REMINISCÊNCIAS
MEDIEVAIS
Rui Martinho Rodrigues*
A Idade Média condenava o lucro (dos
outros). Auferir ganhos sobre empréstimos (alugar dinheiro) era imoral. Jacques
Le Goff (1924 – 20114) explica a invenção do purgatório como tendo sido criado
para apaziguar os acusados de usura. Até hoje há um sentimento contrário aos
ganhos e à riqueza. Pessoas letradas e “bem informadas” alimentam o sentimento
aludido.
A condenação dos cobiçosos, cúpidos,
gananciosos é, até certo ponto, compreensível. É preciso, todavia, distinguir
os diferentes caminhos da aspiração por ganhos. As trocas, no âmbito dos
valores de natureza econômica, sofrem o efeito do modo como se procura obter
ganhos.
O saque e o engodo não levam ao
desenvolvimento. A busca do lucro pela redução dos custos de produção e aumento
da produtividade, somadas à conquista da confiança dos parceiros assim
fidelizados, produzem resultado positivo. Henry Ford (1863 – 1947) reduziu
custos e promoveu um salto de produtividade, barateou o preço, democratizou o
acesso aos carros, aumentou a arrecadação de tributos e gerou empregos. Sua
meta era o lucro.
Muitos professores e profissionais de
comunicação dizem que os problemas do Brasil têm origem no lucro. A imunização
cognitiva incide fortemente sobre os letrados. “O conhecimento pode ser
obstáculo epistemológico” (Gaston Bacelard, 1884 – 1962).
Os profissionais citados não lembram
que a Idade Média, tempo em que lucro e ganhos (dos outros) eram severamente
reprovados, foi tempo de pobreza e privação. Não sabem que quando o lucro
deixou de ser satanizado, na modernidade, todos os indicadores objetivos de
qualidade de vida passaram a melhorar. Mortalidade infantil, expectativa de
vida ao nascer, analfabetismo, escolaridade média, acesso aos bens e serviços.
Alegou-se que só os países
desenvolvidos auferiam as vantagens referidas. As teorias difusionistas,
segundo as quais as conquistas humanas se espalham progressivamente entre os
povos, foi repudiada em nome da teoria da dependência. Esta supõe que todos os
povos originariamente são desenvolvidos. Tendo surgido nesta condição, se
tornariam subdesenvolvidos como consequência de trocas desiguais com outros
povos. O dependentista recusou-se a ver que o desenvolvimento original é fruto
da lenda do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, reforçada no Brasil
pela ficção indigenista, com a Iracema, de José de Alencar (1829 – 1877).
Povos isolados vivem em piores
condições do que os que participaram das “trocas desiguais”, conforme a
comparação entre São Paulo e Roraima. Os índices objetivos de qualidade de vida
melhoraram enormemente entre os povos “explorados pelas relações desiguais”,
forçando a emenda da teoria da “dependência” em teoria da “interdependência”.
Reminiscências medievais, inveja
travestida de virtude e convicção ideológica alimentam a condenação da busca
por lucro. Adam Smith (1732 – 1790) percebeu que o caminho para a prosperidade
não é a busca da virtude, mas o direcionamento das imperfeições humanas para o
bem-estar da sociedade pela recompensa. Quem inventou o crediário queria
lucrar, mas proporcionou conforto para muitos. Japão, Coreia do Sul, Taiwan,
Singapura e China retiraram centenas de milhões de pessoas da miséria adotando
a busca do lucro pela via da redução de custos e aumento da produtividade.
Marcus Tullius Cicero (106 a.C. – 43
a.C) diria: até quando Catilina, insistirás perguntando: espelho meu, espelho
meu, quem é mais virtuoso do que eu, que condeno o lucro dos outros e nego os
fatos contrários ao moralismo medieval?
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