele era o modelo que eu desejaria seguir em vida. E, paralelamente, comecei a fazer também fotos, tentando aprender os segredos das câmeras. E, quando me deixavam, fazia igualmente os textos.
**José Escarlate
Jornalista Veterano em Brasília
O jornalista José Escarlate, meu
amigo, trabalhou anos na imprensa carioca. Hoje, mora em Brasília, onde
trabalhou também na Agência Brasil. Escarlate está escrevendo o livro Páginas
Viradas, onde dedica espaço ao jornalista cearense Luciano Carneiro, que morreu
numa véspera de Natal e em quem Escarlate se mirava.
Wilson Ibiapina.
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